A edição de hoje do Jornal de Letras é uma edição de grande angústia. Por causa do iminente desaparecimento, da morte, da revista. Mas não é dessa morte de que eu quero falar.
O tema principal da revista é a reedição do diário de Vergílio Ferreira. Lá dentro, na página 11, alguns excertos dos diário do escritor, sendo o primeiro o registo de 1 de Fevereiro de 1969. Passo a transcrevê-lo:
«Fiz cinquenta e três anos há dias. Como é obvio, não acredito. Mas enfim, é a opinião do Registo Civil. Acabou-se, fiz cinquenta e três anos. É aliás uma idade inverosímil a minha, desde os cinquenta. A “vergonha” da idade (que não tenho) deve vir daí. E lembrei-me: e se eu tentasse uma vez mais o registo diário do que me foi afectando? Admiro os que o conseguiram, desde a juventude. Nunca fui
capaz. Creio que por pudor, digamos, falta de coragem. Um romance é um biombo: a gente despe-se por detrás. Isto não. Mesmo que não falemos de nós (é-me difícil falar de mim). Aliás como os outros, desconheço-me. Talvez, também porque me evito. A verdade é que, quando me encontro bem pela frente, reconheço-me intragável. Mas enfim as virtudes são também desgostantes. De resto, sou pouco abonado. Segundo a Regina, as virtudes que tenho têm mesmo raízes viciosas: tolerância por fraqueza, interesse pela arte, por vaidade e coisas assim. Não digo que aconteça isso com todas as ditas virtudes; mas com algumas deve ser verdade. Chega. O meu “diário” está nas centenas de cartas aos amigos. Lembro as ao Lima de Freitas. L. Albuquerque, Costa Marques, Mário Sacramento, Eduardo Lourenço, alguns mais. Em todo o caso, essas mesmas, falsas. Excepto talvez quando sobre coisas “sérias”. E ainda aí há quase sempre um disfarce ou o tempero do gracejo. Serei agora capaz? Tento. Seguro-me ao argumento de que me dá prazer ler os registos dos outros. Lêem-se sempre com curiosidade. Um motivo para insistir – satisfazer a curiosidade dos outros. Mas terei eu “outros”?»"Tolerância por fraqueza", reconhece Vergílio Ferreira. Mas será que reconhece mesmo?... Duvido. Bem, não estou capaz de grandes análises, nem o quero fazer. Até porque não sou conhecedor profundo do escritor, nem da sua obra ficcional, nem dos seus diários.
Mas ele também nos avisa, se calhar, para não o levarmos muito a sério. São estratégias de autor dizer que não acredita que tem 53 anos e que isso é apenas a opinião do Registo Civil. E quanto às virtudes, essas coisas boas são... más, são desgostantes. No que diz respeito à tolerância, "nem sou eu quem diz que ela é fraqueza, quem o diz é a minha Regina".
Pronto, está bem, caro escritor, andarás carregado de amarguras, de descontentamentos, até talvez te comprazas numa certa mortificação interior. Seja. Não sei...
Para ficares satisfeito, informo-te que, sim senhor, vou guardar este texto para uma sessão de trabalho da formação de longa duração sobre a tolerância.
Na tese de doutoramento "De Conta Corrente aos diários Pensar e Escrever de Vergílio Ferreira", de Célia Maria Costa Pinto, de 2013, a autora fala com frequência da Tolerância. Quando chegar a tal sessão na formação de longa duração, espero já ter lido a tese toda. Mas suspeito já que nos vai ser pedida tolerância para tanta amargura e descontentamento...
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