sexta-feira, junho 30, 2017

Cultura. Avisos. Rossio, e a Rua da Betesga.

O monumental livro de Dietrich Schwanitz, "Cultura, tudo o que é preciso saber" é uma tentativa - mais uma! - de condensação da História do Mundo (pelo menos do mundo ocidental), de acordo com a tradicional imagem de enfiar o Rossio na Rua da Betesga.
A edição que eu estou a ler é a 16.ª, revista e adaptada para Portugal pela D. Quixote, em Janeiro deste ano. Embora o autor tenha morrido em 2004, a informação na borda da capa é omissa nessa informação - não deixo de me perguntar porquê...
Parece-me um livro arejado, escrito por quem tem muita informação; e é como se estivesse à mesa do café, bebericando uma muito agradável cerveja, e fosse falando sobre os acontecimentos do Mundo e a História dos Europeus. Tenho clara certeza de que o meu interesse na obra foi decisivamente determinado pelo facto de ser um estudioso alemão; se fosse inglês, francês, espanhol ou português, seguramente o deixaria para ser comprado na Feira do Livro do ano que vem. moveu-me a curiosidade de ter a perspectiva "do outro lado", a dos que estão fora das "narrativas" dos vencedores das Grandes Guerras. Vou agora a meio do livro. Vale bem a pena. É de 1999, pois é, mas só agora me apareceu à frente.
Se duvidava sobre escrever e publicar sobre uma das perplexidades que para já nele encontrei, a leitura de um apontamento que o senhor Capitão de Abril, o coronel Sousa e Castro, acrescentou hoje ao seu mural no Facebook, levou-me as dúvidas que tinha: é que é mesmo necessário pensarmos a sério nestas coisas da Paz e da Guerra, como, há cerca de 50 anos, nos Estados Unidos da América, o célebre professor de História de um grupo de alunos tomou consciência, quando interrogava os seus alunos sobre se um fenómeno social e político como Hitler e o Nazismo seriam possíveis novamente, e um dos seus alunos lhe respondeu que não - "é que os jovens, dizia muito empavoadamente o rapaz, hoje em dia estão muito bem informados". Preocupado, esse professor "montou-lhes uma cilada", pedagogicamente muito bem feita, e no tempo de uma semana de trabalho, literalmente falando, desenganou o convencido aluno e os seus colegas - o que deu origem às sucessivas edições de "A Terceira Onda" e "A Onda" (readaptação para os tempos actuais numa escola alemã) - filme notável!, que todos os anos mostro aos meus alunos de Psicologia.
Ora o convencimento do rapaz, de há 50 anos atrás, é o mesmo dos rapazes de agora!...
Já agora, a quem não conhece este documentário, recomendo-o vivamente: A Terceira Onda.
Então, o que diz o alemão Schwanitz, lá do alto da sua poderosa, e muito bem sustentada, reflexão cultural? Diz duas ou três coisas que nos devem obrigar a pensar:
«Hoje é inimaginável a onda de alegria que a eclosão da [Primeira Grande] guerra causou, sobretudo na Alemanha. O conflito foi vivido como a fusão do indivíduo com o colectivo numa festa que aliviava as limitações de uma vida cristalizada na rotina de uma sociedade industrial.» (p. 210)
Alegria?!... Pela guerra?!...
Mais à frente, o interessante autor escreve:
«As gerações nascidas depois da guerra perguntam: Qual foi a causa de tamanha loucura? A identidade romântica dos alemães, conjugada com a sua submissão cega à autoridade do Estado. Esta mistura especializou-os em duas modalidades não olímpicas: a obediência incondicional e a submissão da ralidade pela fantasia. Hitler oferecia-lhes as duas: milícias e fantasias nacionalistas. Ditoso o povo que dá o seu amor a mulheres e homens que sabem pensar pela sua cabeça e não admitem ser tratados por menores nem aceitam qualquer ordem que não possam aceitar como certa.» (p. 224)
Finalmente, do ponto de vista que quero aqui explorar:
Os alemães tinham-se identificado com Hitler até ao fim e seguiram-no até à ruína. Nunca um governante fora tão popular entre os alemães como ele. Primeiro, tornara-se a personificação da sua patologia, depois, induzira-os a celebrar com ele uma festa de bruxas sem precedentes: estas coisas unem. Ainda hoje a Alemanha se encontra possuída por ele, quando jura de dois em dois minutos que já o superou. (p. 232-3)
 Onde quero eu chegar? Que, invocando Rodrigo Sousa e Castro, Capitão de Abril, devemos ter umas Forças Armadas que nos protejam dos alemães, sempre sequiosos de guerras e da conquista do Mundo? Não senhor. "Apenas" (ironizo, como se de uma coisa de somenos importância de tratasse...) que a Guerra e a Paz, as Armas e os Exércitos, têm de ser lúcida e seriamente pensados - sempre! -, até porque as granadas e balas por aí agora espalhadas - roubadas às forças armadas a sério! - não têm como destino as bombas de carnaval e os fogos de artifício das passagens de ano. E parece-me esse o sentido do alerta do senhor coronel Sousa e Castro: que se pense a sério, nas instâncias responsáveis, sobre as Forças Armadas, e as maneiras de manter a Paz e evitar a Guerra. Com o fogo não se brinca!

domingo, junho 25, 2017

O padre António Vieira, os escravos e os índios do Brasil

Não tenho estabilizado, nem pacificado, o entendimento sobre o que o padre António Vieira fez e disse sobre a escravatura, os negros (africanos traficados para o Brasil) e os índios (nativos da América do Sul).
Não conheço ainda o suficiente da obra e dos escrito do padre António Vieira, o que me leva a ter a ideia (espero que errada) de que os nativos índios eram os filhos queridos, e os traficados negros eram os filhos, enfim, "bastardos" (no sentido tradicional de serem desvalorizados, quiçá, desprezados).
Foi pura coincidência, ontem, ler, no "Cultura", de Dietrich Schwanitz,
[...] Isto conduz à segunda catástrofe: raptam-se em África negros que suportam o clima e o trabalho nas plantações e vendem-se como escravos. Na Lisboa manuelina, com cerca de cem mil habitantes, dez mil são escravos [...] (D. Quixote, 16.ª edição, p. 133)
e a notícia da inauguração da estátua do padre António Vieira, em Lisboa, no Largo Trindade Coelho.
Eu sei qual é a pedra no sapato que ainda tenho por causa do padre António Vieira: é que ele aceita e/ou defende o conceito de "guerra justa", que, no entender dele, legitima a escravatura - e é sobre isto que eu tenho ainda de ler ainda um pouco mais na tremenda e absolutamente fascinante obra do nosso imperador. Sim, absolutamente, ele é o imperador de que Fernando Pessoa fala.
A favor de Vieira estão as seguintes palavras do seu sermão, classificado como sendo o XXVII dos Sermões do Rosário:
Todas estas razões de Séneca se reduzem a uma, que é serem também homens os que são escravos. Se a fortuna os fez escravos, a natureza fê-los homens: e por que há de poder mais a desigualdade da fortuna para o desprezo, que a igualdade da natureza para a estimação? Quando os desprezo a eles, mais me desprezo a mim, porque neles desprezo o que é por desgraça, e em mim o que sou por natureza. A esta razão forçosa em toda a parte se acrescenta outra no Brasil, que convence a injustiça e exagera a ingratidão. Quem vos sustenta no Brasil, senão os vossos escravos? Pois, se eles são os que vos dão de comer, por que lhes haveis de negar a mesa, que mais é sua que vossa? Contudo, a majestade ou desumanidade da opinião contrária é a que prevalece, e não só não são admitidos os escravos à mesa, mas nem ainda às migalhas dela, sendo melhor a fortuna dos cães que a sua, posto que sejam tratados com o mesmo nome. Que importa, porém, que os senhores os não admitam à sua mesa, se Deus os convida e regala com a sua? 
Ora bem, ganharão aqui os escravos negros africanos a reboque dos escravos índios americanos... mas a questão do conceito de "guerra justa" é mesmo, por enquanto, uma valente pedra no meu sapato. Talvez seja a minha visão - estreita - de português, europeu e cidadão do mundo tardio mais de 300 anos em relação ao tempo da assombrosa figura da Cultura Portuguesa e Mundial.
Além disso, o padre António Vieira terá parceiros de peso - na verdade, nem a cidade ideal da fascinante Utopia de Thomas Moore dispensa a escravatura... de guerra ou castigo justo...
É, para mim, é assunto ainda em aberto.