#TOLERÂNCIA 50 - TOLERÂNCIA, CANCRO, SOFRIMENTO
Verdadeiramente, que sentimentos se costumam ter com pessoas com doenças cancerígenas, nas quais a evolução da doença e o prognóstico clínico são pessimistas e desesperançosos, confrontando o doente com a fatalidade que nunca se deseja?
A que ponto é difícil o contacto continuado com a pessoa doente, pessoa essa a quem geralmente nos prendem laços familiares fortes?
A que ponto é adequado o contacto que temos com essa pessoa? Adequado no sentido, não do que pensamos que é bom para a pessoa ou que ela necessita, mas no sentido do que a pessoa deseja e necessita? Até que ponto, afinal, somos tolerantes com o sofrimento da pessoa doente?
Naturalmente, pela proximidade que temos com a pessoa doente, também sofremos. Sofremos por ela e sofremos por nós. Até que ponto, para nos pouparmos, num gesto de auto-defesa, ao nosso próprio sofrimento, não falhamos na tolerância ao sofrimento da pessoa doente e desvalorizamos as suas dores e as suas angústias? Falhamos evitando a proximidade; falhamos esgotando rapidamente a tolerância; falhamos exibindo uma tolerância falsa, feita de indiferença e de falsas aparências.
Lembro-me de alguém que conheci tardiamente, mas com quem rapidamente estabeleci um relacionamento de confiança e amizade profundas. Pouco tempo tardou para ele me pedir para o acompanhar às consultas de Oncologia, traziam-lhe muita ansiedade, sentia que o médico assistente não o ouvia, quase não o via sequer; e o pensamento do meu muito recente amigo obnubilava-se com facilidade, tal o nível de tensão emocional que as consultas lhe desencadeavam. Ele era uma figura de grande notoriedade pública, era uma pessoa de grande formação académica e espiritual; mas aquelas consultas foram-se tornando avassaladoras para ele. A atitude do médico, aparentemente tolerante e cordata, não lhe despertava empatia e proximidade pessoal.
Fora das consultas, na vida do dia-a-dia, as pessoas diziam-lhe «Ó senhor [...], o senhor está com tão bom aspecto, o senhor parece que vende saúde!...», e ele sentia-se incompreendido, a sua presença apenas tolerada (suportada), verdadeiramente ninguém se preocupava com o seu sofrimento, ninguém se queria envolver.
Quanto custa ouvir coisas do tipo «Vá, não chore, hoje está assim, mas amanhã vai estar melhor, vai ver...»; «Sim, está assim, mas olhe que há quem esteja pior que si, há quem sofra mais ainda...»; «Amigo, tenha esperança, isso vai passar...»; «Olhe, conheço alguém que teve o mesmo e ficou bem, então tu também vais ficar.» Quanto alento pode dar um simples «P'rá semana apareço, vamos tomar um cafezinho, pago eu.»
Quantas vezes dizemos coisas, quantas vezes falamos para evitarmos ouvir, porque nos custa ouvir e tomar consciência do sofrimento, sim, de quem amamos? Tantas vezes bastaria ficar ali ao lado, mesmo sem dizer nada, isso, ficar só ali ao lado, para que a pessoa doente sinta uma companhia serena. Quanto essa presença silenciosa tantas vezes está carregada de sentimentos reconfortantes.
«Então, vá, seja forte, vai ver que vai conseguir.» Não, o doente sabe, muito lucidamente, que já não vai conseguir. Tantas vezes ele só quer que lhe tolerem que ele se sente fraco. Sente-se fraco porque está mesmo fraco. E se, em vez daquilo, se disser «Eu sei que não se consegue ser forte o tempo todo, há momentos em que se vai abaixo, não tem problema, pode contar comigo nessas alturas, chame-me, apareço assim que possa.»
Há muitos anos tive, na rua, um encontro casual com uma pessoa que foi especialmente importante na minha formação pessoal, académica e profissional. Quanta fragilidade o cancro tinha posto naquele corpo que, apenas um ou dois anos antes, alardeava elegância, serenidade e harmonia com a vida!...
Desisti do meu propósito naquele lugar e acompanhei-o a casa. Entrei, sentámo-nos e conversámos. Não sei quanto tempo passou, o que me confidenciou do cancro de que tinha plena consciência o prendera inexoravelmente foi para mim um tesouro que guardo no cantinho interior das coisas bem preciosas — tesouro que ciclicamente visito a tentar ser melhor pessoa. Ele apenas queria dizer a alguém o que sentia, a tristeza profunda, o espanto perante a força daquele mal, a fraqueza em que se reconhecia; e a aceitação do seu destino. Queria fazer as pazes com ele mesmo. Escutei-o sempre tendo consciência de que ele não me dia nada, não desabafava um desespero, queria apenas que um interlocutor atento testemunhasse o que era e como se sentia naquele momento.
Tantos notáveis exemplos a pessoa que eu tinha à minha frente já me tinha dado. Este foi mais um, ainda mais especialmente notável.
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