segunda-feira, fevereiro 15, 2016

A malta do Leste, têm todos a mania...

Domingo, quatro e meia da tarde, tudo muito tranquilo no ginásio.
Deixo a passadeira, o treino de marcha correu lindamente. Passo pelo conjunto de aparelhos onde vou fazer o breve exercício dos músculos dorsais, os aparelhos estão todos livres - que maravilha! Posso ir beber água descansadamente, tenho tempo, daqui a pouco estarão ainda livres; mesmo que dois ou três deles fiquem ocupados, não há problema, sobrará o outro para mim.
E foi mesmo assim - pois claro, é mesmo domingo!, quanto volto, continuam todos livres. Vou para o meu preferido, regulo a carga. Componho bem a postura, sopro três ou quatro baforadas lentas, controladas; estou pronto, começar!...

Um... dois... três...
Olho em frente, fixo a atenção em dois rapazes que saíam de um aparelho lá longe e se dirigem para a zona onde eu estava.
Quatro... cinco...
Não deixo de olhar para eles, o contraste é grande: um deles é muito alto, certamente a chegar ao metro e noventa, o outro parece um pouco mais baixo do que eu, quer dizer, terá menos de um metro e setenta. E vêm mesmo na minha direcção! São claramente de algum país do leste. O mais alto tem os olhos azuis acinzentados de todos eles bem fixados em mim; também não desvio dele os meus, homessa! Que venha, o que quer ele?!...
Cinc..., não, é quantos é que vou?... O gajo já me fez perder a conta... Seis... sete...
Estão agora parados bem à minha frente, menos de um metro nos separa. O matulão olha-me, parece que quer que eu perceba que me diz: "Olhe, amigo, demora muito ou faz serão? Está a perceber que a gente quer ir para esse aparelho, não está?... Isso não é para si, olhe bem p'ra nós... Já viu quem é devia estar aí?"
Olha-me de alto a baixo, não sei se me mede, se me desafia - se calhar, as duas coisas.
Costumo parar o exercício aos 12 movimentos; pois hoje vou até aos 24!
Nove... dez... onze...
O gajo vem mesmo para cima de mim! Já não há disfarce nem engano possível!
Doze... treze... catorze...
- "Senhor - diz ele. É mesmo do Leste, com aquele sotaque! - não é assim, não faça assim..." e exemplifica ali à minha frente, chega a tocar-me nas mãos tentando corrigir-me.
Perco novamente a conta, e duvido: será que, afinal, o gajo não é um bruto provocador? Sorrio educadamente a agradecer-lhe. Verifico, pela expressão dele, que não estarei a fazer como me sugeriu. Não é uma expressão de crítica ou desdém; até parece mesmo de alguma preocupação. Adiante...
Sentam-se os dois ali nos dois aparelhos à minha frente, sem ninguém a ocupá-los, parecem bancos de jardim; olham-me como se eu estivesse num palco a actuar! E os pavões do Leste a apreciar!... Olha para o que eu havia de estar guardado!... Ai, é?!...
Doze!... Treze!... Catorze!...
E fui até aos vinte e quatro; se calhar, pensavam que me intimidavam!... Saio do aparelho, mas deixo-me ficar ali à frente, como que nem-para-mim-nem-para-eles. Eles permanecem tranquilamente a conversar um com o outro. Afasto-me um pouquinho, mas só mesmo um pouquinho! Depois mais um pouquinho... Agora já estou claramente afastado do aparelho. Até que estranho que eles não avancem para o aparelho. É que não avançam mesmo!... De tal forma que me volto para eles e faço-lhes sinal de que podem usar o cobiçado aparelho. O há pouco meu inesperado "monitor" levanta-se e pergunta-me: "O senhor não vai usar mais?... Podemos usar?..." Respondi-lhe que sim. Olhou-me com delicadeza e sorriu um "Obrigado!" que me pareceu muito bem-educado. Fiz o meu papel, fui simpático como convinha; até já começava a pensar que o rapaz seria um correcto e cordial parceiro de ginásio; mas parecia que queria que o rapazinho me desse ainda mais alguma prova nesse sentido.
Como quem não quer a coisa, fui pôr-me a alguma distância, num aparelho em que poderia observar os rapazes; o "monitor" estava irrepreensivelmente equipado, com cinturão de musculação e tudo!
Pois, nem era daqueles brutamontes com os músculos inchados um a um; tinha mais a configuração atlética de um esguio nadador de competição.
Reparei que procurava instruir o seu amigo, tal como fizera comigo - e como o fazia com muito cuidado; agora, ao vê-los, percebi o que ele tinha querido dizer-me e corrigir-me... No fundo, eram dois miúdos, pelitos de barba mal semeada; mas gajos com cultura de partilha de um espaço comum, em que todos podem ser reconhecidos como iguais, e em que quem sabe mais pode ajudar quem sabe menos.
Agora estava o "meu" monitor a fazer exercícios no "nosso" aparelho. Dirigi-me a ele, olhos nos olhos. À medida que me aproximava, reparava que a expressão do rosto do rapaz se contraía num meio de dúvida, meio de apreensão. Pareceu-me até que susteve a respiração, à espera; ele sabia que eu lhe ia dizer alguma coisa.
Esperei que ele acabasse o exercício, nós os dois sempre olhos nos olhos. Assim que acabou, pus-lhe a mão esquerda sobre o ombro, e dei-lhe uma palmada cordial.
- "Venho agradecer-lhe o cuidado que teve comigo há pouco..."
O rapaz parecia não perceber; o outro, o mais baixinho, parecia uma estátua a olhar-nos.
- "Naquele bocadinho em que veio corrigir os meus movimentos, tentou ajudar-me mais do que os monitores do ginásio, todos juntos, tentaram ajudar-me durante este ano todo em que já cá ando."
Eu falava devagar, não fosse a compreensão dele da língua portuguesa o impedir de entender tudo o que eu lhe estava a dizer.
- Obrigado! Foi muito simpático da sua parte. - disse-lhe ainda, a estender-lhe a mão para um aperto.
O rapaz sorriu, finalmente. Respondeu ao meu cumprimento e comentou:
- Ah, não foi nada; e o senhor tem razão, estes monitores não ajudam ninguém, só se andarem atrás de algumas raparigas é que vão ao pé delas ajudá-las..."
Rimo-nos os dois. Dei-lhe outra palmada amiga nas costas e afastei-me. Percebi que o amigo lhe foi logo perguntar o que tinha sido a nossa conversa.
Por mim, a caminho da sauna, eu pensava que tinha de contar esta aos meus alunos - os preconceitos, os estereótipos, os juízos apressados, estão sempre no nosso caminho, estamos sempre a tropeçar neles. O que eu pensei destes rapazes, e a lição que eles me deram!

quinta-feira, fevereiro 04, 2016

Mais uma acha para a fogueira dos trabalhos de casa

Vem este apontamento a propósito de um texto publicado na Internet em jeito de apontamento de blogue.
O título: Divulgação: Carta aberta ao dr. Eduardo Sá
A autora: Lúcia Teixeira

"Não posso sair. Tenho de ajudar o meu pai a fazer os meus trabalhos de casa."
Para lá dos "considerandos" e doas finalmentes", o texto versa os recorrentes temas educativos, ou escolares, dos trabalhos de casa e dos exames.
Agora vou trazer mais uma acha para a fogueira dos trabalhos de casa; depois, noutro apontamento, a acha dos exames. Ciente, evidentemente, de que a fogueira nunca deixará de arder.
Saúdo a Lúcia pela publicação do texto; e pela polémica que conseguir estimular.
A velha questão: sim ou não aos trabalhos de casa?
Esclareço que, enquanto professor, e como se diz no vulgar linguajar das coisas de escola, sou daqueles que passo trabalhos de casa aos alunos (de propósito, não digo se o faço sempre, regularmente, às vezes, ou poucas vezes).
Parece-me que, em geral, a questão não é formulada da forma mais conveniente; mas também não é, evidentemente, uma falsa questão.
Comecemos por aqui:
Qual é o pai ou mãe que não gosta de ver o seu filho, a sua filha, em casa, dedicando-se autonomamente, voluntariosamente, gostosamente, concentradamente, a estudar? Estudar autonomanente não pode ser interpretado (perversamente, ou psicanaliticamente, ou sanchopançamente) como uma maneira de auto-imposição de trabalhos de casa? Sejam os pais professores ou não; psicólogos ou não; outras coisas ou não...
Dito isto, parece-me que a discussão entre os adeptos dos trabalhos de casa e os adeptos dos não-trabalhos de casa é uma discussão ente adeptos da mesma visão dos assuntos da escola e da educação. Quer parecer-me que enformam os opostos adeptos da mesma visão do mundo, da escola e do lar.
Psicologicamente ou sociologicamente falando, é uma visão redutoramente estereotipada; filosoficamente, é uma visão estereotipada descarteana. É a visão do OU ou OU: ou casa, ou escola; ou escola, ou casa.
- Isto é mesmo complicado! Posso fazer um intervalo e ver um bocadinho de televisão?
- Vá lá, pai!... Ou queres ser o culpado das minhas más notas... como de costume...
Vamos lá a ver: será que acreditamos mesmo que para as crianças o aprender é para a escola, tipo emprego das 9 da manhã às 5 da tarde, e que o brincar e os mimos é para casa depois do emprego, perdão!, depois da escola? Será que no sentir e no pensar das crianças há mesmo essa descontinuidade mental, social, direi mesmo, civilizacional? Às 9 da manhã, eu, criança, esqueço os afectos da família; às 5 da tarde, eu, criança, aceno "adeus, escola, até amanhã!"
Estabelecer esta distinção, ou dicotomia, ou oposição, é esquecer - se não mesmo ignorar - a natureza do pensamento e das motivações naturais da criança. Os "especialistas" que esquecem ou ignoram são incompetentes, quer dizer, mas que especialistas da treta! Tanto Piaget que se estuda! Tanto Erikson que se estuda! Tanto Vygotsky que se estuda! Tantos outros autores que se estudam! Pelos vistos, para não serem adequadamente assimilados como Piaget nos mostrou há muito tempo que tem de ser a informação para se transformar em conhecimento e sabedoria.
Cuide-se a sério dos afectos, cuide-se a sério das naturais  e espontâneas motivações das crianças para aprender, que logo se verá que a questão dos trabalhos de casa deixa de ser um terreno de lutas desnecessárias, improdutivas... que estragam os afectos e as aprendizagens!
A sábia cultura popular há muito que nos avisa que o óptimo é inimigo do bom; e todos nós sabemos - até quem manda trabalhos para casa sabe isso - que trabalhos de casa a mais são desaconselháveis e ineficazes.
Resumindo e concluindo: não estou do lado dos que defendem que não deve haver trabalhos de casa, que os trabalhos de casa invadem o espaço das boas relações familiares. Vou continuar a passar trabalhos de casa, tentando ser sábio, ou ponderado; ou as duas coisas, a fazê-lo.
Lúcia, repito o que já disse noutro lado: gostei muito de ler o seu tão saudavelmente provocador, ou polémico, ou denunciador, ou "desabafador"texto! Beijinhos!

quarta-feira, fevereiro 03, 2016

As bonecas de Anne Frank e os lobos do neto do velho índio

"Plagio" um jovem imigrante brasileiro que conheci há alguns anos (solteiro) em Lisboa, de quem me tornei muito amigo; que voltou para a sua terra (casado, com uma jovem da mesma nacionalidade) e constituiu uma família maravilhosa:
- "Juro por Deus que é verdade o que lhe estou dizendo, é do fundo do coração!"
O que eu "estou dizendo" é que assim que acabei de ler o "Sobrevivi ao Holocausto", de Nanette Konig, fui ler o "Os Sete Últimos Meses de Anne Frank", de Willy Lindwer; a seguir, publiquei dois apontamentos sobre o livro de Nanette Konig noutro dos meus blogues; e agora estou a ler o "No rasto de Anne Frank", de Ernst Schnabel.
No segundo apontamento que escrevi sobre o "Sobrevivi ao Holocausto", de Nanette Konig, reproduzi (tenho-o feito tantas vezes!...) a sábia história do velho índio e do seu neto, que aqui deixo outra vez:
Em uma noite, um velho índio falava ao seu neto sobre a luta que acontece dentro das pessoas. Disse ele: – Há uma luta entre dois lobos que vivem dentro de todos nós - um deles é bom; o outro é bom. O neto pensou nessa luta e perguntou ao avô: – Qual é o lobo que vence a luta, avô? O velho índio respondeu ao neto: – Vence o que lobo que tu alimentares...
Curiosamente, no livro de Schnabel, acabei de ler o seguinte, que considero notável, e que nos chama a atenção para a universalidade de qualquer coisa muito profunda, muito humana, e que, na verdade, está no âmago das preocupações e da luta de Nanette Konig: a educação dos sentimentos bons que povoam a condição humana, e o domínio dos sentimentos maus que também são parte da nossa natureza mais genuína.
Transcrevo integralmente o trecho do livro, que mostra um muito interessante exemplo dessa educação que todos os educadores - pais, professores, líderes sociais e líderes políticos - têm de ser capazes de fazer:
«E aqui começa uma outra história bem singular:
             Kati contou-me, e Gertrud depois confirmou, que a família Frank não se compunha só de quatro pessoas. Havia ainda dois companheiros de casa, companheiros invisíveis, mas familiares a toda a gente. Ninguém já se lembra de quem os descobriu primeiro no quarto das crianças. O sr. Frank não está bem certo de não ter sido ele próprio. Mas seja como for, não há dúvida de que existiam e mesmo as avós e os amigos da casa eram capazes de o jurar.
            Essas estranhas criaturas já lá estavam quando nasceu Anne, de modo que ela conheceu-as desde cedo e aprendeu a contar com a sua presença, aliás impossível de ignorar. Tratava-se de dois duendes femininos de idade variável, mas de qualidades invariáveis. Ambos se chamavam Paula. As pessoas da casa distinguiam as duas Paulas porque chamavam a uma Boa e a outra Má. que eram criaturas invisíveis, eu já disse, mas apesar disso criaram-se juntas com a Margot, e quando apareceu a Anne, recomeçaram e criaram-se com a Anne. A sua maneira de agir era inteiramente diferente. Paula, a Boa, nunca deixava ficar nada no prato, enquanto Paula, a Má, passava o tempo a brincar com a colher e a amuar se a comida não era aseu gosto. Só Paula, a Má, podia ter a ideia de arrancar as pernas às moscas. Era mesmo o que ela mais gostava. A Boa, em contrapartida, era meiga e bem comportada e nem sequer era capaz de puxar pelos cabelos da irmã, como por vezes, faziam as outras raparigas.
           
Em resumo: os Frank tinham o seu "Struwwelpeter" particular, e as duas Paulas eram companheiras úteis. Da relação que há entre a acção e a recompensa não se aprendia, no entanto, nada com elas. Eram como eram, a Boa boa, a Má má, e representavam o Bem e o Mal, tais como existem na vida. Não havia quem as louvasse ou repreendesse pelos seus feitos. Neste particular procedia-se de modo diferente do livro de Struwwelpeter. As duas Paulas não queriam ser exemplos, mas apenas possibilidades entre as quais se podia escolher. 
            Comiam à mesa com a família e eram aceites com serenidade. Margot sabia, desde sempre, qual das duas lhe convinha, mas a Anne custava-lhe escolher. Sentia a mesma simpatia pelas duas amigas singulares. Não que lhe fosse difícil decidir-se, mas o que lhe era difícil era manter a decisão e, assim, guardava durante muito tempo fidelidade às duas. Caminhava entre elas, por caminhos um tanto aos ziguezagues. Já se vê, por vezes agarrada a uma, por vezes a outra, e pouco a pouco, sem que ela o percebesse, as duas Paulas transformaram-se nas duas Annes, nesta Anne e naquela, e é "Kitty" quem, mais tarde, saberá, através das muitas cartas do diário, quanto custa mostrar um só coração quando se possuem dois.
            Anne nunca se esqueceu inteiramente das duas companheiras. Nos papéis que se encontraram junto do diário, apontou em 22 de Dezembro de 1943:
            "Antigamente, quando eu era ainda pequena, o Pim falava-me muitas vezes da Paula, a má. Contava-me várias histórias dela e nunca me cansei de as ouvir. Agora quando estou junto dele, de noite..."
             ... Tratava-se daquelas noites angustiosas do penúltimo Inverno da guerra, quando os aviões sobrevoavam Amsterdão e o velho anexo na Prinsengracht estremecia com o barulho das bombas...
             "... agora ele tornara a falar-me, por vezes, da Paula e a última história que me contou, transcrevi-a..."
            Segue-se uma história de várias páginas. Mas não se fala nela de uma Paula má, mas apenas de uma má rapariga da idade de Anne. O Bem e o Mal uniram-se numa pessoazinha muito viva e bem visível, agora.
            Há guerra nesta história, uma outra guerra, já se vê, mas também Paula vive coisas difíceis e tem de fugir, pois caiu nas mãos dos Russos. Há passagens fantásticas nesta história que parece ser verdadeira, mas outras são, no entanto, tão simplórias que se adivinha a invenção. É uma história da guerra de 1914-18, e Otto Frank contou-a a Anne. Deve conter tanta verdade como qualquer outra história improvisada.
            Tudo acaba em bem: Paula consegue fugir e regressar a casa dos pais, em Frankfort. Mas antes disso há um momento em que ela, abandonada na Rússia, suspira:
            "Gente estranha, os Russos. Deixam-me entregue ao meu destino, numa terra estranha. Os Alemães, isso sei eu, agiriam de outra maneira, num caso destes..."
             E Anne acrescentou, em 1943, entre parentesis, este suspiro:
            "Ao ler isto deve considerar-se que Paula era uma rapariga alemã..."»
(in  No Rasto de Anne Frank, de Ernst Schnabel, Livros do Brasil, 2003, pp. 23-26)