Domingo, quatro e meia da tarde, tudo muito tranquilo no ginásio.
Deixo a passadeira, o treino de marcha correu lindamente. Passo pelo conjunto de aparelhos onde vou fazer o breve exercício dos músculos dorsais, os aparelhos estão todos livres - que maravilha! Posso ir beber água descansadamente, tenho tempo, daqui a pouco estarão ainda livres; mesmo que dois ou três deles fiquem ocupados, não há problema, sobrará o outro para mim.
E foi mesmo assim - pois claro, é mesmo domingo!, quanto volto, continuam todos livres. Vou para o meu preferido, regulo a carga. Componho bem a postura, sopro três ou quatro baforadas lentas, controladas; estou pronto, começar!...
Um... dois... três...
Olho em frente, fixo a atenção em dois rapazes que saíam de um aparelho lá longe e se dirigem para a zona onde eu estava.
Quatro... cinco...
Não deixo de olhar para eles, o contraste é grande: um deles é muito alto, certamente a chegar ao metro e noventa, o outro parece um pouco mais baixo do que eu, quer dizer, terá menos de um metro e setenta. E vêm mesmo na minha direcção! São claramente de algum país do leste. O mais alto tem os olhos azuis acinzentados de todos eles bem fixados em mim; também não desvio dele os meus, homessa! Que venha, o que quer ele?!...
Cinc..., não, é quantos é que vou?... O gajo já me fez perder a conta... Seis... sete...
Estão agora parados bem à minha frente, menos de um metro nos separa. O matulão olha-me, parece que quer que eu perceba que me diz: "Olhe, amigo, demora muito ou faz serão? Está a perceber que a gente quer ir para esse aparelho, não está?... Isso não é para si, olhe bem p'ra nós... Já viu quem é devia estar aí?"
Olha-me de alto a baixo, não sei se me mede, se me desafia - se calhar, as duas coisas.
Costumo parar o exercício aos 12 movimentos; pois hoje vou até aos 24!
Nove... dez... onze...
O gajo vem mesmo para cima de mim! Já não há disfarce nem engano possível!
Doze... treze... catorze...
- "Senhor - diz ele. É mesmo do Leste, com aquele sotaque! - não é assim, não faça assim..." e exemplifica ali à minha frente, chega a tocar-me nas mãos tentando corrigir-me.
Perco novamente a conta, e duvido: será que, afinal, o gajo não é um bruto provocador? Sorrio educadamente a agradecer-lhe. Verifico, pela expressão dele, que não estarei a fazer como me sugeriu. Não é uma expressão de crítica ou desdém; até parece mesmo de alguma preocupação. Adiante...
Sentam-se os dois ali nos dois aparelhos à minha frente, sem ninguém a ocupá-los, parecem bancos de jardim; olham-me como se eu estivesse num palco a actuar! E os pavões do Leste a apreciar!... Olha para o que eu havia de estar guardado!... Ai, é?!...
Doze!... Treze!... Catorze!...
E fui até aos vinte e quatro; se calhar, pensavam que me intimidavam!... Saio do aparelho, mas deixo-me ficar ali à frente, como que nem-para-mim-nem-para-eles. Eles permanecem tranquilamente a conversar um com o outro. Afasto-me um pouquinho, mas só mesmo um pouquinho! Depois mais um pouquinho... Agora já estou claramente afastado do aparelho. Até que estranho que eles não avancem para o aparelho. É que não avançam mesmo!... De tal forma que me volto para eles e faço-lhes sinal de que podem usar o cobiçado aparelho. O há pouco meu inesperado "monitor" levanta-se e pergunta-me: "O senhor não vai usar mais?... Podemos usar?..." Respondi-lhe que sim. Olhou-me com delicadeza e sorriu um "Obrigado!" que me pareceu muito bem-educado. Fiz o meu papel, fui simpático como convinha; até já começava a pensar que o rapaz seria um correcto e cordial parceiro de ginásio; mas parecia que queria que o rapazinho me desse ainda mais alguma prova nesse sentido.
Como quem não quer a coisa, fui pôr-me a alguma distância, num aparelho em que poderia observar os rapazes; o "monitor" estava irrepreensivelmente equipado, com cinturão de musculação e tudo!
Pois, nem era daqueles brutamontes com os músculos inchados um a um; tinha mais a configuração atlética de um esguio nadador de competição.
Reparei que procurava instruir o seu amigo, tal como fizera comigo - e como o fazia com muito cuidado; agora, ao vê-los, percebi o que ele tinha querido dizer-me e corrigir-me... No fundo, eram dois miúdos, pelitos de barba mal semeada; mas gajos com cultura de partilha de um espaço comum, em que todos podem ser reconhecidos como iguais, e em que quem sabe mais pode ajudar quem sabe menos.
Agora estava o "meu" monitor a fazer exercícios no "nosso" aparelho. Dirigi-me a ele, olhos nos olhos. À medida que me aproximava, reparava que a expressão do rosto do rapaz se contraía num meio de dúvida, meio de apreensão. Pareceu-me até que susteve a respiração, à espera; ele sabia que eu lhe ia dizer alguma coisa.
Esperei que ele acabasse o exercício, nós os dois sempre olhos nos olhos. Assim que acabou, pus-lhe a mão esquerda sobre o ombro, e dei-lhe uma palmada cordial.
- "Venho agradecer-lhe o cuidado que teve comigo há pouco..."
O rapaz parecia não perceber; o outro, o mais baixinho, parecia uma estátua a olhar-nos.
- "Naquele bocadinho em que veio corrigir os meus movimentos, tentou ajudar-me mais do que os monitores do ginásio, todos juntos, tentaram ajudar-me durante este ano todo em que já cá ando."
Eu falava devagar, não fosse a compreensão dele da língua portuguesa o impedir de entender tudo o que eu lhe estava a dizer.
- Obrigado! Foi muito simpático da sua parte. - disse-lhe ainda, a estender-lhe a mão para um aperto.
O rapaz sorriu, finalmente. Respondeu ao meu cumprimento e comentou:
- Ah, não foi nada; e o senhor tem razão, estes monitores não ajudam ninguém, só se andarem atrás de algumas raparigas é que vão ao pé delas ajudá-las..."
Rimo-nos os dois. Dei-lhe outra palmada amiga nas costas e afastei-me. Percebi que o amigo lhe foi logo perguntar o que tinha sido a nossa conversa.
Por mim, a caminho da sauna, eu pensava que tinha de contar esta aos meus alunos - os preconceitos, os estereótipos, os juízos apressados, estão sempre no nosso caminho, estamos sempre a tropeçar neles. O que eu pensei destes rapazes, e a lição que eles me deram!
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