#TOLERÂNCIA201 - INTOLERÂNCIA ÀS MEMÓRIAS
Na entrevista que dá à revista Chimères (n.º 106, de 2025), de que falei há pouco tempo (#TOLERÂNCIA197), a psicanalista Zorka Dormić fala do livro "A guerra não tem rosto de mulher", de Svetlana Alexijevich (nascida em 1948), publicado em 1985, em russo. A escritora veio depois a ganhar o Prémio Nobel da Literatura em 2015.
Baixei da Internet uma versão espanhola do livro. A autora bielorrussa procura dar voz a centenas de mulheres que serviram no Exército Vermelho, durante a 2.ª Grande Guerra, como atiradoras, condutoras
de tanques, enfermeiras e 'partisans' (membros da Resistência). A edição que baixei não diz a data, deverá ser de 1988. "Folheei" o livro no ecrã do computador, li trechos aqui e ali.Este chamou-me especialmente a atenção, é que falava de Tolerância. Faz parte do testemunho de Valentina Pávlovna Chudaeva, sargento, comandante numa unidade de artilharia:
(Pedi a um 'chatbot', o Grok, que fizesse a tradução do espanhol para português de Portugal)
"No Dia da Vitória, eu estava na Prússia Oriental. Há dois dias que tínhamos calma, ninguém disparava. De repente, à noite, soaram os alarmes: «Alerta aéreo!». Levantámo-nos num salto. E logo se ouviram os gritos: «Vitória! Capitulação!». A parte da capitulação não percebemos muito bem, mas a da Vitória, essa apanhámo-la logo: «A guerra acabou! A guerra acabou!». Todos começaram a disparar com o que tivessem à mão: metralhadoras, pistolas... canhões... Um enxugava as lágrimas, outro dançava: «Estou vivo! Estou vivo!». Um terceiro atirou-se ao chão e abraçava, abraçava a areia, as pedras. De alegria... Eu estava ali a pensar: «Se a guerra acabou, o meu pai já não vai voltar para casa, nunca mais». A guerra tinha acabado... Depois o comandante ralhou connosco: «Não vão para casa até compensarem o custo de todos os projécteis. Mas o que fizeram? Quantos projéteis dispararam?». Achávamos que a partir daí no mundo reinaria sempre a paz, que ninguém iria querer outra guerra, que devíamos destruir todos os projécteis. Para que serviriam agora? Estávamos cansados de tanto ódio. De disparar.
"Que vontade tinha de voltar para casa! Apesar de o meu pai não estar lá, nem a minha mãe. A casa é algo superior às pessoas que a habitam, e superior à própria casa. É algo... As pessoas precisam de ter uma casa... Agradeço à minha madrasta, que me recebeu como uma mãe. Depois disso, chamava-lhe «mãe». Estivera à minha espera, esperou-me muito tempo. E isso apesar de o chefe do hospital lhe ter enviado uma carta a explicar que me iriam amputar uma perna, que me devolveriam como inválida. Queriam prepará-la. Prometiam-lhe que era temporário, que depois me levariam para... Mas ela queria que eu vivesse com ela...
"Aos dezoito ou vinte anos fomos para a frente, voltámos aos vinte ou vinte e quatro. Primeiro vivemos alegria, depois medo: o que faremos quando formos civis? Medo da vida em paz... As minhas amigas tinham acabado os estudos, mas o que éramos nós? Uns inadaptados sem profissão. Só sabíamos fazer a guerra, a única profissão que dominávamos era a guerra. Que vontade tínhamos de nos livrar da maldita guerra! Rapidamente arranjei o meu capote, que me serviu para fazer um casaco, e mudei-lhe os botões. Vendi as botas militares num mercado e comprei uns sapatos. Vestia um vestido e banhava-me em lágrimas. Não me reconhecia no espelho, em quatro anos não tiráramos as calças. Teria coragem de confessar que fui ferida, que tinha lesões? Se o reconhecesses, depois ninguém te dava trabalho, ninguém queria casar contigo. Calávamo-nos. Não confessávamos a ninguém que tínhamos combatido. No máximo, mantínhamos contacto entre nós, trocávamos cartas. Passaram pelo menos trinta anos até começarem a prestar-nos homenagens... A convidar-nos para palestras... No início escondíamo-nos, nem mostrávamos as nossas condecorações. Os homens usavam-nas, as mulheres não. Os homens eram os vencedores, os heróis; os namorados tinham feito a guerra, mas a nós olhavam-nos com outros olhos. De modo muito diferente... Roubaram-nos a Vitória, sabes? Discretamente trocaram-na pela simples felicidade feminina. Não partilharam a Vitória connosco. Era injusto... Incompreensível... Porque na frente os homens tratavam-nos muito bem, protegiam-nos sempre. Na vida normal nunca mais vi um tratamento assim. Durante a retirada, às vezes deitávamo-nos para descansar, diretamente no chão, e eles davam-nos os capotes e ficavam em mangas de camisa: «Temos de tapar as raparigas... As miúdas...». Se encontravam um pedaço de gaze, de algodão, ofereciam-no: «Fica com isto, pode ser útil...». Partilhavam connosco o último biscoito. Neles só víamos bondade e calor humano. O que aconteceu depois da guerra? Calo-me... Calo-me... O que nos impede de recordar? Será a intolerância às recordações..."
Ui! Que testemunho!... Que riqueza de temas de conversa e reflexão!
Vem-me à cabeça o assunto dos trabalhos monográficos das minhas aulas de Psicologia. Quantos e quantos alunos me falavam dos seus avós que tinham estado na Guerra do Ultramar e que não falavam, recusavam-se a falar, do tempo que estiveram na guerra em África. Pois, também eles se confrontavam com a intolerância às recordações.
A incluir este excerto como texto-gatilho duma sessão à volta da Tolerância, será para ser incluído numa fase adiantada dum grupo envolvido numa formação extensiva. Inclui-lo numa sessão dum grupo esporádico (numa escola, por exemplo), o trecho pede, no mínimo, duas horas de aulas, os tradicionais 50 +50 minutos.
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