domingo, dezembro 30, 2012

Mensagem de Ano Novo 2013 (no fundo, dá para qualquer ano...)


Bem, depois desta receita, o que fica, realmente, de importante para dizer?...

RECEITA DE ANO NOVO, de Carlos Drummond de Andrade

Para você ganhar belíssimo Ano Novo 
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz, 
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido 
(mal vivido talvez ou sem sentido) 
para você ganhar um ano 
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras, 
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser; 
novo 
até no coração das coisas menos percebidas 
(a começar pelo seu interior) 
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota, 
mas com ele se come, se passeia, 
se ama, se compreende, se trabalha, 
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita, 
não precisa expedir nem receber mensagens 
(planta recebe mensagens? 
passa telegramas?) 

Não precisa 
fazer lista de boas intenções 
para arquivá-las na gaveta. 
Não precisa chorar arrependido 
pelas besteiras consumadas 
nem parvamente acreditar 
que por decreto de esperança 
a partir de janeiro as coisas mudem 
e seja tudo claridade, recompensa, 
justiça entre os homens e as nações, 
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal, 
direitos respeitados, começando 
pelo direito augusto de viver. 

Para ganhar um Ano Novo 
que mereça este nome, 
você, meu caro, tem de merecê-lo, 
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil, 
mas tente, experimente, consciente. 
É dentro de você que o Ano Novo 
cochila e espera desde sempre.

quarta-feira, dezembro 26, 2012

2013 - Ano Europeu dos Cidadãos

http://ec.europa.eu/portugal/comissao/destaques/20110817_2013_
ano_europeu_cidadaos_pt.htm
Celebrar na Europa ou no Mundo, ano após ano, tem - pode ter - o condão de alertar consciências, promover novas - ou renovadas - atitudes e congregar comportamentos de ajuda, solidariedade, numa palavra: humanidade.
2013, antecipado em 2012, quer trazer importância e valor à cidadania europeia - que bem precisados andamos, não obstante o recente Prémio Nobel da Paz.
Hoje fui adquirir o sempre muito interessante calendário "Celebração do Tempo", das Edições Paulinas, que recomendo vivamente.
Na capa, os editores condensam numa só duas afirmações de São Paulo, extraídas de duas das suas cartas, que agora aqui reproduzo integralmente, de acordo com a Bíblia de Jerusalém (Paulus, 2002):

  • (...) Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher;pois todos vós sois um só em Cristo Jesus. (...) (Epístola aos Gálatas, 3, 28)
  • (...) Vós não vos desvestistes do homem velho com as suas práticas e vos revestistes do novo, que se renova para o conhecimento segundo a imagem do seu Criador. Aí não há mais grego e judeu, circunciso e incircunciso, bárbaro, cita, escravo, livre mas Cristo é tudo em todos. (...) (Epístola aos Colossenses, 3, 10-11)
No espírito ecuménico que tem orientado as sucessivas edições deste calendário, parece-me uma proposta muito interessante. Vamos a isso!

NOTA: Ver aqui (http://www.paulinas.pt/livro_detail.asp?idlvr=1268) a apresentação do "Celebração do Tempo", que - repito - recomendo vivamente!

terça-feira, dezembro 25, 2012

O Pai Natal usa brincos!

Ontem à noite, na Consoada, entre outras histórias, contou-se esta, que se pode, com toda a propriedade, juntar-se aos argumentos que discutem se se deve, ou não, manter as crianças na ilusão da existência do Pai Natal.
Contou a minha comadre que uma das filhas, em pequenina, vivia intensamente a Noite de Natal, os Presentes e, claro, acima de tudo, o Pai Natal.
http://4.bp.blogspot.com/-VswD1QohWCg/UJw9nJbFMoI/
AAAAAAAAHYQ/kq8Z-OaQ9rY/s1600/Slide1.JPG
Num determinado ano, calhou à minha comadre a vez de aconchegar a chegada do Pai Natal, vestindo-se a rigor para esse efeito. Por isso, quando o Pai Natal dessa Noite de Natal chegou lá a casa, a mãe não estava ao pé da filha, que teve de o ficar a ver o hipnotizante senhor de barbas brancas, desamparada da segurança materna, de olhos espantados, fascinados, medrosos!... Assim que a menina, excitadíssima, voltou a ter a mãe por perto, foi contar-lhe tudo o que viu, tudo o que aconteceu, naquele breve momento da presença do Pai Natal.
A menina atropelava, com toda a pressa, pormenores da figura do Pai Natal, do que ele disse, do que ele fez. A determinada altura, na descrição do Velho de Barbas Brancas, a pequenita olhou a mãe, de um e do outro lado da face, e sem interromper o caudal do seu relato,  disse, olhando-a agora nos olhos: "... ele, mãe, tinha uns brincos iguais a esses que tu tens agora..." Depois, continuou a debitar pormenores, enquanto a mãe tentava recuperar, sem se dar por descoberta, do abalo que o delicioso pormenor do discurso da filha lhe causara.
Que coisa bonita!... Esta menina, certamente muito inteligente, arranjou uma maneira de proteger a fantasia excitante, saborosa, que ela gosta de experimentar - e que a mãe também gosta de viver! E, implicitamente, muito diplomaticamente, diz a si própria - e diz à mãe! - que a sua perceção da realidade é correta, se mantém íntegra e que, por sua livre decisão, opta por se deixar levar na "mentira" dos pais e avós porque lhe sabe muito bem a história e a fantasia, sobretudo naquela ambiência familiar em que todos se acarinham e aconchegam uns aos outros.
Por isso, e sem querer esgotar - ou sequer, discutir - o assunto, enquanto psicólogo, aconselharei a que, diga-se o que se diga sobre o Menino Jesus e o Pai Natal, ou diga-se o que se disser para os negar na celebração do Natal, o mais grave ou condenável é ofender a inteligência e o bom juízo percetivo das crianças. Negar rigidamente o que a criança consegue ver ou percecionar é deturpar-lhe a capacidade de observar e entender a realidade que a envolve; e fazer opções, de acordo com as suas motivações e valores. Se a criança quer brincar ao "frisson" da Noite do Pai Natal, porque não deixá-la?... Este tipo de fantasias não afastam as crianças para muitos fantásticos e irreais; pelo contrário, podem ser bons instrumentos para a ajudarem a envolver-se mais ativamente na sua cultura de pertença e a ser mais tolerante com culturas diferentes da sua.

O NATAL NA PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL

O PRIMEIRO NATAL NA PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL.
Agradeço ao meu amigo Luís Bettencout Moniz
a partilha desta  fotografia espantosa
Agradeço à minha colega Sofia Barros
a partilha desta fotografia
A primeira guerra mundial começou a 28 de julho, com a declaração de guerra do Império Austro-húngaro à Sérvia. Por isso, o Natal de 1914 veio já com a guerra a fazer-se. Contudo, aconteceu esta coisa espantosa: ao longo da frente ocidental, na Véspera de Natal, soldados de ambos os lados trocaram entre si cânticos de Natal. Na manhã do dia 25, contrariando ordens do comando, soldados alemães saíram para fora das trincheiras e aproximaram-se das tropas aliadas adversárias, entoando o "Merry Christmas" em inglês. Soldados ingleses saíram também das suas posições, e trocaram-se saudações, abraços e cigarros. Este extraordinário acontecimento, que mostra a força da celebração natalícia e a força da do jeito humano que nos põe a reconhecer os outros como iguais a nós próprios ficou guardado na história das guerras como "A trégua do Natal". Ao que parece, as versões oficiais das Histórias da Primeira Guerra Mundial tentaram manter escondido, ignorado, este episódio extraordinário de humanidade, mas, felizmente, sem sucesso.


Este acontecimento é recordado numa das mais recentes edições da Times, que junta mais 9 ocorrências invulgares da época natalícia.
http://www.time.com/time/specials/packages/article/0,28804,1868506_1868508_1868515,00.html

terça-feira, novembro 06, 2012

Cheira a chulé - realidade ou ficção?

1) Às 13h30, ou melhor, alguns minutos depois dessa hora, eu estou "refugiado" na sala do Departamento das Ciências Sociais e Humanas da minha escola. Estou lá "refugiado" porque acabei de dar as aulas da manhã, tenho a cabeça tensa de tanta coisa para fazer - a viagem a Estrasburgo, ao Parlamento Europeu está aí a rebentar, estamos a "safar" as coisas de última hora -, e a sala de professores fervilha de colegas professores que, como eu, procuram descomprimir do primeiro meio-dia de trabalho. Vou aqui sorver em um trago, como diria o patrono da escola, "um apressado almoço".
2) Sem que eu as veja e sem que elas me vejam, algumas jovens (são, na verdade, várias, pelas vozes que se sobrepõem umas às outras) protestam junto da funcionária do pavilhão por causa do cheiro a chulé da sala onde acabam de entrar para ter aula. Dizem que é impossível estar lá com aquele cheiro.
3) A funcionária, solícita e paciente, procura justificar-lhes a situação, e, ao mesmo tempo, percorre com o olhar a sala de professores - mais uma vez deduzo eu isto pelas vozes e sons de proximidade, eu não estou a olhar para elas - à procura da docente que pode ter estado a dar aula na sala malcheirosa no bloco de aulas que aconteceu imediatamente antes do deste grupo de alunas.
4) A minha colega vem à porta da sala de professores, toma conta da ocorrência, as alunas dizem-lhe o que tinham já dito à funcionária; eu oiço a minha colega justificar-se também às alunas, oiço-a, por exemplo, perguntar às alunas se será mesmo a chulé já que na aulas estavam todos calçados.
5) O som das vozes e dos passos afasta-se; discretamente levanto-me e vou espreitar a sala: ainda ninguém tinha aberto as janelas da sala, ainda ninguém pusera a sala a arejar.
6) Deixo-me ficar a pensar... Os alunos aprendem a reclamar os seus direitos (têm legitimamente direito a uma sala de aula que, no mínimo, esteja isenta de odores corporais desagradáveis); os professores reconhecem  respeitam e fazem a pedagogia dos direitos dos alunos; os funcionários procuram ajudar os alunos e facilitar a vida dos professores. Mas, verdadeiramente, ninguém tomou a iniciativa clara de resolver imediatamente o problema como era preciso ele ser resolvido.
7) Que educação é esta que está a acontecer? Será que é isto que tanto depois se critica ao chamado "Estado Providência"? Que temos o direito de esperar que alguém resolva seja o que seja  por nós?
8) Será que isto aconteceu mesmo? Ou isto é uma ficção que construí num momento de descompressão da exaustão ao final da manhã de aulas, numa sequências de dias a fio - fim de semana incluído - de trabalho intenso? Na verdade, apuro o ouvido: lá em baixo as coisas estão calmas, a porta da sala está fechada. Será que cheirava mesmo a chulé na sala de aula?

domingo, novembro 04, 2012

IDOSOS, ÉTICA E REFORMA


IDOSOS, ÉTICA E REFORMA
por Frei Bento Domingues, O.P.
(jornal Público, edição de 4nov12, caderno Opinião)

1 Vivemos numa sociedade paradoxal: por um lado, alegramo-nos com o aumento da esperança de vida; por outro, os idosos são acusados de levar muito tempo a morrer. Gastam, não produzem e ainda se sentem no direito a receber uma reforma ou uma pensão dignas. Mas os casais novos também não escapam à censura: são responsáveis por sermos um país de velhos. Tinham obrigação de ter mais filhos. Como são egoístas, não se importam. Diz-se que lá virá o dia em que também eles verão as consequências desta falta de previdência.
Mais do que paradoxal, é niilista: não aguenta nem os idosos nem os novos. Se há queixas contra os idosos, os novos estão a ser preparados para nada. Diz-se que Portugal perde 2,7 mil milhões por causa de jovens inactivos. A grande alternativa parece ser a emigração, que não é um crime, mas esses jovens foram educados em Portugal e vão-se embora, sem pensar em ajudar quem por eles se sacrificou. Quando uma sociedade deixa de ser sujeito do seu destino e passa a ser objecto de contabilidade, não se vê possibilidades de acerto. As pessoas queixam-se de serem exploradas pelo Estado e o Estado diz que elas estão a ficar muito caras. Sentem-se todos prejudicados.
A nossa sociedade talvez não seja nem paradoxal nem niilista. Parece irreflectida.
Pensar em termos simplistas, como os que acabei de evocar, é o modo mais habitual de funcionar com os estereótipos, muito facilitados com a redução de tudo a números. Levou-se muito tempo a pensar em termos de deveres e direitos humanos, deveres e direitos de pessoas, sujeitos de dignidade. Agora, a propósito de tudo e de nada, só se pergunta quanto se perde e quanto se ganha. É um jogo de abstracções. As abstracções não choram, não riem, nem protestam. Uma boa máquina de calcular tornou-se o supremo órgão do pensamento. Os cursos de filosofia, de literatura, de teatro, de cinema, de música são artes de empobrecer alegremente, salvo casos geniais, que se descobrem, sobretudo, depois de mortos.
2. Para I. Kant, o ser humano não tem preço, tem dignidade. Nunca deverá ser um meio. É sempre um fim. Nas sociedades pluralistas em que vivemos, se os imperativos éticos não forem incondicionais, se a moral não tiver uma justificação, uma fundamentação, estas não serão pluralistas, mas relativistas, pois não haverá distinção entre bem e mal, tudo será aceitável - "vale tudo" -, basta que corresponda às tendências actuais, aos desejos de cada um, à moda. A pura actualidade sem horizonte, dominada pelo corropio das notícias, sem referência a uma orientação de longo alcance, tende a considerar tudo provisório, com medo do império de falsos absolutos. Será uma época que tem cada vez mais recursos, mas também um tempo de "meios sem fins".
As propostas éticas - que não sejam a sua negação - estão todas inseridas numa tradição. Procuram interlocutores na história.
Paul Ricoeur, sem juramentos de fidelidade ortodoxa a nenhuma delas, situou-se na confluência das tradições aristotélica e kantiana. Apresentou, várias vezes, o seu programa, da forma mais sintética: "A ética tem como objectivo a vida boa, com e para os outros, em instituições justas."
Como diz A.-J. Festugière, a norma para o grego não é "tu deves" (como é para Kant), mas "tu podes" ser humano, podes ser feliz.
Onde está o fundamento ético da reforma? Encontra-se na historicidade da condição humana. Não somos, vamos sendo. Importa que em todas as idades da vida, possamos contar com previdências e providências pessoais, comunitárias e sociais, para quando já não tivermos condições para cuidar de nós e dos outros.
Numa civilização pragmatista, os idosos não valem, estorvam; estão fora de prazo de validade. Paradoxo: caímos numa sociedade de idosos sem saber o que fazer com eles. Mas os reformados não podem ser indesejados e arrumados a um canto, à espera da morte, com medo ou como alívio.
3. Na chamada 3.ª idade reproduzem-se todos os aspectos da vida. Os idosos podem ser acarinhados ou maltratados, considerar-se indispensáveis ou a mais. Com a reforma - cuja idade pode variar - cessa a vida profissional, mas não acaba uma competência desenvolvida ao longo da vida. Deverá ter oportunidade de servir a comunidade, de fazer voluntariado, onde puder e quiser. Os idosos têm muito para dar, mas precisam de quem mostre alegria em receber.
Diz-se que já não produzem, mas quem contabiliza o que eles representam na família e na sociedade? A vida humana só se conta em euros? Fundamental é a sabedoria, mas quem sabe o seu preço?
Os idosos foram, em todas as culturas, considerados a sua memória viva. Fazem falta aos gestores de hoje. Os bons conselheiros não são, apenas, as pessoas de grande competência técnica. Sem sabedoria deita-se a perder o que ilusoriamente se ganhou.
Como escreveu Catarina Nunes, "um dia o mundo será um grande lugar onde ninguém é visto como velho, mas como alguém mais adiantado na jornada da vida". A isto se poderá chamar solidariedade entre gerações.

sábado, novembro 03, 2012

O Acordo Ortográfico e a tradução para português

Arrogo para mim a boa fé de aceitar escrever em acordo com o tão polémico Acordo Ortográfico (1). A ver o que ele dá, até porque, enquanto psicólogo, sempre tenho defendido que a lógica da escrita se deve aproximar da lógica da fala e da lógica do pensamento. Está já experimentalmente demonstrada a importância dessa aproximação, por exemplo, com o estudo das línguas orientais e as facilidades que essas línguas naturalmente proporcionam nas aprendizagens escolares fundamentais.
Começamos a dispor de tempo de experiência para avaliar a lógica, a eficácia e valor do Acordo Ortográfico. Começo a pensar que o saldo é desfavorável às alterações oficiais na escrita do português
A este propósito, gostei muito de ler, no passado domingo, dia 28 de outubro, o artigo de Paula Blank, "O Acordo Ortográfico e a tradução para português", publicado, sob o signo do "Debate Língua Portuguesa", na edição do Público (pág. 56).
Tomo a liberdade de transcrever para aqui esse artigo:

O meu trabalho consiste, em suma, na revisão de traduções do Inglês para o Português de manuais de instruções e interfaces do utilizador de equipamento médico. Vai desde a simples maca de exames utilizada nos consultórios médicos ao ventilador de cuidados intensivos ou desfibrilador cardíaco, de cujo correcto funcionamento e utilização dependem as vidas de tantos doentes por este país fora. Dependendo de o fabricante ser europeu ou americano, as traduções são produzidas – em geral – para Português de Portugal ou do Brasil, respectivamente. Por conseguinte, quando importamos da Europa, geralmente, repito, não há problema de maior; contudo, ao comprar equipamento nos EUA e com a globalização, consequentes fusões de companhias e migração de quadros pelo mundo inteiro, a situação complicou-se.

O que me chega às mãos está 90% das vezes muito longe do nível de qualidade que seria de esperar para qualquer tradução, quanto mais para traduções nesta área. Os exemplos são infindáveis, mas escolhi um que servirá para demonstrar aquilo de que falo. Na tradução do manual de um ventilador, feita por um tradutor brasileiro, lê-se:

“Usar o ventilador de maneira diferente como foi instruída pode causar danos ao digitalizar de RM.”

Uma tradução correcta do original em Inglês poderia ser assim:

“A utilização do ventilador de maneira diferente da que foi indicada nas instruções, pode causar danos ao aparelho de RM (ressonância magnética).”

Em praticamente todos os manuais traduzidos para Português do Brasil, e também no deste exemplo, chama-se “vazamento” a fuga, “cabo de força” a cabo de alimentação, “tela” a ecrã, “plugue” a ficha (um “plugue” que se “pluga”, do verbo “plugar”), “jack” a tomada, “leiaute” a disposição, “acurácia” a precisão, diz-se que a impressora “está aquecendo”, que “você tem de acessar isso” (aceder) ou “você deve apertar aquilo” (pressionar), os verbos reflexivos são conjugados ao contrário (“isso se faz assim” em vez de “isso faz-se assim”), etc.

O manual de um dispositivo de suporte de vida chega a ter 300-400 páginas e o deste exemplo era uma tradução que estava autorizada, em utilização em Portugal, e que só foi corrigida (1) quando o fabricante passou a fazer parte da gama de comercialização de certa empresa e (2) porque, depois de muita argumentação, o fabricante acabou por concordar em produzir uma versão em Português de Portugal.

Peço-vos que voltem a ler os exemplos apresentados. Não verão uma só instância de diferença ortográfica, o que prova a futilidade do esforço (inútil porque não o consegue) de uniformização ortográfica. A maioria dos manuais traduzidos no Brasil que eu revi estão escritos assim e, provavelmente, no Brasil até são textos perfeitamente aceitáveis, não sei, nem discuto. Mas em Portugal não. As traduções utilizadas em Portugal têm forçosamente que ser feitas por tradutores portugueses, em Português de Portugal, para que se possam cumprir os critérios exigíveis. E isso não basta, é preciso que o tradutor preencha outros critérios técnicos específicos, cuja discussão ficará para outra altura.

Contudo, há uma batalha contínua para que os dispositivos comercializados sejam acompanhados de instruções adequadas. A realidade é que os fabricantes pressionam os distribuidores portugueses a utilizar as traduções brasileiras em Portugal. Os argumentos são sempre os mesmos: (1) só se produz uma versão em Português e, dado que o Brasil é um mercado maior, a versão a produzir será em Pt-Br ou (2) temos que reduzir custos, por isso há que anular uma das versões em Português; o Brasil é um mercado maior, portanto eliminamos a versão Pt-Pt. Ponto final. Contra-argumentar dizendo que a sintaxe e a terminologia não são aceitáveis para textos que se destinam a profissionais clínicos, que os erros podem provocar acidentes de proporções mais ou menos sérias, é por regra inútil. Algumas vezes, felizmente, o esforço de argumentação é recompensado, e os médicos e enfermeiros em Portugal podem usufruir do privilégio de ler as instruções do dispositivo médico, que adquiriram em Portugal, num Português de fácil e natural compreensão. Sim, aquilo que devia ser um direito, que está previsto numa directiva europeia, que, por sua vez, foi transferida para a lei portuguesa, é no fundo, um privilégio. Quase um favor.

É, portanto, com profunda consternação que vemos o Governo português, que devia defender os nossos interesses, assinar um Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, que (defendem alguns) visa unificar a ortografia e resolver todas as diferenças entre ambos os registos do Português.

O Acordo Ortográfico, ao criar esta falsa noção de uniformidade, extremamente nefasta para o Português-padrão, tem um resultado terrível para a tradução, porque enche o mercado português de instruções que quanto mais técnicas, mais incompreensíveis são.

Mas ainda podemos inverter este erro colossal, assinando a Iniciativa Legislativa de Cidadãos. Para saber como assinar e ficar a saber mais pormenores, por favor, visite o portal http://ilcao.cedilha.net/.

(1) Além disso, sou professor do ensino secundário, condição que me obriga a escrever de acordo com o AO. Faço-o sempre desejando que os meus alunos desenvolvam a capacidade crítica para apreciarem as diferenças entre a escrita que faziam e a que fazem agora; e tomem depois a sua opção.


sábado, agosto 25, 2012

Kilimanjaro 2007 - 25 de Agosto de 2007, sábado (7.º dia)


25 de Agosto de 2007, sábado (7.º dia)


Programa proposto:
Day 7: The moor lands soon come to an end and the rocky path leads amongst outcrops to the Lava tower (this is optional if one not taking western breach) where there are good campsites (4600m, 5 hours) then continue to Barranco hut (3900m, 2hours).

Dados da expedição para este dia:
·                  Ponto de partida: Shira Camp 2 (3850 m)
·                  Ponto de chegada: Barranco Camp (3950 m)
·                  Progressão em altitude: 100 m
·                  Distância percorrida: 6 km
·                  Tempo de caminhada previsto: 8 horas (real: 08h32)
Condições do dia:
·                  Nascer-do-sol: às 07h10, já com o céu muito claro, vimos o sol aparecer pelo lado esquerdo do Kilimanjaro, a partir do ponto mais baixo visível, que sobe suavemente até ao topo
·                  Temperatura: na tenda, não medida; no exterior: 0º C
·                  Condições de tempo: céu limpo; algumas nuvens, muito finas, espalhadas, longe umas das outras; não há vento

A alvorada hoje foi às 06h30, o chá às 07h00, e o pequeno-almoço às 07h30. Saímos do acampamento às 08h22. A temperatura, entretanto, subiu para os 10º C.


Confirmam-se os indícios de planeamento e regulamentação das actividades com os grupos de turistas e montanheiros. Os guias e os carregadores, gente simples, pobre – sim, gente pobre; muito pobre -, são muito zelosos e cumpridores. Não lhes podemos chamar profissionais. Não o são, nem de perto, nem de longe. Só os guias possuem uma certificação oficial. Nas atitudes dos guias e das equipas de carregadores notamos que a sua relação com os turistas é regulada por princípios e normativos profissionais que visam proteger as pessoas dos turistas e proteger também as condições ambientais. Sentirmos isso faz-nos sentir em segurança, faz-nos ter respeito por eles; faz-nos pensar que o Kilimanjaro, no que deles depender, terá vigor e saúde por muito tempo.
O respeito que os guias e carregadores têm pelos turistas não é reverencial, nem subserviente. E isso torna-os muito dignos aos nossos olhos. Na verdade, não aturam complacentemente tudo aos montanheiros, são educadamente e discretamente firmes. Todos os visitantes da Montanha deverão cumprir regras de boa utilização daquele ambiente magnífico (por exemplo, quanto aos lixos e à satisfação das bem humanas necessidades fisiológicas para eliminar do interior do corpo as substâncias líquidas e sólidas residuais do metabolismo de assimilação de alimentos… Uf! Que eufemismos!... Será do respeito pela Montanha que nos penetra cada vez mais até aos ossos?). É verdade, não é qualquer moita ou chaparro que serve para o que costumamos fazer no campo. E – atenção! – eles, os guias e os carregadores, são os primeiros a dar o exemplo.
Também as estruturas que sinalizam os caminhos de ascensão ao topo do Kili revelam o planeamento e a organização. O mais engraçado de todos – pelo menos, na rota que fizemos – é capaz de ser o que mostramos na seguinte fotografia. Dispensa palavras, naquele ermo longínquo e de acesso muito difícil.

A progressão em altitude prevista para este dia é enganadora. Na verdade, o percurso prevê a ascensão até aos 4600 m, só depois descendo à altitude de Barranco Camp. A acentuar as dificuldades do dia, o valor da altitude a que efectivamente já nos encontramos, ou seja, ronda já os 4000 m. O percurso será difícil com subidas prolongadas, sempre em grande altitude, fazendo-nos tomar contactom mesmo que de mansinho, com os sintomas para que estamos bem avisados: dificuldades respiratórias e dores de cabeça. A vegetação é rasteira e a progressão será feita em passo lento. Nem a beleza da paisagem conseguia fazer esquecer os efeitos da altitude, especialmente sentidos pela companheira Cristina.
Só para se ter uma ideia das diferenças no ritmo de progressão durante o dia de hoje, veja-se o seguinte: às 09h27, uma hora depois de termos iniciado a ascensão de hoje, atingimos os 4000 m. Quer dizer, subimos 150 metros; mantínhamos uma cadência de passada de 57 passos por cada minuto. À tarde, por volta das 13h15, ainda a subir para Lava Tower, a cadência mantinha-se nos 58 passos por minuto. Às 16h00, depois de escalarem a Lava Tower, os rapazes desceram para Barranco Camp com uma cadência de 110 passos por minuto!
09h55. Atingimos os 4100 m. A temperatura é de 14º C. Fizemos uma pausa de descanso, praticamente à mesma altitude, às 10h30.
Intersecção da Lemosho Route com a Machame Route. 
O almoço decorreu já depois da intersecção com a Machame Route, um outro percurso alternativo de aproximação ao Kilimanjaro. Aqui, a Cristina, sentindo-se bastante afectada pela altitude com dores de cabeça, mau-estar e náuseas, resolveu tomar um comprimido de Diamox que é referido em vários sites como redutor dos sintomas negativos da altitude. Verificou-se que, pelo contrário, não só os sintomas se agravaram ao longo da tarde como ficou num estado febril.
13h13. O céu continua limpo e a temperatura está nos 16º C. Retomámos o caminho para Lava Tower. O grupo iria separar-se. As meninas, com o guia Augusto, seguiriam directamente para o acampamento de Barranco Camp; e os rapazes, com o guia António, seguiriam para escalar a “Lava Tour”, a 4600 m de altitude. A escalada era difícil, mas presenteou os corajosos “alpinistas” com uma vista soberba sobre o Barranco Valey. Chegaram ao topo da Lava Tower às 14h10.
Desceram daquela bem vertical irrupção rochosa e voltaram a pegar nas mochilas que tinham largado praticamente na base da Torre, para o assalto final ao topo da mesma, à força de pernas e mãos.
Outra vez na base, aproveitando um tempo de descanso, o Fernando foi fotografar os primeiros, ainda bem fraquitos, pedaços de neve velha. O Man’el e o Luís entretiveram-se a “espremer” o António com a tradução para swahili de palavras e expressões verbais para a canção que temos todos andar a congeminar.
Lava Tower. Lá em cima chegamos aos 4600 m. Desde a base, são à volta de 100 m que se erguem abruptamente
As mochilas ficaram lá atrás. Agora, sobe-se "à felino", "a quatro patas".

Sentados na lava arrefecida da Tower. Bom sítio para tentar ter sinal de rede no telemóvel.
Com o esforço do António, a nossa canção vai tomando forma em swahili.
Após esta experiência os rapazes dirigiram-se ao acampamento, percorrendo o Vale que tinham contemplado lá do alto, e que mais parecia uma paisagem pré-histórica devido à profusão de lobélias e senécios.
Barranco Camp, como o vamos ver na manhã do dia 26. Ao fundo, o Monte Meru (cerca de 4600 m). De permeio, um mar de nuvens que apetece pisar para lhes sentir a suavidade.
No acampamento, em Barranco Camp, deparámos com imensas tendas e diferentes grupos, já que os percursos começam a juntar-se, oriundos de diferentes rotas para o ataque final ao Kili.
A Isabel está aparentemente bem e com mais coragem. A Cristina, pelo contrário, está adoentada e, para cúmulo, partiu um dente a comer pipocas (a exigir indemnização ou reposição do trabalho clínico fracassado ainda em Lisboa). Após a lavagem habitual das mãos, jantou-se sopa, guisado de legumes, panquecas, ananás e chá, no final.

            Constituir este pequeno episódio como tema de jornada justifica-se fundamentalmente como alerta para outros que tenham oportunidade de uma aventura igual à nossa. Já se perceberá porquê.
            Como já dissemos no apontamento que deixámos sobre a nossa alimentação durante a ascensão ao Kilimanjaro, as refeições eram condicionadas pelas necessidades específicas da actividade; pelas condições de transporte e conservação adequada de produtos perecíveis; e pela conveniente “ocidentalização”, de maneira a que fosse fácil a nossa adaptação à alimentação que nos era oferecida.
            Ora, hoje, depois do jantar, saímos da tenda e, quando alguns de nós davam um pequeno passeio, demos de caras com toda a equipa de apoio tomando o seu jantar. Reparámos que o que comiam era muito diferente daquilo que punham na nossa mesa. Estavam a comer minúsculos peixes secos, que faziam lembrar os nossos “jaquinzinhos”, que misturavam com o tradicional puré branco antes de levarem à boca. Tivemos curiosidade de provar e não nos fizemos rogados quando os nossos guias nos puseram a jeito de experimentar. Sabia bem! E lamentámos que não tivéssemos contacto com mais pitéuzinhos deste género…
            Portanto, depois desta pequena ocorrência, deixamos aqui a sugestão de, se possível, se tal não mexer com a organização do projecto de subida ao Kilimanjaro, não deixem de coscuvilhar de que é feita a alimentação da equipa de apoio, talvez seja possível provar alguma coisa tradicional e saborosa.

Por conselho do guia Augusto, a Cristina foi para a caminha com 2 Ben-urons e ficámos a aguardamos as suas rápidas melhoras.
A deita foi às 20h30, em ambiência de nevoeiro.

sexta-feira, agosto 24, 2012

Kilimanjaro 2007 - 24 de Agosto de 2007, sexta-feira (6.º dia)


24 de Agosto de 2007, sexta-feira (6.º dia)


Programa proposto:
Day 6. A gentle walk across the plateau leads to Shira two camp on moorland meadows by a stream (3850m, 1.5 hours). A variety of walks are available on the plateau making this an excellent acclimatization day.

Dados da expedição para este dia:
·                  Ponto de partida: Shira Camp 1 (3500 m)
·                  Ponto de chegada: Shira Camp 2 (3850 m)
·                  Progressão em altitude: 350 m
·                  Distância percorrida: 5 km
·                  Tempo de caminhada previsto: 5 horas (real: 05h04)
Condições do dia:
·                  Nascer do sol: 06h53
·                  Temperatura: na tenda, 0º C; no exterior: -1º C
·                  Condições de tempo: céu completamente limpo; sem vento
Como de costume, a alvorada “oficial” foi às 07h00. E o chá para desfazer o jejum matinal, às 07h30. O pequeno-almoço, às 08h00. A saída para a jornada de hoje estava prevista para as 08h30. Os horários continuam a ser cumpridos quase cronometricamente.

Tema de jornada n.º 1 – O Emanuel, o assistente do grupo
É hora de apresentar o Emanuel. Quem é o Emanuel? 
O Emanuel e o Man'el
O Emanuel é o membro da equipa que nos garante o serviço das refeições no acampamento (o pequeno-almoço e o jantar); e nos faz a entrega da refeição volante do almoço. É, digamos, o nosso assistente. Todas as manhãs o Emanuel se certifica que nos levantamos à hora prevista[1], traz-nos as bacias de água quente para as breves lavagens da manhã; e a seguir nos serve o chá. Pouco depois chama-nos para a tenda do pequeno-almoço, onde acabámos por fixar os lugares[2]
A tenda das refeições e os lugares "marcados"
2 dias mais tarde... Eh! Eh! Eh!
O Emanuel ainda nos ajuda no ritual de preparação e distribuição da água a beber durante o dia: 
A preparação da água para a jornada do dia: a água é fervida no dia anterior, e filtrada; depois são adicionadas pastilhas desinfectantes. Só passadas 2 horas é que a água deverá ser consumida.
          
            Em rigor, a jornada de hoje iniciou-se às 09h10. Logo hoje, que falámos da precisão cronométrica!   Akuna Matata!...
A temperatura já tinha subido para os 14º C. O céu mantinha-se limpo, mas agora soprava um vento ligeiro, agradável. Percorremos um chão de rocha, muito poeirento.
            Aproveitando uma pequena pausa para descanso, um de nós abordou o assunto das neves do Kilimanjaro com o guia António. Perguntámos-lhe se ele sabia o que se dizia do aquecimento global e das neves do Kilimanjaro. O António pôs um ar sério, bem distinto do ar simpático e brincalhão com que ele constantemente procura manter-nos alegres e bem-dispostos. Percebemos que o assunto não lhe era desconhecido e que não era a primeira vez que o abordava. Tomou uma posição intimista, quase secretiva e disse-nos: Já vimos o Kilimanjaro sem neve nenhuma, talvez há 14 anos. E a neve voltou depois. Já voltou muita. Vai e vem. Mas ele falava com uma expressão de rosto que não confirmava o que as suas palavras pareciam dizer: que as neves seriam eternas, num movimento cíclico de vai-vem. Não, a expressão do seu rosto, e a tonicidade dos seus gestos não transmitiam tranquilidade, nem confiança; nem receio, também. Mostravam a seriedade de uma questão que estava ligada a uma forma de ganha-pão, por exemplo, para garantir o prosseguimento dos estudos da filha; e mostravam também a convicção na crença que a seguir exprimiu com clareza: Para mim, o Kilimanjaro, as neves do Kilimanjaro estão na mão de Deus, e só dele. Só ele sabe o futuro das neves do Kilimanjaro. Estas afirmações denunciam que ele (eles) já se apercebeu da irregularidade presente das neves que tantos turistas com dinheiro atrai; denunciam também que é preciso acreditar… ter fé… e, no que dele e dos seus colegas guias e carregadores depender, defender e preservar aquela imensa galinha de ovos d’ouro.
            Era para nós evidente que o António tinha vontade de continuar a conversa. O assunto é importante. Não está nas mãos dele, nem dos seus colegas; ou dos governantes do País. Está nas mãos de Deus. E, se calhar, Deus não tem sido claro nas suas intenções acerca do Kili. Já pareceu ser uma; e também a sua contrária.
            11h16. Estamos juntos a um pedaço de Natureza agradável, que convida ao descanso. Sob a orientação dos guias, largámos as mochilas por uns momentos e baixámos um pouco até uma pequena queda de água, uma preciosidade da região onde nos encontrávamos. A temperatura agora é de 18º C. O altímetro diz-nos que subimos à volta de 120 m nas 2 horas já andadas.

            Por volta das 12h20 fizemos paragem para almoço. Nesta hora subimos tanto quanto nas 2 horas anteriores, mais precisamente, juntámos 136m à altitude já conquistada. 17º C. O almoço de hoje era composto por sandes mista (tomate, ovo e pimento), coxinha de galinha frita, cenoura crua, ovo cozido, banana, laranja e bolinho. Um banquete!...
            14h14. Chegamos a Shira Camp 2, com uma temperatura de 16º C. Agora o céu está nublado, com algumas abertas.
            O percurso deste dia foi calmo e, como deixámos já entender, de declives geralmente suaves. Cruzámo-nos com poucos caminheiros. A vegetação é cada vez mais rasteira, à base de arbustos e entrecortada por alguns riachos, que começavam a surgir por entre as rochas. Viram-se as primeiras lobélias [ver ilustração …], plantas tipo cacto com um porte médio e cilíndrico, que marcaram a partir de aqui a vegetação da montanha com menos humidade e mais pedregosa. Ao longo do percurso de hoje aproveitámos para conversar um pouco mais com os guias. Estamos a tentar compor uma canção em Swahili, utilizando uma música popular alusiva ao Kilimanjaro e eles vão-nos ajudando a traduzir algumas palavras.
            Assim que chegámos à zona do acampamento, largámos as mochilas, servimo-nos das bacias de água quente e do sabonete para as ablações habituais desta hora, e fomos lanchar na tenda. Depois, como de costume, hasteámos a bandeira portuguesa.
            Hoje, a bandeira assim posta à vista de todos atraiu um grupo de espanhóis que tinham ali antes de nós, estavam num acampamento próximo, fazendo uma outra rota.
            Por volta das 18h00, os guias conduziram-nos para um passeio de aclimatação, que durou pouco mais de hora e meia e nos fez subir – e depois baixar – cerca de 150 m. A Cristina e a Isabel, que à chegada ao campo pareciam incapazes de dar mais um passo que fosse, à vista de “nuestros Hermanos” ganharam novo fôlego e acabaram por se decidir fazer o passeio de aclimatação com os restantes membros do grupo e – sobretudo! – com os parceiros espanhóis. 
O passeio foi muito divertido e proporcionou às meninas uma acentuada melhoria do seu estado físico e psicológico… E viva Espanha!...
18h05. Hora de jantar. Sopa de abóbora, com a tradicional farinha de milho que o nosso cozinheiro (e, ao que parece, todos os cozinheiros) gosta de pôr em tudo; arroz com cenoura crua, guisado de carne e legumes e salada de couve-flor e feijão verde. A sobremesa foi laranja e mais chá de gengibre. A Cristina preferiu chá de tília, para acalmar, pois começa a sentir os efeitos da altitude, nomeadamente no sono.
O gengibre, embora digestivo, é excitante. Após o jantar estivemos a iniciar a composição da nossa canção final mas, antes, o Kili presenteou-nos com uma visão da sua face clara à luz da Lua. O céu estava todo estrelado. O que nos reservará o dia de amanhã? Há a salientar que, no final do jantar, a Isabel (surpresa!...) não perguntou ao guia Augusto como era possível desistir.



[1] Bem, na verdade o Emanuel deveria acordar-nos às 7 horas da manhã, como faz com todos os grupos de montanhistas. Pois… só que, como os guias nos dirão mais tarde, numa fase de confiança pessoal mais garantida, nós formávamos um grupo muito activo, autónomo e colaborante, e antecipávamo-nos  sempre, e quando ele chegava às nossas tendas, já nós estávamos a pé… e prontos para o chá do desjejum, ao contrário da maioria dos grupos; por exemplo, de um recente grupo de alemães, que lhes deu muito trabalho, logo a começar na hora de tirar o rabinho da cama!... Estes alemães estilhaçaram-lhes os horários das sucessivas jornadas! É claro que se não fossemos todos fáceis de levantar da cama, o Man’el se encarregaria de se antecipar ao Emanuel. E, diga-se de passagem, a nós sabia-nos muito bem essa segurança no despertador Man’el. Mesmo que a gente falhasse, ele, de certeza, lá estaria. Ele é mais seguro que o melhor dos Rolex, Ómegas, ou quejandos!
[2] Na hora de arrumar os apontamentos e as fotografias para este documento final, constatámos que, afinal, pouco ou nada sabíamos do Emanuel. Com ele estivemos, com ele ganhámos alguma familiaridade, mas deixámos a Tanzânia sem saber um pouco mais sobre ele, a sua vida, as suas aspirações e ambições ou a sua família. Por qualquer razão, não se proporcionou que conversássemos e nos conhecêssemos melhor. Agora, a distância, temos pena. Na verdade, a progressão na escalada em si; o verdadeiramente pouco tempo de contacto com o rapaz, por causa da necessidade de cumprir os horários – no fundo, os nossos horários são de férias, mas os do nosso grupo de apoio são de trabalho, mesmo que a disponibilidade pessoal que todos revelam connosco seja notável); e a necessidade de se estar bastante atento aos pormenores da subida (as roupas, a água, a condição física) absorvem-nos completamente a atenção.

quinta-feira, agosto 23, 2012

Kilimanjaro 2007 - 23 de Agosto de 2007, quinta-feira (5.º dia)


23 de Agosto de 2007, quinta-feira (5.º dia)


Programa proposto:
Day 5: The trail gradually steepness and enters the giant heather moor land zone then crosses the Shira ridge at about 3600m to drop gently down to Shira 1 camp located by the stream on the Shira plateau (3500m, 5hours).

Dados da expedição para este dia:
·                  Ponto de partida: Mti Mkubwa Campsite (2750m)
·                  Ponto de chegada: Shira Camp 1 (3500m)
·                  Progressão em altitude: 750m
·                  Distância percorrida:
·                  Tempo de caminhada previsto: 5 horas (real: +/- 7 horas)
Condições do dia:
·                  Nascer do sol: 06h53
·                  Temperatura: na tenda, não medida; no exterior: entre 6 e 7º C
·                  Condições de tempo: céu completamente limpo; sem vento

Alvorada às 06h00. Chá na tenda às 07h00. Pequeno-almoço 07h30. Saída às 08h00.
Hoje acordámos às 6h00 com um “galo” a cantar... Era o Man’el, claro!... Quem mais poderia querer que toda a gente saísse bem cedinho da cama e não descansava enquanto não conseguisse o seu desiderato?...
 Arrumámos as mochilas e tomámos um bom pequeno-almoço com fruta, torradas, chá, café, cacau, leite, ovos e papa maizena.
A caminhada iniciou-se às 08h33. Desde que nos levantámos até começar a agora a temperatura subiu cerca de 5 graus, dos 7º para os 12º.
Caminhámos numa zona de floresta semi-tropical com árvores enormes, a que se seguiu uma zona de arbustos e mata menos densa. A paisagem era exuberante.
Às 09h55 fizemos a primeira paragem para descanso, com 18º C. O céu estava completamente limpo.
Começamos a ensaiar as primeiras canções na língua nativa. Os guias ajudavam.
Muzungo…
Ánápanda…
Mulima…
Kilimanjaro…
10h14. Pelas coordenadas locais, atingíamos, pela primeira vez, o meio da escalada. A vegetação torna-se decididamente arbustiva.
10h53. Atingimos os 3000 m. O céu está agora nublado, mas a temperatura continua a subir: 22º C.
11h43. Paramos para almoçar ligeiramente abaixo dos 3000m. 26º C, céu pouco nublado e absolutamente sem vento.
12h15. Retomamos a marcha.
15h15. Chegamos a Shira Camp 1. Tempo total da caminhada de hoje quase nas 7 horas. Foi um percurso difícil, com subidas muito longas e íngremes. Estávamos agora a 3500 m de altitude, mas antes atingíramos os 3600 m
17h05. Avistámos, pela primeira vez, as neves do Kilimanjaro, desde que iniciámos a subida. Um recorte imponente na paisagem.
As 17h05 já iam longe quando tirámos esta fotografia. As nuvens cobriam toda a montanha, excepto uma pequena região na base. Praticamente ficámos ali todo o tempo à espera que as nuvens se dissipassem.

O Campo Shira 1 fica num plateau/planalto imenso que permite que a nossa vista alcance bem longe.
Depois da excitação do primeiro contacto directo com o Kili, fomos finalmente lanchar. Chá e pipocas, como sempre, a marcar o fim do esforço da jornada. O jantar veio um pouco mais tarde. Sopa - óptima! - de legumes e massa com ratatouille e frango. Para a sobremesa havia abacate, mel e crepes. No fim, tomámos um chá de gengibre, disseram-nos os guias que era para ficarmos fisicamente mais vigorosos e de espírito mais forte.
Durante este percurso temo-nos cruzado com vários grupos de diferentes nacionalidades que, como nós, estão a fazer a subida do Kilimanjaro. Hoje cruzámo-nos com um grupo provavelmente pouco frequente (seria mesmo pouco frequente?...) Havia um contraste nítido entre a nossa estrutura relativamente pequena,  um grupo de 5 pessoas, e uma outra, de um grupo de 3 americanos… com 27 carregadores! Ou seja, uma proporção de 9 carregadores por escalador. Nós mantínhamos a proporção habitual: 2 carregadores por cada elemento do grupo. Será que até levariam camas com eles?...
 Amanhã, como será?... Teremos um dia fácil ou difícil? Mais uma vez a Isabel perguntou ao guia Augusto como seria o percurso daqui para a frente e se haveria possibilidade de desistir. O guia, bondosamente (e verdadeiramente, como pudemos comprovar depois) respondeu que o percurso do dia que se seguiria seria mais fácil do que o que o antecedia, ou seja, o dia de hoje.