terça-feira, junho 23, 2015

A Crise de Fernando Pessoa exactamente há 100 anos atrás

Pois é, exactamente há 100 anos atrás Fernando Pessoa estava à rasquinha de dinheiro, coitado!...
No dia 23 de Junho de 1915, ele escreveu a seguinte carta a Armando Côrtes-Rodrigues (1):

Lisboa, 23 de Junho de 1915.
               Meu caro Côrtes-Rodrigues:
É uma circunstância violenta e aflitiva. V. pode emprestar-me cinco mil réis até ao dia 1
Armando Côrtes-Rodrigues
do mês que vem (1 de Julho)? É aflitivíssimo
[sim, é isso mesmo: aflitivíssimo] o caso, creia. E o pagamento é pronto e certo no referido dia 1, se não for antes, o que pode acontecer, mas não prometo.
Se v. me pudesse fazer isto! Valia-me numa conjuntura em que não tenho ninguém para quem me vire. Era questão de uns dias; nem eu — desde o que v. já me explicou sobre a sua situação — lhe faria partida alguma, ou seria capaz de lhe dizer que lhe pagava em determinado dia, se me fosse impossível fazê-lo. Se v. puder, não deixe de me fazer isto!
Não estarei no escritório amanhã senão tarde. Mas, vindo v. cá e deixando-me em envelope a quantia, ser-me-á entregue fielmente quando eu chegue.
Não me julgue indelicado por lhe pedir, ainda por cima, que venha aqui ao escritório e, mais, dizendo-lhe que talvez eu não esteja. É que tenho coisas inadiáveis de que tratar e não poderia marcar horas e lugar mais conveniente onde encontrá-lo. Desculpe.
Veja se me pode fazer isto, sim? É só por estes 5 ou 6 dias. Decerto que poderá ser.
Seu mt.º am.º e grato
               F. Pessôa
Há registo que no dia 26 ele voltou a escrever ao amigo. Assim:
Noite de 26-6-1915.
               Irmão em pseudo:
Saberás que hoje, pelas 6 horas da tarde, inesperadamente, tudo se resolveu.
Eu nada já esperava, como sabias, e eis que de repente uma porta se abriu nas ocorrências, mesmo defronte do meu Desejo.
Um astro benéfico talvez transitando um ponto vital do horóscopo? Verei se assim foi. Saúdo-te.
                Fernando Pessôa
Segundo a nossa fonte, esta segunda carta alude «certamente, à resolução do problema de dinheiro que motivara a carta de 23 do mesmo mês.»
A fonte é o volume "Correspondência, 1905-1922", edição de Manuela Parreira da Silva, da Asírio & Alvim, 1999, p. 165-6.

Pronto, a crise financeira de Fernando Pessoa, ao contrário da nossa, foi de pouca dura; só que ele teve muitas crises assim...

(1) Noutra carta, de 24 de Fevereiro de 1913, a Álvaro Pinto,  Pessoa chama a atenção ao seu correspondente, que é Côrtes, não é Cortês.

quarta-feira, junho 10, 2015

Ora bolas!, a gente a pensar que isto era mesmo sobre os portugueses!...

Ora  bolas!,
a gente a pensar que isto era mesmo dos portugueses!...

Na última edição de "Os prós e contras", da RTP1, no dia 7 de Junho, o tema foi A FELICIDADE.
As Nações Unidas, por votação unânime (claro, fica bem a todos, pois então!, o pior é quando têm que decidir sobre as coisas sérias, concretas, materiais que efectivamente fazem a felicidade; nestes casos, a bondade dos países é bem outra coisa...), dizia eu, por votação dos 193 países membros, estabeleceram, em 2012, o dia 20 de Março, como o Dia Internacional da Felicidade (1).
Quanto lhe foi dada a palavra, o humorista Herman José mostrou que as pequenas anedotas, tal como as imagens, também valem mais que mil palavras.
Lembrou-se ele de uma anedota "que a minha querida Amália Rodrigues, que eu amava, contava". Diz ele que a anedota espelhava o espírito português na perfeição.
A anedota fala de uma senhora que ia no comboio e sentia muita sede. Lamentava-se repetidamente "Ai que sede que eu tenho!... Ai que sede que eu tenho!..." Até que um senhor, que viajava também naquela carruagem, lhe deu água a beber. Depois de beber a muito oportuna dádiva do senhor, a senhora passou a repetir, com o mesmo tom lamuriento, "Ai que sede que eu tinha!... Ai que sede que eu tinha!..."
Acontece que eu lembrava-me vagamente de qualquer coisa que conhecia. Como preguiçava àquela hora, em vez de me levantar do sofá, pequei no computador que tinha ali ao pé e pesquisei no Google. Pois, estava correcta a minha vaga lembrança. É que lá encontrei esta história, que faz parte, como tantas outras, de conjuntos de textos, parábolas, tão caras ao Oriente, para educar as pessoas com as lições dos velhos Sábios, Mestres e Anciãos.
O VIAJANTE SENDENTO 
[adaptado; no fundo o velho ditado que diz que quem conta um conto, acrescenta-lhe um ponto]
Lentamente, o sol tinha-se ocultado e a noite tinha caído por completo. Pela imensa planície da Índia deslizava um comboio, como uma descomunal serpente queixosa. Vários homens compartilhavam um vagão e, como faltavam muitas horas para chegar ao destino, decidiram apagar a luz e porem-se a dormir. O comboio prosseguia a sua marcha. Passaram alguns minutos e os viajantes começaram a conciliar o sono. Levavam já um bom número de horas de viagem e estavam muito cansados. A certa altura, começaram a escutar uma voz que dizia:
- Ai que sede que eu tenho! Ai que sede que eu tenho!
Assim, uma e outra vez, insistente e monotonamente. Era um dos viajantes que não cessava de queixar-se da sua sede, impedindo de dormir ao resto de seus companheiros. Já resultava tão molesta e repetitiva a sua queixa, que um dos viajantes se levantou, saiu, foi ao lavabo, e trouxe-lhe um copo de água. O homem sedento bebeu com avidez a água. Outra vez apagaram a luz. Os viajantes, reconfortados, dispuseram-se a dormir. Transcorreram mais uns minutos. No silêncio que se instalou, surpreendentemente, insinuou-se a mesma voz de antes, que começou a dizer:
- Ai, que sede que eu tinha, mas que sede que eu tinha!
O Grande Mestre disse: A mente sempre tem problemas. Quando não tem problemas reais, fabrica problemas imaginários e fictícios, tendo inclusivé que buscar soluções imaginárias e fictícias.
Ora bem, há outras versões por aí espalhadas; das que entretanto pesquisei entretanto, constante, só mesmo os queixumes em volta dos quais o conto, a anedota ou lição se tece.
Fará parte dos estereótipos culturais do nosso País, da maneira de ser dos Portugueses, que faça mais sentido que os queixumes sejam feitos por uma mulher do que por um homem. Seja, mas isto também nos alerta para o facto poderoso da miscigenação das culturas, que levou a que as Nações Unidas, a partir de certa altura, por pressão das realidades políticas e sociais mundiais, também passassem a tomar como uma das suas grandes bandeiras o lema "Todos diferentes, todos iguais."

(1) A ONU até criou uma lista "oficial" de temas musicais para mostrar como soa a felicidade. Obrigado! Fica-lhes bem darem-nos música. São mais agradáveis de ouvir do que os lamentos das mães sem condições para criarem os seus filhos; os choros das crianças que têm fome; os gritos dos cidadãos que tentam fugir aos tiros e às bombas que caem sobre as suas povoações; os gemidos dos velhos indefesos, deixados à impotência de não poderem já fazerem nada para se protegerem e protegerem os seus.

terça-feira, junho 09, 2015

Falar nem sempre é dizer palavras.

Falar nem sempre é dizer palavras.

Isso sim, muitas vezes, falar é sentir as palavras que nos percorrem a mente ao ver, ao ouvir - no fundo, tomar consciência do que nos desperta os sentidos no instante que estamos a viver; assim simplesmente, ao lado de quem connosco está e nos deixa assim estar,  nos dá espaço relacional para fazer tão simplesmente isso: sentir os sentidos, tomara consciência deles e procurar as palavras que tornem comunicáveis os nossos sentimentos e os nossos pensamentos ao Outro, ao nosso interlocutor.
Tenho a crença de que, se calhar, é isso que eu sei fazer de melhor na minha prática clínica; e nas aulas tanto insisto com os alunos para que parem e pensem!
Seguramente o precioso relato de Alice Vieira explica muito melhor que eu quero dizer com todo o palavreado que acabei de produzir. A escritora tinha acabado de citar João dos Santos que dizia que "falar é deixar que os silêncios falem". (1)
«Mas onde está o silêncio de hoje?
Há dias sentei-me com a Isabel [a neta mais pequena] a uma mesa do El Corte Inglês. Eu estava a acabar um texto que tinha de mandar para o jornal e, como normalmente fazia com os irmãos dela quando eram pequeninos, levava a mala cheia de lápis de cor, e marcadores, e caderninhos, e um puzzle miniatura, e bonequinhos dos Estrunfes, herdados de outra geração, tudo para eles se distraírem numa emergência. Coloquei tudo em cima da mesa mas a Isabel, recostada na cadeira, não parecia muito decidida a pegar fosse no que fosse.
 - Queres fazer um desenho? - A Isabel abanava a cabeça.
- Queres brincar com os Estrunfes? - A Isabel abanava a cabeça.
- Então o que é que queres fazer, enquanto a avó está aqui a trabalhar?
Deu um suspiro muito fundo, daqueles em que ela é perita quando quer dizer, mas não diz... - "coitada, não percebe mesmo de nada..." - e murmurou, na sua voz sempre calma:
- Quero olhar para as pessoas.
E lá ficou, a olhar para as pessoas.» 
(1) Repito-o muitas vezes que, um dia, na última sessão de psicoterapia muito bem sucedida a um rapazinho encoprético, que no rosto dava sinais claros do advento da puberdade, ele, na expressão da sua gratidão me quis dizer porque ele e outros colegas seus tanto gostavam de estar ali comigo: é que eu não os enchia de perguntas e deixava-os estarem ali pensar.  


segunda-feira, junho 01, 2015

Em jeito de pequenina aula aos meus alunos - Sobre pintos, galinhas, árvores, florestas e medos

AFINAL, UMA ANDORINHA FAZ MESMO, SOZINHA, A PRIMAVERA.

Ou, uma árvore basta mesmo para fazer a floresta.
Na cabeça de um jornalista muito pouco responsável, e que é pai com olhos de mãe-coruja. É o que concluo assim depois de ler esta pequena notícia. Dela retiro este pequeno excerto:
Tim Lott, cronistas do The Guardian, lançou o alerta: as crianças de hoje já não têm medo do escuro. Temem o fracasso. E esta conclusão surgiu depois de ter perguntado a uma das suas filhas qual o seu maior receio, e sem hesitação surgiu a resposta: “falhar”.
Reagi imediatamente com alguma irritação, mas como tenho andado a dizer aos meus alunos para se esforçarem e formarem opiniões com base em percepções bem informadas, fui ler o texto original.
 Pois, afinal Tim Lott não disse o que as "Notícias ao Minuto" afirmam, naturalmente em resultado de uma leitura apressada do jornalista que construiu a pequena notícia.
Até porque Tim Lott põe o dedo na ferida:
Children’s fears are a litmus test of the society we live in and they are clearly changing – becoming more concrete – as society becomes more performance-driven, insecure and saturated with threatening, upsetting facts. (1)
Cá está, as crianças apenas - no fundo, desde que os grupos animais (incluindo os humanos) existem e os seus elementos regulam os seus comportamentos através da imitação dos mais velhos pelos mais novos - reagem em razão das ocorrências sociais, das exigências pessoais que são determinadas pelos valores e os objectivos dominantes ( e que nas sociedades modernas reflectem a ditadura do Mercado, do Dinheiro e do Consumo Material); e reagem também em razão da (des)educação que cada vez mais os governos impõem à organização escolar dos seus países.
No seu texto - lúcido e sábio - Tim Lott diz mais, citando outros autores:
“To conquer fear is the beginning of wisdom,” said Bertrand Russell, (...)  I agree wholeheartedly with Aung San Suu Kyi – “The only real prison is fear and the only real freedom is freedom from fear.” (2)
E remata a sua reflexão dizendo:
Courage is not being free from fear, however. Courage is not allowing fear to distort your purposes and cramp your life. We all have secret fears and to deny it is to deny some essential element of our personalities. But if you can do one thing for your children, show them bravery, so that they learn bravery themselves. For courage is the wellspring from which an authentic life flows. (3)
CONCLUSÃO: Há jornalistas e jornalistas: uns escrevem bem, e outros distorcem perigosamente o que os outros, escrevem. Diz a sabedoria popular que "Galinhas apressadas têm pintos carecas".
Queridos alunos, como tantas vezes vos tenho dito, desconfiem até do mais "pinto-ado" dos psicólogos! E nunca deixem de informar bem as vossas opiniões!
Beijos e abraços para todos!

(1)  Os medos das crianças são uma prova de fogo da sociedade em que vivemos, e estão mudando claramente - tornando-se mais concretos - à medida que a sociedade se torna orientada para o sucesso, insegura e saturada de ameaças e  factos perturbadores.
(2) "Vencer o medo é o primeiro passo para a sabedoria" dizia Bertrand Russel [Como eu muito agradavelmente me lembro do lema que durante muitos anos orientou o sentido das actividas da associação juvenil "Os Traquinas da Boa Vida": Vencer o Medo com o Prazer da Cultura.], (...) Concordo, do fundo do coração, com Aung San Suu Kyi - "A única verdadeira prisão é o medo e a única verdadeira liberdade é a libertação do medo".
(3) Coragem não é ser livre de sentir medo, no entanto. Coragem não é permitir que o medo distorça os nossos objectivos e nos ponha obstáculos na vida. Nós todos temos medos secretos e negá-lo é negar um elemento essencial de nossas personalidades. Mas se você pode fazer uma coisa pelos os seus filhos, mostre-lhes coragem, para que eles aprendam a bravura a partir de dentro deles mesmos. É que a coragem é a fonte a partir da qual uma autêntica vida flui.