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quinta-feira, março 28, 2013

"Um senhor de Matosinhos", de Vasco Graça Moura

Com os textos que em tão pouco tempo pude ler sobre Óscar Lopes, era impossível não procurar - pois não o conhecia - o poema de Vasco Graça Moura sobre Óscar Lopes. Os textos que me "obrigaram" à leitura, 2 são de Baptista-Bastos (Um homem maior do que o seu tempo e Um senhor português) e o terceiro é do próprio Vasco Graça Moura (Fazer filosofia).



um senhor de matosinhos

andava eu no liceu: no salão nobre
dos paços do concelho em matosinhos,
um professor, o óscar lopes, vinha

mostrar à noite que a literatura
importa a toda a dignidade humana.
iam autores ouvi-lo, jornalistas,

estudantes, gente que ali morava
e outra que do porto em carro eléctrico,
o “um” para leixões, o “dezasseis”,

passando à carvalhosa, vinha sempre,
lá estavam joão guedes, tonitruante,
e júlio gesta, afável e risonho,

manuel dias da fonseca, mais calado,
augusto gomes e suas lentes grossas
a enevoar-lhe o olhar de ver as praias

rasas de cinza e luto, com vareiras
por trágicos naufrágios ululando,
o egito, que então já se escrevia

com os poetas todos deste mundo,
o eugénio, de cachecol esvoaçante,
a modelar os gestos e os ditongos

medindo mãos e frutos, depurando
sílaba a sílaba, a sua incandescência
devia ser outono, ou mesmo inverno,

e fazer frio, e não faltava um torpe
sujeito de soslaio e bloco-notas,
tomando apontamentos com minúcia,

que a subversão quanto mais culta mais
impalatável era. fuzilavam-no
amigas minhas com o olhar, ficavam

mais belas só por essa exaltação
contida e faiscante de amazonas,
foi quando eu soube que as mulheres sabiam

resistir por instinto e se tornavam
mais agilmente elásticas no corpo,
mais livres e arriscadas nos seus gestos,

e no limite a cor afogueava-as,
e tão fulva energia em nenhum verso
coube jamais, que eu saiba, então na sua

voz calma e portuense, óscar falava
dos livros, dos autores, como quem trata
de assuntos de família e os desarruma

para os mostrar melhor, e acontecia
que isso era irrepetível e sem pompas,
como outra intimidade ao nosso alcance:

é sempre desconforme a literatura.
é mal-estar, princípio de prazer,
é trabalho forçado e liberdade

e um modo mais verbal de estar no mundo,
e nesse mar óscar lançava as redes
da pesca milagrosa, aquela terra

tinha essas tradições mais literais,
orlas de oralidade e maresia,
e embarcávamos todos na traineira

e era outra vez o senhor de matosinhos
com ex-votos à roda: impaciências
de passado e presente na palavra

e, entre a vida e a morte, o seu fulgor
em que, por crespas ondas, falar era
também filosofar e rebeldia.

tinham saído alguns discos recentes,
gravados por poetas: eu recordo
a voz do régio num, que achei roufenha

dos ensimesmamentos presencistas,
e vozes de combate que também
prestavam para pouco, mas sabia

tão bem partir a louça no salão
daquela edilidade, assim nas barbas
de toda a gente, era porém mais justa

a medida de que óscar nos falava
pois fazia pensar e punha em causa.
e alguém pedia às vezes um poema

quando a noite avançava e alguém dizia
outras coisas em código e ficavam
depois pequenos grupos à saída

como em cinemas de província, como
quem tem mais a dizer e veio vindo
devagar até aqui e aqui se encontra,

à espera de outro eléctrico ronceiro,
e vai falando tempos esquecidos,
sem pressa e sem vontade de ir embora.

Vasco Graça Moura, Uma Carta no Inverno, Quetzal Editores, 2.ª ed., 1999

sábado, junho 23, 2012

A natureza da vida e a natureza da morte

Nos textos que Baptista-Bastos reuniu no livro " A cara da gente, há um deles, "O caçador da grandeza humana", que o cronista alfacinha abre com versos de Jorge de Sena:
De morte natural nunca ninguém morreu.
Não foi para morrer que nós nascemos
........................................................
A morte é natural na natureza. Mas
nós somos o que nega a natureza.
Sou de opinião que não devemos concordar com o poeta autor destes versos. Nós somos mais que natureza, mas somos, antes de mais, natureza. Negar a natureza é impedir-nos definitivamente de nos encontrarmos connosco próprios, no ser integral, completo que cada um de nós é. É reduzir-nos a uma incompletude que nos afasta constantemente da fruição da sensação de bem-estar pleno.
Se somos natureza, porquê negá-la? Aceito que a desafiemos; que tentemos ir para além dela, juntando-lhe algo mais, que a nossa condição gregária (que nos foi dada precisamente pela nossa própria natureza) e a nossa inteligência criadora nos ajudam a alcançar. Não concordo que a neguemos.
Mais do que pensar na morte e entristecermo-nos com ela, revoltarmo-nos contra ela, ou resignarmo-nos a ela, temos é de pensar viver a vida, todos os seus momentos, de forma intensa. Dessa maneira sim, não negaremos a nossa natureza, nem a morte. Em vez de a negarmos, vamos sublimá-la, indo para além da condição biológica, vital, a que a natureza nos limita. Negar a morte no homem não é apenas negar a natureza, é negar o próprio homem.
Aceitar a morte é, em certo sentido, vencê-la na sua inexorabilidade; e nem é simplesmente porque se acredita que para além da vida que conhecemos há outra a que chegamos depois de morrermos.
Muito do que fazemos hoje de errado tem a ver com o esforço que fazemos para fugir da morte, sobretudo da nossa morte, não tanto a morte dos outros.
Pensar na vida, vivê-la intensamente, creio eu que nos realiza na nossa natureza e nos afasta, em sentido metafórico, mas também em sentido literal, da morte e da sua natureza.
É por pensar assim que escrevo este apontamento no espaço de escrita da escola. Quero mostrar aos meus alunos que, na minha ideia, os primorosos versos de Jorge de Sena são sereias que nos afastam da fruição do prazer de viver e o diminuem com o sabor, sentido como amargo, do que parece ser o contrário à vida: a morte.

Os versos completos do poema de Jorge de Sena:

A Morte, O Espaço, A Eternidade

De morte natural nunca ninguém morreu.
Não foi para morrer que nós nascemos,
não foi só para a morte que dos tempos
chega até nós esse murmúrio cavo,
inconsolado, uivante, estertorado,
desde que anfíbios viemos a uma praia
e quadrumanos nos erguemos. Não.
Não foi para morrermos que falámos,
que descobrimos a ternura e o fogo,
e a pintura, a escrita, a doce música.
Não foi para morrer que nós sonhámos
ser imortais, ter alma, reviver,
ou que sonhámos deuses que por nós
fossem mais imortais que sonharíamos.
Não foi. Quando aceitamos como natural,
dentro da ordem das coisas ou dos anjos,
o inominável fim da nossa carne; quando
ante ele nos curvamos como se ele fora
inescapável fome de infinito; quando
vontade o imaginamos de outros deuses
que são rostos de um só; quando que a dor
é um erro humano a que na dor nos damos
porque de nós se perde algo nos outros, vamos
traindo esta ascensão, esta vitória, isto
que é ser-se humano, passo a passo, mais.

A morte é natural na natureza. Mas
nós somos o que nega a natureza. Somos
esse negar da espécie, esse negar do que
nos liga ainda ao Sol, à terra, às águas.
Para emergir nascemos. Contra tudo e além
de quanto seja o ser-se sempre o mesmo
que nasce e morre, nasce e morre, acaba
como uma espécie extinta de outras eras.
Para emergirmos livres foi que a morte
nos deu um medo que é nosso destino.
Tudo se fez para escapar-lhe, tudo
se imaginou para iludi-la, tudo
até coragem, desapego, amor,
tudo para que a morte fosse natural.

Não é. Como, se o fôra, há tantos milhões de anos
a conhecemos, a sofremos, a vivemos,
e mesmo assassinando a não queremos?
Como nunca ninguém a recebeu
senão cansado de viver? Como a ninguém
sequer é concebível para quem lhe seja
um ente amado, um ser diverso, um corpo
que mais amamos que a nós próprios? Como
será que os animais, junto de nós,
a mostram na amargura de um olhar
que lânguido esmorece rebelado?

E desde sempre se morreu. Que prova?
Morrem os astros, porque acabam. Morre
tudo o que acaba, diz-se. Mas que prova?
Só prova que se morre de universo pouco,
do pouco de universo conquistado.

Não há limites para a Vida. Não
aquela que de um salto se formou
lá onde um dia alguns cristais comeram;
nem bem aquela que, animal ou planta,
foi sendo pelo mundo este morrer constante
de vidas que outras vidas alimentam
para que novas vidas surjam que
como primárias células se absorvam.
A Vida Humana, sim, a respirada,
suada, segregada, circulada,
a que é excremento e sangue, a que é semente
e é gozo e é dor e pele que palpita
ligeiramente fria sob ardentes dedos.
Não há limites para ela. É uma injustiça
que sempre se morresse, quando agora
de tanto que matava se não morre.
É o pouco de universo a que se agarram,
para morrer, os que possuem tudo.
O pouco que não basta e que nos mata,
quando como ele a Vida não se amplia,
e é como a pele do ónagro, que se encolhe,
retráctil e submissa, conformada.
É uma injustiça a morte. É cobardia
que alguém a aceite resignadamente.
O estado natural é complacência eterna,
é uma traição ao medo por que somos,
áquilo que nos cabe: ser o espírito
sempre mais vasto do Universo infindo.

O Sol, a Via Láctea, as nebulosas,
teremos e veremos até que
a Vida seja de imortais que somos
no instante em que da morte nos soltamos.
A Morte é deste mundo em que o pecado,
a queda, a falta originária, o mal
é aceitar seja o que for, rendidos.

E Deus não quer que nós, nenhum de nós,
nenhum aceite nada. Ele espera,
como um juiz na meta da corrida
torcendo as mãos de desespero e angústia,
porque nada pode fazer nada e vê
que os corredores desistem, se acomodam,
ou vão tombar exaustos no caminho.
De nós se acresce ele mesmo que será
o espírito que formos, o saber e a força.
Não é nos braços dele que repousamos,
mas ele se encontrará nos nossos braços
quando chegarmos mais além do que ele.
Não nos aguarda – a mim, a ti, a quem amaste,
a quem te amou, a quem te deu o ser –
não nos aguarda, não. Por cada morte
a que nos entregamos ele se vê roubado,
roído pelos ratos do demónio,
o homem natural que aceita a morte,
a natureza que de morte é feita.

Quando a hora chegar em que já tudo
na terra foi humano — carne e sangue —,
não haverá quem sopre nas trombetas
clamando o globo a um corpo só, informe,
um só desejo, um só amor, um sexo.
Fechados sobre a terra, ela nos sendo
e sendo ela nós todos, a ressurreição
é morte desse Deus que nos espera
para espírito seu e carne do Universo.
Para emergir nascemos. O pavor nos traça
este destino claramente visto:
podem os mundos acabar, que a Vida,
voando nos espaços, outros mundos,
há-de encontrar em que se continui.
E, quando o infinito não mais fosse,
e o encontro houvesse de um limite dele,
a Vida com seus punhos levá-lo-á na frente,
para que em Espaço caiba a Eternidade.

Assis, 1 de Abril de 1961, sábado de Aleluia

quarta-feira, junho 13, 2012

Santo António, Baptista-Bastos e Vasco Graça Moura - que caldo!


Não é fácil encontrar-se o jeito de dizer certas coisas que tantas vezes se sentem, mas ainda são difíceis de pensar porque não se encontraram as palavras certas, e, menos ainda, se as arrumaram umas a seguir às outras. Volta e meia repito isto, com estas palavras ou com outras parecidas.
Enquanto professores, seja de que saber técnico ou científico seja, devemos estar disponíveis para falar aos nossos alunos de coisas que lhes tocam como pessoas e os podem respeitar ou ofender na sua condição de cidadãos.
Neste espantoso texto de Baptista-Bastos, que encontrei na edição on line de hoje do Diário de Notícias, destaco duas ideias muito bem expressas com as tais palavras tantas vezes tão difíceis de encontrar:
"O niilismo moderno oculta-se na ideologia que domina a Europa, e os aparentes equívocos não são exercícios de estilo ou miniaturas verbais: constituem peças para aumentar a confusão geral. A Imprensa pouco ou nada esclarece do que se passa no interior da superfície; as televisões são caudais de frivolidades; os comentadores somente glosam e, na maioria, anotadores sem risco e sem reflexão. Alguém tem de sacudir esta inércia que nos está a liquidar como povo e a destruir, visivelmente, a nossa democracia - se é que a democracia alguma vez foi nossa."
A segunda ideia é esta:
" Quando D. Januário Torgal Ferreira declara: "Apetece-me dizer: vamos todos para a rua! Não vamos fazer tumultos, vamos fazer democracia"; diz, afinal, que nos devemos saber defender, que aprendamos a nos precaver contra o ovo da serpente. E, sobretudo, nos insurjamos perante as pequenas limitações de liberdade e de justiça, que nos aplicam em nome da "inevitabilidade" e do "equilíbrio do sistema." "
As palavras do bispo - Opinião - DN
Na edição on line do Diário de Notícias podemos encontrar, ao lado do artigo de Baptista-Bastos, um outro, também de opinião, de Vasco Graça Moura.
Neste artigo, VGM, mais uma vez destila o seu asco praticamente visceral a certos grupos de pessoas, muitos jovens, que, desta vez, cometeram o "pecado mortal" de irem ver o Rock in Rio; e fá-lo mais uma vez a partir de ideias preconcebidas, que ele próprio denuncia resultarem de se deixar levar pelas aparências: "E pelo aspecto, muitos deles integram as hordas de indignados que aparecem por aí noutras ocasiões."
É pena que ele faça assim, o texto, no essencial, é duma clareza e duma acutilância que saúdo, na mesma linha do que no outro artigo Baptista-Bastos faz também:
"É neste clima de fuga à realidade e amplificações ensurdecedoras que o verdadeiro rock da pesada muda de nome e de cenário. Passa a chamar-se Euro 2012. Agora, não lhe faltará o singular empenhamento da comunicação social, engendrando expectativas desmesuradas de triunfo e criando em todas as almas verdadeiramente lusitanas o frisson patriótico daquelas manhãs de nevoeiro em que uma redenção colectiva nos há-de chegar pela biqueira ágil dos craques, pondo termo às nossas angústias."