#TOLERÂNCIA211 - PÓS-VERDADE, 'FAKE NEWS, TRETAS (BULLSHIT): AS NOVAS VARIANTES DA ESTUPIDEZ
Li na edição 'on-line' da Sciences Humaines, com a data de 19 de Julho, um artigo assinado por Sebastian Dieguez, neuropsicólogo e investigador no Laboratório de Ciências Cognitivas e Neurológicas da Universidade de Friburgo.
Em tempos em que os conceitos "fake news" e "desinformação" parecem funcionar como elementos absorventes do mal-informar, dificultando a percepção clara das mentiras, dos seus autores, e da determinação de estratégias adequadas para combater as mentiras e os aldrabões, o texto de Sebastian
Dieguez parece-me oportuno e útil para um proveitoso esclarecimento conceptual: porque se tolera o "artista da treta" como não se toleram outros aldrabões?Vamos ao texto, ou melhor, ao primeiro terço dele, o artigo é muito grande.
«Quando a verdade se torna acessória e a desfaçatez faz lei, a estupidez ['connerie' no original francês] 2.0 instala-se no cerne do debate público. Bem-vindos à era da treta [do 'bullshit', da parvoíce].
»Num contexto de tensões diplomáticas, terrorismo e guerras intermináveis, de destruição metódica do nosso ambiente e de uma economia que só beneficia um punhado de indivíduos — aliás, sem indícios de que sejam particularmente inteligentes —, a nossa época parece totalmente devotada ao triunfo da estupidez. E se, no fundo, tudo isto não passasse de treta [bullshit]?
»Não que a estupidez não exista ou que a situação actual deixe de ser alarmante. Proponho antes que o que parece ser um declínio generalizado da inteligência se compreende melhor se interpretado como um aumento da treta. Na verdade, a estupidez não é — ou não é apenas — o oposto da inteligência. Pode-se ser muito inteligente e muito parvo: basta colocar qualquer intelectual num cargo político ou incentivar um qualquer especialista a falar sobre um tema que não domina. O que daí resulta chama-se treta.
»Segundo a célebre análise do filósofo Harry Frankfurt, a essência da treta é uma indiferença perante a verdade. Ao contrário do mentiroso, que precisa de manter um olho na verdade para a distorcer ou ocultar, o 'artista da treta' está-se nas tintas. Desata a dizer o que lhe vem à cabeça, desde que lhe convenha, sem qualquer preocupação com a veracidade ou falsidade do que afirma. Desbunda alegremente, e para tal dispõe de múltiplas estratégias: cortina de fumo, confusão deliberada, mudança de assunto, obscurantismo, lirismo, solenidade afetada, linguagem burocrática, discurso oco, tanga… Seja como for, o 'artista da treta', como diz Frankfurt, procura «safar-se» a custo zero, fingindo que diz algo quando na realidade não diz nada — no sentido de que não transmite qualquer informação relevante. A treta é, assim, uma forma de camuflagem epistémica: faz-se passar por contributo para a discussão, enquanto obstrui o seu avanço. É, em suma, o oposto do progresso discursivo.
»Porque toleramos este parasita intelectual? Afinal, o mentiroso, quando desmascarado, é geralmente repreendido, desprezado e rejeitado; já o 'artista da treta' parece agir com total impunidade. Por um lado, somos excessivamente indulgentes com a treta: se alguém diz qualquer disparate, o nosso primeiro reflexo é tentar encontrar sentido no seu discurso, inferir como poderá ser relevante na situação dada e, se necessário, fornecer uma interpretação que satisfaça essa necessidade. Muitas vezes, são as próprias vítimas da treta que fazem grande parte do trabalho por quem a produz.
»Por outro lado, a treta beneficia também de certa cultura predominante: se a desfaçatez, a autoconfiança, a 'autenticidade' e a 'sinceridade' forem mais valorizadas do que o simples acto de dizer algo claro e correcto, então a treta não só passará despercebida como poderá prosperar. Frankfurt concluía a sua análise com estas palavras: «A própria sinceridade é treta». Falar «com o coração», exprimir-se «com ardor e paixão», dizer «o que se pensa realmente», conversar «homem para homem», ser «directo» e «franco como um alqueire» — estes são, hoje, valores muito mais celebrados do que o rigor, a prudência, a precisão e a exactidão, chegando mesmo a substituí-los.
»Se esta análise estiver correcta, parece que temos uma explicação para o surgimento da «pós-verdade», definida pelos dicionários Oxford (que a elegeram a «palavra do ano» em 2016) como um adjetivo que descreve «circunstâncias em que os factos objetivos têm menos influência na formação da opinião pública do que os apelos à emoção e às crenças pessoais». O corolário imediato desta situação seria que qualquer pessoa que não partilhe a nossa opinião está 'de facto' errada, procura manipular-nos, é profundamente imoral e não respeita as nossas crenças — que são a nossa verdade. Daí resulta uma polarização do debate.
»Neste processo infernal, naturalmente, a verdade, os factos, a realidade das coisas, o que é verdadeiramente assim ou não, tornam-se conceitos totalmente secundários — quando não francamente suspeitos. Um observador imparcial, perante esta dinâmica em acção, não teria outra opção senão questionar-se: no fundo, não será tudo isto um pouco estúpido?
»Treta, pós-verdade, factos alternativos, notícias falsas e teorias da conspiração serão simplesmente os novos nomes que damos à parvoíce?»
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