quinta-feira, fevereiro 23, 2017

Do corpo à mente, da emoção ao pensamento

 Do corpo à mente, da emoção ao pensamento

Em jeito de "axiomas":
  1. Num texto que escrevi há tempos sobre as ideias de António Damásio, e que o notável neurocientista disse estar em conformidade com o seu pensamento, eu dizia que a emoção é a primeira forma de pensamento.
  2. Arbitrariamente, olhamos e começamos a falar do desenvolvimento do ser humano a partir do nascimento.
  3. Sabemos, cada vez mais claramente, que o bebé humano nasce com uma espantosa capacidade de entender e aprendizagem, e de estabelecer laços.
  4. As emoções acontecem no corpo e são reacções a estímulos que surgem de fora do indivíduo e também de dentro dele.
  5. O cérebro é constantemente informado por tudo o que acontece no corpo e de tudo guarda registo em estruturas neurológicas pré-estabelecidas.
  6. Parece que uma das mais radicais diferenças entre o ser humano e os outros animais é a sua capacidade de simbolização - que, no meu entender, se sustenta nessa capacidade que o cérebro tem de recolher informação sobre tudo o que se passa no corpo e dos registos que disso faz.
  7. Será facilmente consensual considerar que, quando nasce, o ser humano está sob o império da pressão das necessidades básicas ligadas à fome, ao sono, à temperatura corporal e à eliminação fisiológica.
  8. A sobrecarga (de produtos a eliminar - a urina e as fezes) e a carência (de alimentos, de sono, de calor) fisiológica provoca tensão neurofisiológica, que desperta um sinal de alerta sobre a forma de uma emoção - é como se o bebé "toma consciência" de que qualquer coisa não esta bem consigo.
  9. Dependente dos cuidados da mãe (ou de quem a substitua), absolutamente dependente, o bebé humano vem instintivamente programado para estabelecer laços - por necessidade, e (pelo menos secundariamente) por desejo; mais, parece que traz consigo competências instintivas fazer despertar nos outros o desejo de se ligarem a ele.
Tomando como aceites estes "axiomas", podemos olhar as primeiras etapas do desenvolvimento infantil, especialmente aquelas que ligam a acção ao pensamento, e o papel determinante da simbolização, da linguagem e das palavras nessa ligação, segundo a perspectiva daquele que, na opinião de muitos (entre os quais me incluo), é o autor português que melhor terá observado e falado sobre a dinâmica humana fundamental que nos leva da experiência corporal à fascinante experiência mental, que tem no pensamento a sua expressão mais extensa e mais comunicável:
  1. Ao nascer, a criança reage como se fosse apenas um ser vegetativo, limitado aos processos de
    assimilação e desassimilação. A sua consciência elementar só conhece dois estados: o de neutralidade e o de incomunidade, quando sente a depleção das vísceras (Wallon), isto é, quando sente sede ou fome. (1)
  2. Pouco a pouco a mãe introduz, através das várias formas de comunicação - contacto cutâneo, movimentos que executa, alimentos que administra, palavras e carícias -, mais do que o bebé necessita para a sua satisfação fisiológica, algo que dá prazer. (1)
  3. Na verdade, não é sequer concebível que as relações da mãe com a criança se baseiem apenas em cuidados de ordem exclusivamente vegetativa. O que a mãe introduz a mais na sua relação com a criança, o que ela procura impor-lhe, tem um carácter emocional-afectivo a que pode chamar-se linguagem (comunicação ou linguagem extraverbal). (1)
  4. A criança aprende o que há de mais fundamentalmente humano - o falar - no contacto com a mãe e de uma forma nada comparável com o que se chama correntemente ensino. A criança fala porque a mãe impregna de afecto e de palavras o ambiente em que vive e porque lhe permite toda a espécie de experiências verbais, desde o grito e do balbucio ao emprego das palavras e frases. A mãe procura ligar os sons que (por imitação ou por acaso) a criança emite aos objectos e às pessoas que a cercam; utiliza todas as formas de sedução para impor à criança o uso de uma linguagem verbal que está na base do desenvolvimento mental do homem. (2)
  5. É na primeira e na segunda infância que o pequeno ser humano se faz homem, que aprende a jogar com os objectos, sentimentos e símbolos; quando essa experiência fundamental não é possível nessas idades, a inteligência não se desenvolve. (3)
________________________
(1) João dos Santos e outros, “Educação Estética e Ensino Escolar, Lisboa, Publicações Europa-América”, 1966, p. 23.
(2) João dos Santos e outros, “Educação Estética e Ensino Escolar, Lisboa, Publicações Europa-América”, 1966, p. 46.
(3) João dos Santos e outros, “Educação Estética e Ensino Escolar, Lisboa, Publicações Europa-América”, 1966, p. 47.

terça-feira, fevereiro 14, 2017

Pensar a paixão, o amar e o namorar com a ajuda de Eça de Queiroz

Um acaso engraçado juntou o Dia dos Namorados ao meu mestre João dos Santos e ao patrono da
"Breakfast", 2015, pertence à série O Primo Basílio, feita a partir do romance de Eça de Queirós
 com o mesmo nomeCORTESIA: GALERIA MARLBOROUGH FINE ARTS, LONDRES
minha escola, Eça de Queiroz.
Na semana passada, uma reflexão de Sérgio Niza pôs-me à procura de um texto de João dos Santos. Já o li - mas que texto! Um dia dele falarei.
A procura, muito difícil, fez-me saber de outro; e nova procura. Chegou-me hoje pelo correio! No Dia dos Namorados. No velho caderno de "O Tempo e o Modo" encontrei três excertos de "O Primo Basílio"!
O caderno de "O Tempo e o Modo" é sobre... precisamente, o casamento! Por isso a minha ênfase ao Dia dos Namorados.
A subir a escada rolante do Metro dos Olivais, a seguir ao almoço - e depois de ter passado a manhã no Tivoli com alunos a assistir ao espectáculo "Europa: que paixão!" (onde, diga-se de passagem, com muito pouco jeito se tentou fazer a analogia do título da peça musical à celebração dos namorados), um antigo e muito querido aluno abanou-me num susto pelas costas. Trocámos um abraço e algumas palavras a saber como vai a vida de um e do outro.
Já a despedida: "Para onde vai, professor, vai para a escola?", "Sim, vou.", "Vai dar aulas?", "Não. Olha, vou escrever uma coisa sobre o Dia dos Namorados.", "Olha o Dia dos Namorados! Oh... pois sim, eu é que estou sempre sozinho...", "Sozinho, é até ao dia chegar, não te preocupes - e já quase a gritar, depois do abraço de despedida -, tantas vezes as coisas vêm quando a gente menos espera." Só não quis foi dizer-lhe "Não te preocupes, não tenhas pressa." É um conselho muito ambivalente, que cada vez mais pais usam com filhos... na casa dos trinta anos!
Voltando ao caderno de "O Tempo e o Modo", se João dos Santos nele escreveu respondendo ao convite-desafio de três perguntas que lhe foram dirigidas na qualidade de psicanalista, Eça, por seu lado, viu-se arbitrariamente escolhido por alguém - que teria dito ele sobre o assunto do casamento se sobre isso fosse directamente solicitado para o fazer?
Ora bem, na minha opinião, no conjunto geral do caderno, publicado em Março de 1968, os excertos - três, todos retirados de "O Primo Basílio - são interessantes, harmonizam-se bastante bem com tudo o mais escrito neste livro extra-colecção de "O Tempo e o Modo".
Vejam lá se o que Eça escreve conserva ou não - tanto no conteúdo como na forma - pleno sentido para os dias de hoje:
É que o amor é essencialmente perecível, e na hora que nasce começa a morrer. Só os começos são bons. Há então um delírio, um entusiasmo, um bocadinho do céu. Mas depois!... Seria pois necessário estar sempre a começar para poder sentir?... Era o que fazia Leopoldina. E aparecia-lhe então nitidamente a explicação daquela existência de Leopoldina, inconstante, tomando um amante, conservando-o uma semana, abandonando-o como um limão espremido, e renovando assim constantemente a flor da sensação! (in "O Tempo e o Modo", Extra-colecção, 2.º Caderno, «O Casamento», Março de 1968, p. 183)
Curiosamente, o texto - notável! - de João dos Santos ajuda-nos a entender a vivência destes sentimentos breves, efémeros; paroxísticos, quase - que a intensa e viperina publicidade das sociedades consumistas modernas exploram à saciedade - mas o texto de João dos Santos ficará para outra redacção, que em breve aqui sinalizarei.