Vou reproduzir integralmente o texto de Henrique Monteiro, publicado na edição do Expresso, não porque o subscreva integralmente (penso que ele e eu somos de quadrantes ideológicos bem distintos), mas porque dá relevo à questão da tolerância na dinâmica entre as maiorias e as minorias, entre as democracias e as autocracias, entre o liberal e o iliberal. Sim, por mim, proponho a discussão do artigo.
«Todos conhecem a frase “a democracia é o pior dos regimes, excetuando todos os outros”. Um regime
político decente tem de assegurar liberdade, mas também leis gerais e abstractas, igualdade de oportunidades e justiça nas decisões. Por isso, uma democracia séria e robusta tem, obrigatoriamente,
de restringir a liberdade de cada indivíduo, de forma a que não coloque em causa a liberdade de outros. Isto é, tem de ter regras claras, ou ‘linhas vermelhas’.
»Entramos, assim, na questão de saber quem define essas regras. A maioria, como é óbvio, dirão alguns. De facto, parece evidente, porém esbarra com a diferença entre maioria e razão, ou ser razoável. Nem sempre ter a maioria equivale a ser justo, decente ou assegurar a liberdade. Pelo contrário, a organização da liberdade impõe restrições, o que implica a inteira tolerância para com as minorias e a compreensão das suas legitimidades, desde que não queiram impor os seus pontos de vista. Como perceberão, isto aproxima-se muito do conceito de imperativo categórico do filósofo Immanuel Kant — “age como se a tua acção pudesse ser erigida em lei universal da natureza”.
»E aceitamos que há leis universais da natureza, que nada nem ninguém pode pôr em causa? Ou
achamos que elas dependem de idiossincrasias, latitudes e crenças? Se há valores universais (creio que sim) temos de considerar um ‘chão comum’ desses valores ou dessa lei universal, para todos poderem conviver e dialogar, mesmo que com ideias opostas entre si, religiões diferentes, hábitos diversos, Mas qual lei? Quem a dita — e voltamos ao início.
»Para um crente é Deus ou o Ser (ou pensamento, 'corpus' moral ou filosófico) em que acredita. Não por acaso, no essencial, eles são todos semelhantes — salvo alguns casos de extremismo que existem em todas as variantes, dos judeus ultraortodoxos aos jiadistas, dos budistas aos hindus e cristãos radicais. Para quem em nada acredita, é-me mais difícil ensaiar uma explicação, embora, naturalmente, a maioria dos ateus e dos niilistas respeitem essa lei não escrita, a que Kant chamou lei universal da natureza. Se seguirmos o raciocínio, a liberdade e a democracia colhem-se neste campo, e não na fria lei dos números de maiorias ou minorias. Há países com uma maioria de votos expressiva em programas, pessoas ou partidos que não honram nem uma nem outra. Não são democracias, ou são, como agora se diz, ‘democracias iliberais’. E, de facto, são cada vez mais, o que prova que a democracia, em si mesmo, não assegura a existência de liberdade. A democracia, sem liberdade, pode não passar de um sistema da lei do mais forte, traduzido em votos. Mas qual a legitimidade de uma maioria condenar ao ostracismo a minoria? Que direito tem de a calar? Que direito tem de proibir movimentos antidemocráticos? Por que se proíbe o nazismo e o fascismo ou, noutros casos, o comunismo? Mais ainda: o racismo, o discurso de ódio e outras excrescências democráticas? Será possível a uma maioria proibir tudo o que não gosta? E será, ainda assim, uma democracia?
»Voltemos atrás. Não necessita a democracia de um absoluto e indispensável comprometimento com a liberdade individual, desde que esta não coloque em causa ou prejudique a liberdade dos outros? Ou seja, não necessita de restringir a vontade da maioria, quando esta se torna intolerante? Ter ‘linhas vermelhas’ não é uma mera questão política, mas de civilização. Sem compreender que há quem não jogue o nosso jogo, perdemo-nos.
»O populismo diz agir em nome do que o povo quer. Os democratas têm de conjugar a vontade do povo com o dever que, como seres humanos, têm uns para com os outros. Com respeito, tolerância e fraternidade, como aliás postulam Kant e a Declaração universal dos Direitos Humanos, da ONU.»
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