Entretanto, as páginas dos manuais oficiais de História que continuamos a usar na escola - e outros, nas outras escolas - continuam a ser escritas com enérgicas pinceladas de glória no que à nossa relação com o Mar diz respeito.
Terminei hoje a leitura do romance de José Eduardo Agualusa, "Nação Crioula", publicado em 1998, e galardoado com o Grande Prémio de Literatura RTP.
O Nação Crioula foi o último barco do tráfico negreiro que saía de Angola e chegava ao Brasil.
Já mesmo a acabar o romance, Agualusa põe na pena de uma das suas personagens principais [Ana Olímpia, escrava filha de outra escrava] a escrita das seguintes palavras:
"Muita gente não compreende porque é que os escravos, na sua maioria, se conformam com a sua condição uma vez chegados à América ou ao Brasil. Eu também não compreendia. Hoje compreendo. No navio em que fugimos de Angola, o Nação Crioula, conheci um velho que afirmava ter sido amigo de meu pai. Ele recordou-me que na nossa língua (e em quase todas as outras línguas da África Ocidental) o mar tem o mesmo nome que a morte: Calunga. Para a maior parte dos escravos, portanto, aquela jornada era uma passagem através da morte. A vida que deixavam em África, era a Vida; a que encontravam na América ou no Brasil, um renascimento." (Publicações D. Quixote, p. 149-150. 2010)
Quer dizer, se quisermos continuar a ufanar-nos com a realidade da nossa diversidade cultural, temos de ser um pouco mais discretos com a exibição dos nossos feitos no Mar. É que, pelo menos em parte, a glória marítima que cantamos foi ganha à custa de muito horror humano, muito desenraizamento social e muita sobranceria cultural e étnica.
Saibamos fazer agora o que é preciso fazermos.
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