quarta-feira, agosto 27, 2025

#TOLERÂNCIA241 - UM EXEMPLO DE TOLERÂNCIA NEGATIVA

 #TOLERÂNCIA241 - UM EXEMPLO DE TOLERÂNCIA NEGATIVA

Uma avaria de idade no telemóvel e a minha boa-fé nos jovens técnicos capazes de o arranjar puseram-me, desde há algumas semanas na iminência de pagar mais de 100 euros por uma reparação... incompleta e pouco fiável! Por isso andava já a ruminar a ideia de comprar um telemóvel novo.

A oportunidade surgiu hoje, tive um bom atendimento pessoal, foi fácil comprar o dito em condições especialmente vantajosas.

Mais demorado do que o previsto foi todo o processo de transferência de dados do aparelho meio-avariado para o novo. O que demoraria, na previsão inicial, cerca de hora e meia, afinal demorou cerca de 7 horas... Deu tempo para ir dar uma vista de olhos às novidades da Bertrand, ir às compras; voltar à loja, não, ainda não está, faltam, diz aqui, cinquenta e tal minutos, ok, vou a casa almoçar, volto depois; voltar à loja e esperar... esperar... esperar... A culpa era do pouco espaço disponível no aparelho antigo para a transferência dos dados. Fui sempre muito simpaticamente atendido, e também fui sempre sendo informado do que estava a acontecer. Deu tempo para ler integralmente o livro que comprei de manhã: "Um Adeus Mais-que-Perfeito", de Peter Handke (da Relógio d'Água, 2021). São apenas 71 páginas.

A contracapa diz que «Em "Um Adeus Mais-Que-Perfeito" Peter Handke narra-nos o que sabe, ou o que julga saber, sobre a vida e a morte da mãe, antes que, nas suas palavras, "a mudez apática, a extrema mudez" da tristeza se apodere dele para sempre. Ainda assim, a experiência da mudez, que

marca por igual o sofrimento e o amor, reside no coração da breve mas inesquecível elegia do autor, que nos dá um livro severo, escrupuloso e comovente. Uma obra singular, de um dos maiores escritores contemporâneos.»

A mãe do escritor austríaco nasceu por volta de 1919-1920, suicidou-se em Novembro de 1970. Peter Hankde faz assim o enquadramento cultural e familiar da família da mãe e das característcias culturais e da hierarquia social em que a mãe nasceu e cresceu:

«[o meu avô] É de origem eslovena e filho ilegítimo. Muitas das crianças nascidas de pais camponeses nessa época eram ilegítimas, porque, embora tivessem já há muito atingido a maturidade sexual, eram poucos os que dispunham de um lugar e de meios para constituir família. A mãe do meu avô, ao menos, era filha de um camponês relativamente abastado em cuja casa o meu bisavô servia como criado e que não via nele mais do que "o pai da criança". O certo é que a mãe do meu avô herdou o suficiente para comprar uma pequena quinta.

»E assim foi que o meu avô ao fim de gerações de servos que nada possuíam, com a certidão de baptismo cheia de espaços em branco, nascidos e falecidos em casas alheias, sem nada ou quase nada para deixar aos herdeiros porque a única coisa que tinham de seu, a roupa dos domingos, era o que levavam para a cova — foi o primeiro que cresceu num ambiente onde podia realmente sentir-se em casa, sem ser meramente tolerado como paga da corveia diária.»

«meramente tolerado»... Tolerar sem empatia, sem compreensão, sem aceitação. Apenas se suporta por necessidade instrumental, socio-económica, sem reciprocidade e respeito pela diferença.

Mais à frente, escreve, num esforço tenaz, amargurado, o filho que procura honrar a mãe, defendendo-lhe a dignidade, a dignidade duma pessoa a quem, desde criança, os pais, a família e a cultura de pertença exigiam que se conformasse ao seu estatuto, primeiro de menina e depois de mulher:

«Pouco antes do [meu] parto, a minha mãe casou-se com um subalterno da Wehrmacht alemã que havia tempo a ADORAVA e que não se importava que tivesse um filho de outro. "Ou é esta ou nenhuma!", pensara quando a vira pela primeira vez, e nesse mesmo momento apostara com os camaradas em como seria sua, ou melhor dito, ela o escolheria a ele. Ela achava-o repulsivo, mas caíram em cima dela com o sentido do dever (dar um pai ao filho): pela primeira vez, deixou-se intimidar e perdeu um pouco do seu riso. Por outro lado, impressionava-a que alguém a tivesse metido na cabeça como ideia fixa, precisamente a ela.

»"Achava que, de qualquer modo, ele ia morrer", contava. "Mas depois, de repente, tive medo por ele".

»Fosse como fosse, agora tinha direito ao subsídio de casamento. Foi com o filho para Berlim, para a casa dos pais do marido. Toleravam-na. Caíam já as primeiras bombas, veio-se embora, a velha história, voltou-lhe o riso e às vezes ria-se tão alto que toda a gente se encolhia.

»O marido, esqueceu-o, o filho, apertava-o contra o peito com tanta força que a criança chorava, fechou-se em casa, onde, após a morte dos irmãos, todos olhavam uns para os outros, atarantados, sem compreender. Não havia mais nada? Era só isto? Missas de defuntos, doenças da infância, cortinas corridas, troca de cartas com gente que conhecia de tempos melhores, ajudar na cozinha e nos campos, de onde estava sempre a fugir, para pôr a criança na sombra; depois, as sirenes de alarme, mesmo nos campos, a gente a correr para as grutas nas rochas previstas como abrigos antiaéreos, a primeira cratera de uma bomba na aldeia, mais tarde terreno de jogos das crianças e lixeira.»

«Toleravam-na.» O livro fala muito de medo, horror, pobreza, miséria, vergonha; e anseio de liberdade.

Entretanto, a Euronews, em 11 de Dezembro de 2019, publicava, em vídeo e em texto, esta notícia:

«A Academia Sueca entregou o Nobel da Literatura 2019 a Peter Hanke, mas o escritor austríaco está a ser contestado pelo apoio a regime sérvio acusado de genocídio.

»Com pompa e circunstância, a Academia Sueca ergueu-se para entregar a Peter Handke o Nobel da Literatura 2019.

»A obra do escritor austríaco foi galardoada, mas a polémica surge quando o autor da obra foi um apoiante do regime de Slobodan Milošević, acusado do genocídio de mais de oito mil muçulmanos, em Srebrenica, na Bósnia-Herzegovina, nos anos 90 do século XX.

»Os aplausos da Academia contrastaram com a indignação vinda das ruas. Em Estocolmo, cerca de 500 pessoas protestaram contra a atribuição do prémio. De acordo com a porta-voz, entendem que na própria obra, Handke questiona o "genocídio e os crimes de guerra que aconteceram durante a guerra na Bósnia".

»Para a escritora Alida Bremer, "ele foi um amigo do regime de Milosevic e não dos sérvios". Bremer, que estudou em Belgrado, na capital da Sérvia e viveu no país durante oito anos, diz ter lá "muitos amigos e quase todos são contra o autor e o regime".

»Por defenderem que o prémio à obra literária reforça a "fuga às responsabilidades históricas" e relativiza o peso dos crimes de guerra, Kosovo, Turquia, Croácia e Albânia boicotaram a cerimónia.»(1)

Mãe negativamente tolerada e filho radicalmente intolerante? Não é nada fácil o caminho da Tolerância desejada...

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(1) https://pt.euronews.com/2019/12/11/protestos-contra-nobel-da-literatura-para-peter-handke

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