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quarta-feira, março 27, 2013

Assim é a vida, mas eu não concordo.

O padre José Fernando, no hospital do Fundão,
no dia 20 de fevereiro de 2011, a partilhar memórias
com um velho companheiro de seminário;
essas memórias estariam também à disposição
de toda a gente, no livro que publicou pouco depois.
«"Assim é a vida, mas eu não concordo." Foi esta a frase e eu só queria, ao relembrá-la a glória de a poder ter inventado.»
Quem um dia assim escreveu foi Fernando Pessoa, que a ouviu "a um homem que não sei quem é". Diz ele um pouco mais à frente que "É a história inteira da humanidade nas suas relações com a Natureza.". 
O padre José Fernando tinha esta rebeldia. Acompanhei-o muitas vezes às dececionantes consultas de oncologia que sempre, sempre, sempre, o avisavam que ele não tivesse ilusões - ele era um homem com uma doença em evolução. Mas o padre José Fernando não concordava que a sua vida fosse assim - porfiava perante a descrença médica, quase arrancava para si os tratamentos que era preciso ousar. Um dia, os exames mostraram que os assassinos nódulos estavam a dar de si. A voz que teimava em avisá-lo que não se deixasse levar por ilusões sorriu pela primeira vez e perversamente reclamou o triunfo para si: "Estamos a ganhar esta guerra, senhor padre!..." Desta vez foi o padre José Fernando que olhou os olhos da difícil voz e respondeu tranquilamente: "Eu sei onde vou chegar, mas, até lá temos de ver o que se consegue fazer ainda."
No mesmo escrito em que Fernando Pessoa escreveu a notável frase, ele regista uma outra, que relembra de ter ouvido a "outra mulher a um portal de casa por onde passei: «Ora ele morreu lá disso. Ele morreu, mas foi de ter que morrer!"»
Sim, o padre José Fernando sempre soube muito lucidamente que assim é a vida, mas ele não concordava. E nesta rebeldia contra o destino que nos leva a saúde e a vida, ele deu-nos sempre o exemplo do inconformismo que as coisas difíceis da vida precisam. A felicidade não existe na aceitação, mesmo que serena, do que nos está destinado; a felicidade faz-se na sabedoria ousada com que lidamos com o que nos está destinado em sorte, a bem da nossa paz e bem-estar; e a bem da paz e bem-estar dos que estão à nossa volta.
Abraço rijo, amigo-irmão!

domingo, fevereiro 10, 2013

Bote salva-vidas vira bote mata-vidas

Há absurdos infelizes, terríveis. Como este, em que a intenção seria treinar a proteção da vida. Só que, ao contrário do que se intencionava, morreram 5 pessoas.
A redação da notícia acentua a infelicidade da ocorrência quando diz que "vitimou apenas tripulantes", não passageiros. Apenas. Apenas tripulantes. Como se a vida dos tripulantes fosse outra vida, que valesse menos.

Queda de bote salva-vidas durante simulacro mata cinco pessoas
Por Redação

Cinco pessoas morreram e outras três ficaram feridas, este domingo, nas Canárias, depois de um bote salva-vidas de um cruzeiro ter caído ao mar durante um simulacro de emergência.

O acidente ocorreu quando o navio estava atracado em Santa Cruz de La Palma e vitimou apenas tripulantes da embarcação, não havendo registo de passageiros feridos, de acordo com o El Mundo.

Estava a decorrer um simulacro de salvamento quando um bote salva-vidas, com pessoas no seu interior, caiu ao mar, de uma altura de 30 metros, e ficou virado ao contrário.

Segundo o diário El Mundo, as vítimas, que trabalhavam no navio «Thomson Majesty», seriam de nacionalidade ganesa, indonésia e filipina.

Envolvido nas operações de socorro esteve um helicóptero do Grupo de Emergências e Salvamento (GES) do Governo das Canárias, elementos do Serviço de Urgências, médicos, mergulhadores, polícia local e guarda civil.

Os feridos foram transportados para o Hospital de La Palma.

16:42 - 10-02-2013

domingo, novembro 04, 2012

IDOSOS, ÉTICA E REFORMA


IDOSOS, ÉTICA E REFORMA
por Frei Bento Domingues, O.P.
(jornal Público, edição de 4nov12, caderno Opinião)

1 Vivemos numa sociedade paradoxal: por um lado, alegramo-nos com o aumento da esperança de vida; por outro, os idosos são acusados de levar muito tempo a morrer. Gastam, não produzem e ainda se sentem no direito a receber uma reforma ou uma pensão dignas. Mas os casais novos também não escapam à censura: são responsáveis por sermos um país de velhos. Tinham obrigação de ter mais filhos. Como são egoístas, não se importam. Diz-se que lá virá o dia em que também eles verão as consequências desta falta de previdência.
Mais do que paradoxal, é niilista: não aguenta nem os idosos nem os novos. Se há queixas contra os idosos, os novos estão a ser preparados para nada. Diz-se que Portugal perde 2,7 mil milhões por causa de jovens inactivos. A grande alternativa parece ser a emigração, que não é um crime, mas esses jovens foram educados em Portugal e vão-se embora, sem pensar em ajudar quem por eles se sacrificou. Quando uma sociedade deixa de ser sujeito do seu destino e passa a ser objecto de contabilidade, não se vê possibilidades de acerto. As pessoas queixam-se de serem exploradas pelo Estado e o Estado diz que elas estão a ficar muito caras. Sentem-se todos prejudicados.
A nossa sociedade talvez não seja nem paradoxal nem niilista. Parece irreflectida.
Pensar em termos simplistas, como os que acabei de evocar, é o modo mais habitual de funcionar com os estereótipos, muito facilitados com a redução de tudo a números. Levou-se muito tempo a pensar em termos de deveres e direitos humanos, deveres e direitos de pessoas, sujeitos de dignidade. Agora, a propósito de tudo e de nada, só se pergunta quanto se perde e quanto se ganha. É um jogo de abstracções. As abstracções não choram, não riem, nem protestam. Uma boa máquina de calcular tornou-se o supremo órgão do pensamento. Os cursos de filosofia, de literatura, de teatro, de cinema, de música são artes de empobrecer alegremente, salvo casos geniais, que se descobrem, sobretudo, depois de mortos.
2. Para I. Kant, o ser humano não tem preço, tem dignidade. Nunca deverá ser um meio. É sempre um fim. Nas sociedades pluralistas em que vivemos, se os imperativos éticos não forem incondicionais, se a moral não tiver uma justificação, uma fundamentação, estas não serão pluralistas, mas relativistas, pois não haverá distinção entre bem e mal, tudo será aceitável - "vale tudo" -, basta que corresponda às tendências actuais, aos desejos de cada um, à moda. A pura actualidade sem horizonte, dominada pelo corropio das notícias, sem referência a uma orientação de longo alcance, tende a considerar tudo provisório, com medo do império de falsos absolutos. Será uma época que tem cada vez mais recursos, mas também um tempo de "meios sem fins".
As propostas éticas - que não sejam a sua negação - estão todas inseridas numa tradição. Procuram interlocutores na história.
Paul Ricoeur, sem juramentos de fidelidade ortodoxa a nenhuma delas, situou-se na confluência das tradições aristotélica e kantiana. Apresentou, várias vezes, o seu programa, da forma mais sintética: "A ética tem como objectivo a vida boa, com e para os outros, em instituições justas."
Como diz A.-J. Festugière, a norma para o grego não é "tu deves" (como é para Kant), mas "tu podes" ser humano, podes ser feliz.
Onde está o fundamento ético da reforma? Encontra-se na historicidade da condição humana. Não somos, vamos sendo. Importa que em todas as idades da vida, possamos contar com previdências e providências pessoais, comunitárias e sociais, para quando já não tivermos condições para cuidar de nós e dos outros.
Numa civilização pragmatista, os idosos não valem, estorvam; estão fora de prazo de validade. Paradoxo: caímos numa sociedade de idosos sem saber o que fazer com eles. Mas os reformados não podem ser indesejados e arrumados a um canto, à espera da morte, com medo ou como alívio.
3. Na chamada 3.ª idade reproduzem-se todos os aspectos da vida. Os idosos podem ser acarinhados ou maltratados, considerar-se indispensáveis ou a mais. Com a reforma - cuja idade pode variar - cessa a vida profissional, mas não acaba uma competência desenvolvida ao longo da vida. Deverá ter oportunidade de servir a comunidade, de fazer voluntariado, onde puder e quiser. Os idosos têm muito para dar, mas precisam de quem mostre alegria em receber.
Diz-se que já não produzem, mas quem contabiliza o que eles representam na família e na sociedade? A vida humana só se conta em euros? Fundamental é a sabedoria, mas quem sabe o seu preço?
Os idosos foram, em todas as culturas, considerados a sua memória viva. Fazem falta aos gestores de hoje. Os bons conselheiros não são, apenas, as pessoas de grande competência técnica. Sem sabedoria deita-se a perder o que ilusoriamente se ganhou.
Como escreveu Catarina Nunes, "um dia o mundo será um grande lugar onde ninguém é visto como velho, mas como alguém mais adiantado na jornada da vida". A isto se poderá chamar solidariedade entre gerações.

sábado, junho 23, 2012

A natureza da vida e a natureza da morte

Nos textos que Baptista-Bastos reuniu no livro " A cara da gente, há um deles, "O caçador da grandeza humana", que o cronista alfacinha abre com versos de Jorge de Sena:
De morte natural nunca ninguém morreu.
Não foi para morrer que nós nascemos
........................................................
A morte é natural na natureza. Mas
nós somos o que nega a natureza.
Sou de opinião que não devemos concordar com o poeta autor destes versos. Nós somos mais que natureza, mas somos, antes de mais, natureza. Negar a natureza é impedir-nos definitivamente de nos encontrarmos connosco próprios, no ser integral, completo que cada um de nós é. É reduzir-nos a uma incompletude que nos afasta constantemente da fruição da sensação de bem-estar pleno.
Se somos natureza, porquê negá-la? Aceito que a desafiemos; que tentemos ir para além dela, juntando-lhe algo mais, que a nossa condição gregária (que nos foi dada precisamente pela nossa própria natureza) e a nossa inteligência criadora nos ajudam a alcançar. Não concordo que a neguemos.
Mais do que pensar na morte e entristecermo-nos com ela, revoltarmo-nos contra ela, ou resignarmo-nos a ela, temos é de pensar viver a vida, todos os seus momentos, de forma intensa. Dessa maneira sim, não negaremos a nossa natureza, nem a morte. Em vez de a negarmos, vamos sublimá-la, indo para além da condição biológica, vital, a que a natureza nos limita. Negar a morte no homem não é apenas negar a natureza, é negar o próprio homem.
Aceitar a morte é, em certo sentido, vencê-la na sua inexorabilidade; e nem é simplesmente porque se acredita que para além da vida que conhecemos há outra a que chegamos depois de morrermos.
Muito do que fazemos hoje de errado tem a ver com o esforço que fazemos para fugir da morte, sobretudo da nossa morte, não tanto a morte dos outros.
Pensar na vida, vivê-la intensamente, creio eu que nos realiza na nossa natureza e nos afasta, em sentido metafórico, mas também em sentido literal, da morte e da sua natureza.
É por pensar assim que escrevo este apontamento no espaço de escrita da escola. Quero mostrar aos meus alunos que, na minha ideia, os primorosos versos de Jorge de Sena são sereias que nos afastam da fruição do prazer de viver e o diminuem com o sabor, sentido como amargo, do que parece ser o contrário à vida: a morte.

Os versos completos do poema de Jorge de Sena:

A Morte, O Espaço, A Eternidade

De morte natural nunca ninguém morreu.
Não foi para morrer que nós nascemos,
não foi só para a morte que dos tempos
chega até nós esse murmúrio cavo,
inconsolado, uivante, estertorado,
desde que anfíbios viemos a uma praia
e quadrumanos nos erguemos. Não.
Não foi para morrermos que falámos,
que descobrimos a ternura e o fogo,
e a pintura, a escrita, a doce música.
Não foi para morrer que nós sonhámos
ser imortais, ter alma, reviver,
ou que sonhámos deuses que por nós
fossem mais imortais que sonharíamos.
Não foi. Quando aceitamos como natural,
dentro da ordem das coisas ou dos anjos,
o inominável fim da nossa carne; quando
ante ele nos curvamos como se ele fora
inescapável fome de infinito; quando
vontade o imaginamos de outros deuses
que são rostos de um só; quando que a dor
é um erro humano a que na dor nos damos
porque de nós se perde algo nos outros, vamos
traindo esta ascensão, esta vitória, isto
que é ser-se humano, passo a passo, mais.

A morte é natural na natureza. Mas
nós somos o que nega a natureza. Somos
esse negar da espécie, esse negar do que
nos liga ainda ao Sol, à terra, às águas.
Para emergir nascemos. Contra tudo e além
de quanto seja o ser-se sempre o mesmo
que nasce e morre, nasce e morre, acaba
como uma espécie extinta de outras eras.
Para emergirmos livres foi que a morte
nos deu um medo que é nosso destino.
Tudo se fez para escapar-lhe, tudo
se imaginou para iludi-la, tudo
até coragem, desapego, amor,
tudo para que a morte fosse natural.

Não é. Como, se o fôra, há tantos milhões de anos
a conhecemos, a sofremos, a vivemos,
e mesmo assassinando a não queremos?
Como nunca ninguém a recebeu
senão cansado de viver? Como a ninguém
sequer é concebível para quem lhe seja
um ente amado, um ser diverso, um corpo
que mais amamos que a nós próprios? Como
será que os animais, junto de nós,
a mostram na amargura de um olhar
que lânguido esmorece rebelado?

E desde sempre se morreu. Que prova?
Morrem os astros, porque acabam. Morre
tudo o que acaba, diz-se. Mas que prova?
Só prova que se morre de universo pouco,
do pouco de universo conquistado.

Não há limites para a Vida. Não
aquela que de um salto se formou
lá onde um dia alguns cristais comeram;
nem bem aquela que, animal ou planta,
foi sendo pelo mundo este morrer constante
de vidas que outras vidas alimentam
para que novas vidas surjam que
como primárias células se absorvam.
A Vida Humana, sim, a respirada,
suada, segregada, circulada,
a que é excremento e sangue, a que é semente
e é gozo e é dor e pele que palpita
ligeiramente fria sob ardentes dedos.
Não há limites para ela. É uma injustiça
que sempre se morresse, quando agora
de tanto que matava se não morre.
É o pouco de universo a que se agarram,
para morrer, os que possuem tudo.
O pouco que não basta e que nos mata,
quando como ele a Vida não se amplia,
e é como a pele do ónagro, que se encolhe,
retráctil e submissa, conformada.
É uma injustiça a morte. É cobardia
que alguém a aceite resignadamente.
O estado natural é complacência eterna,
é uma traição ao medo por que somos,
áquilo que nos cabe: ser o espírito
sempre mais vasto do Universo infindo.

O Sol, a Via Láctea, as nebulosas,
teremos e veremos até que
a Vida seja de imortais que somos
no instante em que da morte nos soltamos.
A Morte é deste mundo em que o pecado,
a queda, a falta originária, o mal
é aceitar seja o que for, rendidos.

E Deus não quer que nós, nenhum de nós,
nenhum aceite nada. Ele espera,
como um juiz na meta da corrida
torcendo as mãos de desespero e angústia,
porque nada pode fazer nada e vê
que os corredores desistem, se acomodam,
ou vão tombar exaustos no caminho.
De nós se acresce ele mesmo que será
o espírito que formos, o saber e a força.
Não é nos braços dele que repousamos,
mas ele se encontrará nos nossos braços
quando chegarmos mais além do que ele.
Não nos aguarda – a mim, a ti, a quem amaste,
a quem te amou, a quem te deu o ser –
não nos aguarda, não. Por cada morte
a que nos entregamos ele se vê roubado,
roído pelos ratos do demónio,
o homem natural que aceita a morte,
a natureza que de morte é feita.

Quando a hora chegar em que já tudo
na terra foi humano — carne e sangue —,
não haverá quem sopre nas trombetas
clamando o globo a um corpo só, informe,
um só desejo, um só amor, um sexo.
Fechados sobre a terra, ela nos sendo
e sendo ela nós todos, a ressurreição
é morte desse Deus que nos espera
para espírito seu e carne do Universo.
Para emergir nascemos. O pavor nos traça
este destino claramente visto:
podem os mundos acabar, que a Vida,
voando nos espaços, outros mundos,
há-de encontrar em que se continui.
E, quando o infinito não mais fosse,
e o encontro houvesse de um limite dele,
a Vida com seus punhos levá-lo-á na frente,
para que em Espaço caiba a Eternidade.

Assis, 1 de Abril de 1961, sábado de Aleluia

segunda-feira, novembro 08, 2010

O Kung-fu, para além da poluição da Televisão, do Cinema e da Net

Acabei de ler um delicioso artigo sobre o Kung-fu, na edição de Novembo da National Geographic Portugal (n.º 116, p. 64-81). O texto é de Peter Gwin e as fotografias de Fritz Hoffmann.
De lá, retiro, sem pensar muito, algumas frases que me ressoaram de maneira especial (os destaques são da minha responsabilidade):

  • Preocupam-no igualmente as armadilhas da fama. O seu mestre [Yang Guiwu] recomendou-lhe que se mantivesse humilde, mesmo quando superasse os outros alunos em seu redor. A humildade derrota o orgulho, prega mestre Yang. O orgulho derrota o homem.
  • No entanto, Hu explica que os combates não são a lição mais importante do kung-fu. Ele centra as suas lições na honra. Em cada rapaz ele procura sentido de respeito e disposição para "comer o pão que o diabo amassou", aprendendo a apreciar a adversidade, aproveitando-a para disciplinar a vontade e para forjar o caráter.
  • Pergunto [P. Gwin]: o kung-fu não é essencialmente um ato violento? E não contradiz os princípios da não-violência do budismo? Não, responde. No essencial, o kung-fu procura converter a energia em força. Na ausência de adversário, a prática compõe-se de uma série de movimentos. As próprias fraquezas físicas e mentais de um praticante transformam-se no inimigo. Com efeito, ele entra em combate consigo mesmo.
  • "Não se pode derrotar a morte" diz. Xi pontapeia o ar, equilibrando-se sobre a outra perna. "Mas pode-se derrotar o medo da morte."

domingo, junho 20, 2010

Uma palavra de homenagem a José Saramago

Uma palavra de homenagem a José Saramago


Se hoje tivesse sido inverno, se tivesse nevado... se eu hoje fosse a criança, eu teria pintado a neve de preto.

Saramago morreu a dizer-nos que não há céu, que o céu não existe; e que um dia deixamos de estar onde estamos agora, deixamos de ver as árvores que agora vemos. E depois disso não há mais nada.

Não sabemos, nunca, nunca, nunca, o que verdadeiramente cada um sente sobre a morte e sobre a sua própria morte. Podemos ler, reler e voltar a ler tudo o que Saramago disse sobre a vida, sobre a morte, e sobre a morte depois da vida. Sabemos que ele gostava de viver e que tinha pena de deixar de viver. Mas nunca saberemos o sentir que ele levou com ele. Nem quando ele diz que gostava que lhe pusessem, de vez em quando, uma flor junto às suas cinzas, para ele pensar que se lembravam dele.

Tomando o sentido de palavras que tanta vez repetiu, Saramago não morreu aconchegado com a Esperança, nem com a Fé. Desejo, muito sinceramente, que tenha tido o aconchego mais importante de todos, que a todos os seres humanos desejo: esse mesmo, o aconchego humano. Este sentir, eu consigo sentir empaticamente, e isso reconforta-me.

domingo, junho 06, 2010

Escravos e Multiculturalidade - História e Mar

Na nossa escola, a Escola Secundária Eça de Queirós, cada vez mais o valor que nos é reconhecido, é o da multiculturalidade e da diversidade étnica e nacional.
Entretanto, as páginas dos manuais oficiais de História que continuamos a usar na escola - e outros, nas outras escolas - continuam a ser escritas com enérgicas pinceladas de glória no que à nossa relação com o Mar diz respeito.
Terminei hoje a leitura do romance de José Eduardo Agualusa, "Nação Crioula", publicado em 1998, e galardoado com o Grande Prémio de Literatura RTP.
O Nação Crioula foi o último barco do tráfico negreiro que saía de Angola e chegava ao Brasil.
Já mesmo a acabar o romance, Agualusa põe na pena de uma das suas personagens principais [Ana Olímpia, escrava filha de outra escrava] a escrita das seguintes palavras:
"Muita gente não compreende porque é que os escravos, na sua maioria, se conformam com a sua condição uma vez chegados à América ou ao Brasil. Eu também não compreendia. Hoje compreendo. No navio em que fugimos de Angola, o Nação Crioula, conheci um velho que afirmava ter sido amigo de meu pai. Ele recordou-me que na nossa língua (e em quase todas as outras línguas da África Ocidental) o mar tem o mesmo nome que a morte: Calunga. Para a maior parte dos escravos, portanto, aquela jornada era uma passagem através da morte. A vida que deixavam em África, era a Vida; a que encontravam na América ou no Brasil, um renascimento." (Publicações D. Quixote, p. 149-150. 2010)
Quer dizer, se quisermos continuar a ufanar-nos com a realidade da nossa diversidade cultural, temos de ser um pouco mais discretos com a exibição dos nossos feitos no Mar. É que, pelo menos em parte, a glória marítima que cantamos foi ganha à custa de muito horror humano, muito desenraizamento social e muita sobranceria cultural e étnica.
Saibamos fazer agora o que é preciso fazermos.