sexta-feira, janeiro 24, 2025

#TOLERÂNCIA 26 - DESISTIR, NÃO DESISTIR DE UM ALUNO

 #TOLERÂNCIA 26 - DESISTIR, NÃO DESISTIR DE UM ALUNO

«We don’t see things as they are, we see them as we are».(1) A primeira vez que fixei a atenção nesta frase, a autoria era atribuída a Anaïs Nin. Como fui aprendendo, os autores das frases que se tornam célebres são muitas vezes muito mais antigos do que se pensa; e muito mais anónimos do que identificados, e ainda menos vezes são correctamente identificados.

Hoje fui almoçar com um antigo aluno da escola. Ele nunca foi aluno de Psicologia, o nosso contacto veio de ele ter sido um aluno, digamos, turbulento, disruptivo, que constantemente perturbava a estabilidade formal e a disciplina comportamental necessária (De certeza que é mesmo necessária?...) em sala de aula.

A "boa" disciplina em sala de aula, tenha o mundo dado as voltas que já deu, continua a ser basicamente a do professor a falar para o grupo-turma e os alunos estarem passivos, em silêncio, atentos e a tirarem apontamentos.

Este rapaz era tudo menos isso, mas... Mas não era mal-educado, era alegre, de olhar vivo, de pensamento ágil. Nunca gostou de estudar.

Acho que nos demos bem e ele ganhou estima por mim porque eu também gostava de me rir, de ser alegre e de ele ter percebido que eu não quis nunca endoutriná-lo, convencê-lo, domesticá-lo.

Sempre fui claro com ele em relação aos comportamentos que tinha, especialmente os que não eram amigos da saúde. Os outros, os da indisciplina propriamente dita, sem que os aceitasse, compreendia-os, brincava com eles, provocava-o para que os pensasse, procurava que ele os visse pelo lado das coisas boas, inteligentes e positivas que continham. E respeitei-o sempre nas suas opções, nas suas escolhas. Ele sempre soube quais eram as minhas limites de aceitação, condescendência; e cumplicidade, sim, cumplicidade.

O rapaz hoje está bastante bem na vida, como se costuma dizer. É um profissional muito competente, muito bem remunerado na sua área. Ao fim de 9 anos de investimento pessoal numa carreira e na sua independência financeira, chega a pensar e a falar mais em inglês do que em português. Dos 18 aos 27 anos.

Perguntei-lhe: «O que te deu a escola para chegares onde chegaste?» «Nada... Pronto, deu-me na parte da comunicação, da relação pessoal. Do que me deu a aprender, nada. A escola tem de mudar muito.» Fez questão, a seguir, de me dar 3 ou 4 exemplos, muito concretos, muito pertinentes. E comparou-se com colegas de escola que fizeram licenciaturas e mestrados; e os que trabalham nas áreas em que se formaram e os que não se formaram. Outra vez uma mão cheia de reflexões argutas e de notável análise social e educativa.

Desafiei-o a ir um dia às minhas aulas falar com os meus alunos de Psicologia, à volta dos temas do sucesso académico e do sucesso pessoal. Ele aceitou fazê-lo.

Com a ida dele à escola, tenho em mente, também, como que um gesto de reparação que lhe é devido: se a escola o fez sair, há anos, pela porta pequena, ele agora regressa pela porta grande.

Quando penso o que fui eu com ele naqueles turbulentos anos, tomo consciência de que fui tolerante. Tolerante com as suas idiossincrasias, os seus actos disruptivos, as suas motivações baralhadas, as suas opções pouco saudáveis.

Tenho a certeza de que ele não vai voltar à escola com a postura altaneira ou sobranceira de quem reclama uma vitória. Sei que ele vai voltar à escola com a sua característica boa-disposição, o sorriso cordial, a fala fluente e clara. Ele vai voltar à escola com Tolerância, com Tolerância carinhosa e amiga.

Provavelmente, naquele tempo lá para trás, ofereci-me como um bom modelo. O meu mestre João dos Santos ter-me-ia aprovado.

(1) Nós não vemos as coisas como são, vemos como nós somos.

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