domingo, abril 12, 2015

Será a miscigenação um notável e genuíno traço do modo de ser do português?

Tenho uma automática reacção alérgica quando se toca o assunto da atribuição de características ou traços de personalidade do "português", do francês", do "alemão", do "japonês", e tantos outros... quer dizer, todos os grupos humanos designados especificamente.
Acontece que - como tantas vezes já se passou!... - dois acontecimentos se produziram bem pertinho um do outro nas coisas que me ocuparam neste fim-de-semana; e deixaram-me a pensar...
É recorrente eu falar aos alunos na facilidade com que os portugueses se misturam com os Povos, com as Gentes, com que se cruzam - aconteceu assim, ao longo da nossa História, com os Mouros (os africanos do norte), com os Negros (os africanos do sul), com os Asiáticos e com os Índios do Brasil; e mais recentemente com as sociedades que têm acolhido os nossos emigrantes. (E, por agora, vou passar ao lado do papel dos homens, por ventura muito mais evidente que o das mulheres).
Por isso, quando ontem, de manhã, na Igreja da Graça dei de caras com os santos negros, quis logo saber se aquelas estátuas, com aquelas feições dúbias (europeus?... africanos?... seriam negros só por causa da cor da madeira?...) eram mesmo o que eu estava a pensar, ou melhor, o que eu queria que fosse mesmo; e eram: as estátuas representavam mesmo pessoas de pele negra.
Ao que pude perceber, foi no Algarve que aos pouco surgiu um culto, uma devoção aos santos negros, certamente explicada pela proximidade geográfica e histórica ao continente africano. E não é por acaso que na Igreja da Graça os santos estão à volta da imagem de Nossa Senhora do Rosário; na verdade, a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário permitia (terá sido durante muito tempo a única a fazê-lo) que os irmãos fossem pretos. A Irmandade juntava dinheiro para "desalforrear" os escravos e dava-lhes o trato humano que a todos os homens livres era reconhecido. Lindo!... Repare-se, não apenas lhes conseguem a carta de alforria como logo os valorizam, alcandorando-os a santos!
http://www.whitewolfpack.com/2015/04/10-native-american-quotes-about-mother.html
Ora, a segunda imagem do dia, com que me deparei pouco depois, foi a desta fotografia animada, que é um documento extraordinário! Pois é... estes, os europeus que colonizaram a América do Norte
praticamente aniquilaram as suas culturas, com chacinas, autênticos genocídios. Ainda hoje nem o infeliz Prémio Nobel da Paz, Barack Obama, reconhece e assume o trágico destino a que os "pavões" da Liberdade condenaram os Povos indígenas da terra que os colonos europeus indignamente reclamaram como sua.
Sim, gostei muito do que vi na Igreja da Graça; e pus-me a imaginar, com tristeza, o que terá o jovem nativo americano, que aparece aqui a dançar, enfrentado ao longo da vida, e como se terá decepcionado, protestado e rebelado...

domingo, abril 05, 2015

AS PALAVRAS E OS ACTOS DA FÉ; E A COERÊNCIA

AS PALAVRAS E OS ACTOS DA FÉ; E A COERÊNCIA


Cuidado com o que pedimos!... Cuidado com o que louvamos!
Deus não joga aos dados, pois não; e Deus também não dorme. Não dorme e pergunta-se se temos ou não ideia de onde nos levam as palavras e os actos, mesmo que genuinamente estejam ao serviço do Bem.
Uma muito interessante proposta de reflexão do Patrono da minha escola, Eça de Queirós, precisamente a propósito da Páscoa celebrada por um papa que agora quer honrar o nome, o pensamento, as palavras e as obras de Francisco de Assis.

"− O Senhor que tanto sofreu, por que me não manda a mim o padecimento bendito?"
Enfim, uma tarde, em véspera de Páscoa, estando a descansar nos degraus de Santa Maria dos Anjos,
avistou de repente, no ar liso e branco, uma vasta mão luminosa que sobre ele se abria e faiscava. Pensativo, murmurou:
− Eis a mão de Deus, a sua mão direita, que se estende para me acolher ou para me repelir.Deu logo a um pobre, que ali rezava a Ave-Maria, com a sua sacola nos joelhos, tudo o que no mundo lhe restava, que era um volume do Evangelho, muito usado e manchado das suas lágrimas. No domingo, na igreja, ao levantar da Hóstia, desmaiou. Sentindo então que ia terminar a sua jornada terrestre, quis que o levassem para um curral, o deitassem sobre uma camada de cinzas.
Em santa obediência ao guardião do convento, consentiu que o limpassem dos seus trapos, lhe
vestissem um hábito novo: mas, com os olhos alagados de ternura, implorou que o enterrassem num sepulcro emprestado como fora o de Jesus, seu senhor.
E, suspirando, só se queixava de não sofrer:
− O Senhor que tanto sofreu, por que me não manda a mim o padecimento bendito?De madrugada pediu que abrissem, bem largo, o portão do curral.
Contemplou o céu que clareava, escutou as andorinhas que, na frescura e silêncio, começavam a cantar sobre o beiral do telhado, e, sorrindo, recordou uma manhã, assim de silêncio e frescura, em que, andando com Francisco de Assis à beira do lago de Perusa, o mestre incomparável se detivera ante uma árvore cheia de pássaros e, fraternalmente, lhes recomendara que louvassem sempre o Senhor! “Meus irmãos, meus irmãos passarinhos, cantai bem o vosso Criador, que vos deu essa árvore para que nela habiteis, e toda esta limpa água para nela beber, e essas penas bem quentes para vos agasalharem, a vós e aos vossos filhinhos!” Depois, beijando humildemente a manga do monge que o amparava, Frei Genebro morreu.
[...]  Subitamente, porém, no alto, o prato negro oscilou como a um peso inesperado que sobre ele caísse! [...] Na alma de Frei Genebro correu um arrepio imenso de terror. O negro prato descia, firme, inexorável, com as cordas retesas. E na região que se cavava sob os pés do Anjo, cinzenta, de inconsolável tristeza, uma massa de sombra, molemente e sem rumor, arfou, cresceu, rolou, como a onda duma maré devoradora.
O prato, mais triste que a noite, parara - parara em pavoroso equilíbrio com o prato que rebrilhava. E os Serafins, Genegro, o Anjo que o trouxera, descobriram, no fundo daquele prato que inutilizava um Santo, um porco, um pobre porquinho com uma perna barbaramente cortada, arquejando, a morrer, numa poça de sangue... O animal mutilado pesava tanto na balança da justiça como a montanha luminosa de virtudes perfeitas! 
Frei Genebro morreu mas não foi para o Céu; o Senhor mandou-lhe ainda o padecimento bendito que ele, em queixa pressurosa, tanto pediu.
Está aqui o texto integral, com o título Frei Genebro.