domingo, julho 29, 2007

Fim do banco, com a licença (que espero concedida) do Bruno Nogueira

O texto-poema que o Bruno Nogueira escreveu há pouco tempo num dos seus blogues parece-me de tal forma (tristemente) bonito e com tal impacto afectivo na maioria das pessoas, que, pela primeira vez, repito aqui o que deixei escrito já noutro blogue.
E se o deixei lá pela maneira como ele seguramente vai marcar a minha pessoa, aqui, destina-se apenas a espalhar um pouco mais o valor educativo que contém e que deveria ser explorado em qualquer área de formação das ciências humanas.

Foi assim que eu escrevi no outro blogue:

Ao domingo de manhã, alguns dos meus amigos, conhecidos ou familiares deixam-se ficar na cama, a acabar os sonos insuficientes da semana de trabalho; outros, com a devoção que manda cuidar da mente através do corpo, vão correr para o parque ou para a praia; outros ainda, levados por outra devoção, vão à missa.
Eu vou quase sempre, ao domingo de manhã, a Abrantes, ver a minha madrinha, velhinha de 84 anos, ao Lar de Idosos.

Sempre que saio do pé dela, trago a imagem da sua lucidez triste e repetidamente me interrogo sobre o que verdadeiramente sente e pensa. Um dia cruzei-me à saída do Lar com o Padre Narciso, velho de carnes secas, mas enérgico e sorridente, que, quando me deu aulas de Canto Coral há quase 40 anos, já não era novo. Disse-me ele, sobre a minha madrinha: "Tenho muita admiração por ela, ela sofre muito em silêncio."
Quando estou à beira dela - Deolinda é o seu nome - faço-lhe festinhas nas mãos e no cabelo, componho-lhe, tanto quanto posso (Ela sempre foi muito vaidosa!...), a roupa agora demasiadamente larga, e espalho-lhe no rosto, com muito cuidado, um creme hidratante. E falo-lhe da família. Às vezes, do Tejo e da cidade.
Hoje, já no regresso a Lisboa, tive a felicidade de ouvir Pedro Rolo Duarte, no seu habitual programa radiofónico sobre a Blogosfera, recitar um texto que ajudou a apaziguar as interrogações que trago sempre que regresso, aos domingos, de Abrantes para Lisboa.
É esse texto que quero deixar a todos já aqui:



Fim do banco
A idade vai comendo a vida.
Vai ratando o futuro, e nós (eles) a verem.
Acorda-se com um dia a menos, e adormece-se com um dia a mais.
O calendário vai-nos mudando o corpo.
Vai-nos empurrando as costas, para a queda ser pequena.
Os velhos sabem de cor o chão.
Como quem sabe que está quase a chegar lá.
Desde que perdi a minha avó, que ganhei o respeito por quem mora no terceiro andar da idade.
Perde-se para ganhar.
E assim foi.
Emociona-me.
Que vida inteira pode ser sentada sozinha, num banco de jardim?
Com a idade, nunca escolhem o meio, sempre o fim do banco.
Em crianças, ter-se-iam sentado na outra ponta?
E deixam-se estar.
Respiram como podem.
Os olhos já não procuram nada.
Já viram tudo.
Vão guardando o passado em rugas, para libertar a cabeça.
Em que pensam?
Na morte?
Os velhos não vivem. Deixam-se viver.
Os filhos já têm a vida deles, não os querem.
Têm de ir viajar e fazer compras para o jantar.
"O pai tem estado bem? Então vá, um beijinho."
Picaram o ponto, e para eles está feito.
Os novos choram com o corpo todo, gritam e fazem caras de quem sofre.
Os velhos choram só com os olhos, que o resto não se vê.
E assim o fazem, no fim do telefonema.
Ninguém os quer com as doenças cheias de idade.
As mãos da idade cheiram a tudo, com as veias cansadas de mostrar o sangue a toda a gente.
As pernas vão perdendo caminho.
Os braços deixam de abraçar.
O coração começa a falhar, já bateu demais mesmo para quem amou pouco.
Vai-se esquecendo de bater.
E uma noite, sem avisar, desaprende.
Desliga os olhos e atira o corpo para o fim.

Ocupam agora o banco todo.
Do principio ao fim, todo ele é corpo.
E os filhos, cansados de telefonar, resmungam.
Morreram oitenta e dois anos, e nem mais um dia.
A cidade não pára, o mundo não interrompe, nada.
Os filhos enterram vinte anos, e guardam os outros sessenta e dois.
Os últimos vinte davam trabalho e de pouco valiam.
Não têm vagar para os guardar.
Mas de hoje em diante, esses vinte vão acordá-los todos os dias.
Até se deitarem sozinhos no banco que os vai deitar.

posted by Bruno Nogueira @ Segunda-feira, Junho 11, 2007
http://corpodormente.blogspot.com/