#TOLERÂNCIA84 - AS VIAGENS TORNAM AS PESSOAS MAIS TOLERANTES?
A resposta parece óbvia: — Sim, tornam.
Bem, também é óbvio que não titulo um escrito com as viagens para acabá-lo já aqui. Textos com duas ou três palavras, têm de ser poéticos e o melhor que conheço, e de tantas vezes falo é o de Giuseppe Ungaretti: «M'illumino / d'immenso» .
As citações à volta das viagens estão entre as que mais páginas enchem nos livros especializados em citações. Gosto muito, por exemplo, desta que é apresentada como máxima tibetana: «A viagem é um regresso ao essencial.» Acho também muita piada a esta, atribuída a Groucho Marx, que tem um humor muito próprio: «Comprar um fato novo já é fazer uma viagem ao estrangeiro.»
No mesmo livro de citações, escrito em francês, encontro ainda uma citação de Fernando Pessoa, que aqui reproduzo acrescentando um pouco mais da carta da qual Claude Gagnière retirou a citação: "O que sou essencialmente — por trás das máscaras involuntárias do poeta, do raciocinador e do que mais haja — é dramaturgo. O fenómeno da minha despersonalização instintiva a que aludi em minha carta anterior, para explicação da existência dos heterónimos, conduz naturalmente a essa definição. «Sendo assim, não evoluo, VIAJO.» (Por um lapso na tecla das maiúsculas saiu-me, sem que eu quisesse, essa palavra em letra grande. Está certo, e assim deixo ficar). Vou mudando de personalidade, vou (aqui é que pode haver evolução) enriquecendo-me na capacidade de criar personalidades novas, novos tipos de fingir que compreendo o mundo, ou, antes, de fingir que se pode compreendê-lo. Por isso dei essa marcha em mim como comparável, não a uma evolução, mas a uma viagem: não subi de um andar para outro; segui, em planície, de um para outro lugar. Perdi, é certo, algumas simplezas e ingenuidades, que havia nos meus poemas de adolescência; isso, porém, não é evolução, mas envelhecimento."
A motivação para o texto de hoje foram algumas fotografias que um casal amigo me mandou ontem da
Biblioteca de Alexandria; e as que outro casal amigo me mandou hoje do Azerbaijão.De que maneira viajar pode tornar-nos mais tolerantes?
Em princípio, viajamos porque queremos e para lugares que queremos conhecer, a nossa atitude é a de vamos encontrar coisas de que vamos gostar. Quer dizer, à partida estamos afectivamente disponíveis e mentalmente abertos para encontrar coisas boas, interessantes, agradáveis. Em geral, nas viagens a que livremente nos dedicamos, não há masoquismo ou intenção de mal-estar e sofrimento, pois não?
As viagens expõem o viajante a diferentes culturas, põem-no em contacto com costumes, tradições, estilos de vida, geografias, arquitecturas e organização dos espaços de vida diferentes; e a línguas diferentes, a diferentes sinais e códigos de fala e comunicação. Um exemplo clássico é o do arroto no final duma refeição: nuns países ou culturas é expressão de falta de educação, noutros é uma deferência educada aos anfitriões.
As nossas cabeças, assim que a gente nasce, começam a povoar-se de estereótipos a propósito dos outros: os alentejanos (preguiçosos), as suecas (que são as mulheres mais bonitas do mundo), os japoneses (que são todos baixinhos), os ingleses (que são todos fleumáticos), os brasileiros (não há nenhum que não dance maravilhosamente o samba ou não seja o maior dos dribladores no futebol). Ora, o viajante, caminhando pelos lugares estrangeiros, repara que não é bem assim: sim, são diferentes de nós, mas são mais iguais a nós do que a gente pensa; e nós somos mais iguais a eles do que antes da viajem pensávamos.
As viagens, muitas vezes, sem que o viajante o procure, são um desafio à capacidade de adaptação a comportamentos individuais, urbanos e culturais diferentes dos que ele leva na sua experiência pessoal. Toleramos essas diferenças, respeitamo-las, procuramos adaptar-nos a elas ou, ao contrário, enervamo-nos, protestamos, zangamo-nos, ficamos prontos para maldizer a hora de escolher aquele lugar como destino de viagem.
Viajar é, no fundo, uma oportunidade para o viajante conhecer pessoas diferentes dele mesmo, que nos ajudam a ver o mundo de maneira diferente, noutra perspectiva, tornando-nos, se a isso estivermos dispostos, mais abertos a ideias, opiniões e mundividências diferentes das nossas. Por exemplo, como é que um egípcio de Alexandria vê o Mundo?... Como é que ele olha para a Europa e para Portugal? Como é que um 'azerbaijanês' ou 'azerbaidjano' ou 'azeri' (Estão a ver, nem sei qual é a forma que mais se aproximará do gentílico com que os naturais do Azerbaijão se designam...) olha os Descobrimentos Portugueses que, dizem os Portugueses, ligaram todo o Mundo? Que curiosidades despertará Portugal num viajante do Azerbaijão?
Mas há qualquer coisa mais que é preciso para que a Tolerância, a boa Tolerância, ganhe mais espaço e acção nos nossos comportamentos: é a postura de boa fé, de mente curiosa e aberta para o que se vai encontrar. Ilustro o que quero dizer com um exemplo de alguns meses atrás:
Dois casais, amigos de longa data, viajaram há alguns meses para a China, por lá ficaram um mês. A viagem foi preparada ao mais pequeno pormenor: lugares, datas, transportes. Na cabeça deles, viajava a estereotipada imagem da China comunista, repressora, triste (pelo menos, silenciosa), pobre. É assim: na cabeça de pelos menos 3 dos 4 viajantes, consciente ou escondido num forçado esquecimento, ia o desejo de confirmar o que toda a vida se pensou acerca dos chineses e do comunismo da China de Mao Tsé-Tung, da exploração dos operários, camponeses e os outros cidadãos, todos eles sem liberdade de expressão, vítimas da ditadura, já nem sequer era do proletariado, era do partido único chinês.
Um dos viajantes, de mente aberta, foi aos poucos desconstruindo estereótipos e ideias feitas: olhou, buscou, interagiu, experimentou. Baqueou autenticamente perante o desenvolvimento material e tecnológico, a vida intensa e alegre, colectiva, nos espaços urbanos, a boa educação, a honestidade e a simpatia e a solicitude das pessoas. Regressou mais humilde e tolerante.
Outro dos viajantes, parece que tudo o que via, tudo que saboreava, tudo o que experimentava se reduzia a um toque de Midas bem negativo: ela tinha razão, era tudo mau, tal qual como pensava antes de chegar à China.
É, se não quisermos ver, não vemos mesmo. Aceitar ver para além do que já leva na sua bagagem mental exige do viajante uma modalidade de Tolerância muito especial: a que aceita que se pode não saber tudo, que se pode não conhecer tudo; e mais, que se pode estar errado. Se errar é humano, aceitar que pode estar errado é estar em boa sintonia com a sua própria humanidade.
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P.S.: enquanto escrevia este texto, o meu amigo que está no Azerbaijão, respondeu-me, por mensagem, que a forma gentílica que lhe parece que lá mais se aproxima duma daquelas 3 que apresentei lá atrás é 'azeri'.
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