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sábado, novembro 03, 2012

O Acordo Ortográfico e a tradução para português

Arrogo para mim a boa fé de aceitar escrever em acordo com o tão polémico Acordo Ortográfico (1). A ver o que ele dá, até porque, enquanto psicólogo, sempre tenho defendido que a lógica da escrita se deve aproximar da lógica da fala e da lógica do pensamento. Está já experimentalmente demonstrada a importância dessa aproximação, por exemplo, com o estudo das línguas orientais e as facilidades que essas línguas naturalmente proporcionam nas aprendizagens escolares fundamentais.
Começamos a dispor de tempo de experiência para avaliar a lógica, a eficácia e valor do Acordo Ortográfico. Começo a pensar que o saldo é desfavorável às alterações oficiais na escrita do português
A este propósito, gostei muito de ler, no passado domingo, dia 28 de outubro, o artigo de Paula Blank, "O Acordo Ortográfico e a tradução para português", publicado, sob o signo do "Debate Língua Portuguesa", na edição do Público (pág. 56).
Tomo a liberdade de transcrever para aqui esse artigo:

O meu trabalho consiste, em suma, na revisão de traduções do Inglês para o Português de manuais de instruções e interfaces do utilizador de equipamento médico. Vai desde a simples maca de exames utilizada nos consultórios médicos ao ventilador de cuidados intensivos ou desfibrilador cardíaco, de cujo correcto funcionamento e utilização dependem as vidas de tantos doentes por este país fora. Dependendo de o fabricante ser europeu ou americano, as traduções são produzidas – em geral – para Português de Portugal ou do Brasil, respectivamente. Por conseguinte, quando importamos da Europa, geralmente, repito, não há problema de maior; contudo, ao comprar equipamento nos EUA e com a globalização, consequentes fusões de companhias e migração de quadros pelo mundo inteiro, a situação complicou-se.

O que me chega às mãos está 90% das vezes muito longe do nível de qualidade que seria de esperar para qualquer tradução, quanto mais para traduções nesta área. Os exemplos são infindáveis, mas escolhi um que servirá para demonstrar aquilo de que falo. Na tradução do manual de um ventilador, feita por um tradutor brasileiro, lê-se:

“Usar o ventilador de maneira diferente como foi instruída pode causar danos ao digitalizar de RM.”

Uma tradução correcta do original em Inglês poderia ser assim:

“A utilização do ventilador de maneira diferente da que foi indicada nas instruções, pode causar danos ao aparelho de RM (ressonância magnética).”

Em praticamente todos os manuais traduzidos para Português do Brasil, e também no deste exemplo, chama-se “vazamento” a fuga, “cabo de força” a cabo de alimentação, “tela” a ecrã, “plugue” a ficha (um “plugue” que se “pluga”, do verbo “plugar”), “jack” a tomada, “leiaute” a disposição, “acurácia” a precisão, diz-se que a impressora “está aquecendo”, que “você tem de acessar isso” (aceder) ou “você deve apertar aquilo” (pressionar), os verbos reflexivos são conjugados ao contrário (“isso se faz assim” em vez de “isso faz-se assim”), etc.

O manual de um dispositivo de suporte de vida chega a ter 300-400 páginas e o deste exemplo era uma tradução que estava autorizada, em utilização em Portugal, e que só foi corrigida (1) quando o fabricante passou a fazer parte da gama de comercialização de certa empresa e (2) porque, depois de muita argumentação, o fabricante acabou por concordar em produzir uma versão em Português de Portugal.

Peço-vos que voltem a ler os exemplos apresentados. Não verão uma só instância de diferença ortográfica, o que prova a futilidade do esforço (inútil porque não o consegue) de uniformização ortográfica. A maioria dos manuais traduzidos no Brasil que eu revi estão escritos assim e, provavelmente, no Brasil até são textos perfeitamente aceitáveis, não sei, nem discuto. Mas em Portugal não. As traduções utilizadas em Portugal têm forçosamente que ser feitas por tradutores portugueses, em Português de Portugal, para que se possam cumprir os critérios exigíveis. E isso não basta, é preciso que o tradutor preencha outros critérios técnicos específicos, cuja discussão ficará para outra altura.

Contudo, há uma batalha contínua para que os dispositivos comercializados sejam acompanhados de instruções adequadas. A realidade é que os fabricantes pressionam os distribuidores portugueses a utilizar as traduções brasileiras em Portugal. Os argumentos são sempre os mesmos: (1) só se produz uma versão em Português e, dado que o Brasil é um mercado maior, a versão a produzir será em Pt-Br ou (2) temos que reduzir custos, por isso há que anular uma das versões em Português; o Brasil é um mercado maior, portanto eliminamos a versão Pt-Pt. Ponto final. Contra-argumentar dizendo que a sintaxe e a terminologia não são aceitáveis para textos que se destinam a profissionais clínicos, que os erros podem provocar acidentes de proporções mais ou menos sérias, é por regra inútil. Algumas vezes, felizmente, o esforço de argumentação é recompensado, e os médicos e enfermeiros em Portugal podem usufruir do privilégio de ler as instruções do dispositivo médico, que adquiriram em Portugal, num Português de fácil e natural compreensão. Sim, aquilo que devia ser um direito, que está previsto numa directiva europeia, que, por sua vez, foi transferida para a lei portuguesa, é no fundo, um privilégio. Quase um favor.

É, portanto, com profunda consternação que vemos o Governo português, que devia defender os nossos interesses, assinar um Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, que (defendem alguns) visa unificar a ortografia e resolver todas as diferenças entre ambos os registos do Português.

O Acordo Ortográfico, ao criar esta falsa noção de uniformidade, extremamente nefasta para o Português-padrão, tem um resultado terrível para a tradução, porque enche o mercado português de instruções que quanto mais técnicas, mais incompreensíveis são.

Mas ainda podemos inverter este erro colossal, assinando a Iniciativa Legislativa de Cidadãos. Para saber como assinar e ficar a saber mais pormenores, por favor, visite o portal http://ilcao.cedilha.net/.

(1) Além disso, sou professor do ensino secundário, condição que me obriga a escrever de acordo com o AO. Faço-o sempre desejando que os meus alunos desenvolvam a capacidade crítica para apreciarem as diferenças entre a escrita que faziam e a que fazem agora; e tomem depois a sua opção.


sábado, março 12, 2011

Resposta aberta à minha querida parceira facebookiana Dina

Querida Dina,
Um dia, recebi no consultório um rapazinho do 4.º ano de escolaridade, que estava com problemas de aprendizagem: dava muitos erros, a professora queixava-se que ele era um rapaz fechado, que não facilitava nada a comunicação, não colaborava para resolver os problemas de aprendizagem.
Eu gostei do rapaz logo ao primeiro contacto: tinha um ar triste, mas também preocupado; o olhar era afirmativo, mas mostrava curiosidade em relação a mim, quer dizer, estava aberto, disponível para conversar comigo.
Apresentei-me, fiz-lhe perguntas, vi-lhe os cadernos; ele colaborou sempre muito diligentemente. Foi uma grande surpresa para ele quando eu lhe dei os parabéns pelos erros que fazia. Disse-lhe que eram sinal de uma inteligência muito grande, que tinha a preocupação de entender a lógica das coisas. Soube depois que ele foi resolvendo muito satisfatoriamente os seus problemas na escola. E voltámos a encontrar-nos. Não sou mais descritivo porque não quero afastar-me do objetivo principal deste apontamento.
Um dos erros que ele fazia era escrever "casá" onde deveria escrever "casa".
Ora isto tem a ver com uma das preocupações que nortearam este acordo ortográfico: dar primazia à dimensão fonética da palavra escrita, em deterimento da dimensão etimológica.
Repare, Dina:
  • a primeira coisa que lhe ensinaram na escola foi que a letra "a" se lia "á"
  • e ensinaram-lhe que os acentos servem para modificar os sons das letras.
  • assim, no entendimento dele, em que a sua inteligência lhe exigia que percebesse a lógica das coisas, aquilo a que nós chamamos o "á fechado", que é a maneira de ler a letra "a" final da palavra "casa", para modificar o som natural da letra "a" (que se lê "á"), ele teria de usar o acento para fechar o tal "a" final da palavra "casa".
  • quer dizer, na lógica do que se ensina às crianças logo à entrada para a escola, do ponto de vista do desenvolvimento psicológico, do ponto de vista da inteligência, a forma mais correta de escrever a palavra "casa" é mesmo a maneira como ele escrevia! "Casá". Nós é que temos sempre andado ao arrepio de muita lógica simples do desenvolvimento da inteligência verbal e da lógica das letras e das palavras no nosso cérebro.
  • ele não queria desistir dos seus erros porque ele sabia que a sua lógica estava correta! Desistir dos seus erros era desistir da inteligência que ele estava seguro possuir; mas não tinha poder para enfrentar a tradição, a escola, a sua professora... Por isso se calava.
  • ora, o que eu fiz, foi confirmar-lhe a correção do seu raciocínio lógico ("Finalmente!..." terá ele pensado. "Finalmente alguém me entendeu!...")
  • assim que viu confirmada a sua inteligência, ele ficou mais disponível para aceitar as relações e os caminhos complexos que vão da palavra falada à palavra escrita, e vice-versa.
Tive muita pena deste rapazinho, fiquei com muita admiração pela tenacidade da sua personalidade e pela defesa que fazia da sua inteligência; e adorei conhecê-lo, senti muito orgulho em poder ser confidente de uma pessoa assim.
Este atual Acordo Ortográfico ainda não resolve esta questão da letra que se ensina que é o "á", mas que assim que se usa numa palavra básica, muito familiar, se lê "â (fechado)" e que o que se lê "â" não precisa, afinal, de acentos (os tais que existem para modificar o som natural das palavras).
Contudo, pelo facto de ser um acordo que procura aproximar a palavra escrita à sua fonética simples, respeitando melhor a lógica da construção percetiva da palavra; exatamente por isto, estou de acordo que alguma coisa se faça.
Mas temos de estar de mente aberta e flexível para as afinações necessárias. No fundo, o que queriam que o meu rapazinho fizesse, mas sem darem atenção ao desenvolvimento espontâneo, legítimo e inteligente da sua inteligência.
Pode crer, Dina, eu gostaria muito de saber qual será a sua reação natural a esta "coisa" do Egipto e dos egípcios. No fundo, o facto de a palavra escrita e da palavra dita comportarem várias dimensões (fonética, etimologia, contextos sociais locais, etc.) obriga a compromissos, a cedências.
O meu rapaz, quando lhe confirmaram a sua inteligência, quando lha respeitaram (e por isso o respeitaram a ele), aceitou ceder.
E nós, que estamos nós dispostos a ceder a propósito de uma língua que, por nossa própria "culpa", se tornou a língua natal de imensos milhões de pessoas que vivem, pensam e falam, bem para além do nosso jardim à beira mar plantado?
E os autores do Acordo, que estão eles dispostos a pensarem sobre os limites satisfatórios de (mais esta) tentativa de aproximação de falantes e escritores  da mesma língua, tão falada em todas as partes do Mundo?