sexta-feira, dezembro 26, 2008

Cardeal Patriarca de Lisboa apela ao entendimento na Educação

O Público destacou ontem o seguinte, na edição on line do jornal:

Cardeal Patriarca de Lisboa apela ao entendimento na Educação
25.12.2008 - 16h32 Lusa
O Cardeal Patriarca de Lisboa, D. José Policarpo, apelou ontem a um entendimento entre professores e tutela, considerando que a educação das crianças e jovens não pode ser alvo de batalhas políticas ou sindicais.
Na sua mensagem de Natal, D. José da Cruz Policarpo classifica a missão dos professores e formadores "como decisiva para o futuro de Portugal" e faz referência aos últimos acontecimentos na área da educação marcados por um conflito entre docentes e Ministério da Educação relativamente ao modelo de avaliação do desempenho.
"Que ninguém ouse transformar este sofrimento em simples arma de luta política, porque na batalha da educação os únicos vencedores têm de ser os vossos filhos", referiu D. José Policarpo.
Para as crianças e jovens, adianta o Cardeal Patriarca de Lisboa, "esta batalha não é política ou sindical: é a batalha da vida, que eles só vencerão com a generosidade, a competência e a coragem de todos nós".
Na sua mensagem de Natal intitulada "O Natal é a vitória da vida e da esperança", D. José Policarpo afirma que neste dia tem particularmente no coração aqueles que sofrem, pelo que dedica também umas palavras às famílias com dificuldades económicas, "agravadas com a situação que o mundo está a viver".
"Também aí é preciso deixar reacender a esperança, perceber que viver é lutar", referiu o dignitário da Igreja Católica.
Em crises deste género, adiantou, os que por elas são atingidos não podem considerar-se apenas vítimas, mas protagonistas da solução.
"Abramos o coração à solidariedade, estejamos atentos ao nosso próximo, isto é, ao nosso vizinho. E se as dificuldades exigirem de nós austeridade, saibamos que ela pode ser convite à coragem e experiência de liberdade", disse.
Na sua mensagem de Natal, o religioso faz ainda referência aos doentes, sobretudo àqueles para quem o sofrimento "se torna tão pesado que lhes tira a alegria de viver". "Alguns desistem mesmo de viver e suplicam que os ajudem a morrer" referiu o Cardeal Patriarca, que, numa alusão à prática da eutanásia, adianta que "ninguém tem o direito de ajudar os outros a morrer".

No espaço disponibilizado pelo jornal, deixei o seguinte comentário:

Do meu ponto de vista, o Cardeal Patriarca de Lisboa disse mais, parece-me que o Público não destaca o essencial. O Senhor Cardeal destaca, nas suas palavras, ditas sob o signo do sofrimento libertador, imitado no Filho de Deus feito Homem, os doentes, as famílias em dificuldades e os professores. Pessoalmente, agrada-me muito que o Senhor Cardeal tenha chamado a atenção de todos para esta dimensão do sofrimento fundamental, libertador, a que se liga a função do professor. Por ele, por esse sofrimento fundamental, passa, nas imensas condições adversas em que os professores exercem hoje em dia o seu papel, a generosidade, a competência e a coragem que também são deles, dos professores. Salienta, finalmente, o Senhor Cardeal Patriarca, que a batalha da Educação é a batalha da vida; não é uma batalha qualquer: é vida e é batalha, não é um "fait divers". Só mais uma palavra. A fonte do sofrimento é o amor pelo próximo. As palavras não são minhas, são do Senhor Cardeal Patriarca.

sexta-feira, dezembro 12, 2008

O bispo do Porto e os professores

Excerto da entrevista do bispo do Porto, D. Manuel Clemente, à Visão (n.º 823, 11 a 17 de Dezembro de 2008)

No conflito entre professores e ministra da Educação ainda haverá espaço para o bom-senso?

Tem de haver. As partes envolvidas têm de pensar no bem dos alunos. É para isso que existe a escola.

Em que medida tudo isto não é uma consequência da desvalorização do papel do professor?

Eles queixam-se disso. E uma coisa é factual: o papel que o professor tinha como transmissor de uma cultura e garantia dos alunos está esbatido. Há um esvaziamento do seu papel social. Os professores devem ser constantemente estimulados pelo Governo e pela sociedade. E isso é uma batalha a longo prazo.


Pela minha parte, para já, sem comentários. Para todos pensarmos.

terça-feira, dezembro 09, 2008

Uma singela homenagem, a Maria Eugénia, filha mais velha de Raúl González Nolle

Raúl Iturra, estimado Professor, amigo afectuoso,

Não poderia senão juntar-me a si num pequeno gesto de solidariedade, neste momento em que o sei tomado de sentimentos profundos ligados à perda de quem foi seu familiar próximo e muito querido, como claramente transparece do texto que escreveu em sua homenagem e  me deu em partilha. Assim seja eu merecedor de amizade e consideração que desta maneira mais uma vez me faz prova.

Do mesmo texto, que a seguir, com a sua anuência, transcrevo integralmente, infere-se, também, na personalidade da senhora sua cunhada, o dom da serenidade afectuosa tão natural e ingenuamente captado pelos seus filhos que logo a baptizaram, como no movimento circular das esferas de Thomas Mann, que, no dinamismo que lhes está inerente, logo põem em cima quem seria de estar por baixo, e logo depois, tornam abaixo quem assim retoma o seu lugar mais natural. No caso da relação entre os seus filhos e a sua - deles - tia, foram eles que baptizaram quem, na tradição, é naturalmente colo que segura os que receberão os santos óleos, a benção e a água: tia Maria Eugénia, a nossa avó querida.

Olhando a fotografia do pai que é possível encontrar na Internet (aqui), parece-me que, na determinação serena do rosto que nos olha, facilmente reconhecemos a serenidade que o Raúl nos fala no seu texto sobre a Senhora Maria Eugénia, a filha mais velha do capitão de bandeada, Raúl Gonzáles Nolle.

Permita-me que apenas acrescente o seguinte: pude assistir no dia de ontem, dia de aniversário da minha irmã, às cerimónias religiosas de homenagem à Padroeira de Portugal, Nossa Senhora da Conceição, em Vila Viçosa, onde estas cerimónias se revestem de uma devoção e de um simbolismo muito especial. Foi a primeira vez que participei nesta festividade religiosa. Curiosamente, a dimensão que mais tocou a minha sensibilidade foi a da serenidade!... Porque seria?...

Creia-me, Raúl, inteiramente solidário consigo, num abraço muito afectuoso, muito irmão.

A vez, agora, às suas palavras.

A FILHA MAIS VELHA DO FUNDADOR DA AVIAÇÃO DO CHILE, FOI-SE JUNTAR AO SEU PAI, NA ETERNIDADE. 

No Chile não acontecem apenas golpes de Estado ou assassinatos de Presidentes Democratas, como foi essa única vez do Presidente Allende. Essa vez em que, os que apoiaram a iniciativa, ficaram, de imediato, imensamente arrependidos. Como a nossa família toda.

No Chile acontecem também iniciativas. O Chile não tinha aviação. Era preciso criar uma Força Aérea. Vários Generais e Capitães estavam interessados e solicitavam ao Presidente da República desses anos, Comandante em Chefe das Forças Armadas do Chile, que comprasse aviões. Havia, nesses anos, ofertas desde a Alemanha.

Nos anos 30 do Século passado, o Estado Alemão fabricava imensos aviões, pelos motivos conhecidos. Três altos oficiais da Força Aérea, o Comandante Basaure, o capitão de bandeada Raúl González Nolle, mais tarde General da Força Aérea do Chile e Adido Militar da Força Aérea na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos e Ajudante Presidencial, pelo ramo da Força Aérea, dos Presidentes Radicais Pedro Aguirre Cerda e Juan António Rios, entre 1935 e 1941, foram junto ao Comodoro do Ar, Manuel Franke, para comprar aviões bons e baratos. Com esses aviões, o General González Nolle organizou, em conjunto com os seus colegas de viagem, a Força Aérea do Chile, o FACH.

As viagens do, em esses tempos, Capitão de bandeada, eram curtas e voltava rapidamente. Pelos finais dos anos 30, a sua mulher, D. Amanda Castillo Serrano de González, sobrinha do herói naval chileno Ignácio Serrano Pinto, estava grávida, era o primeiro descendente, e o jovem capitão queria estar perto da sua mulher para esperar o que no Chile sempre se pensa: um filho de género masculino. Como mais tarde connosco, acabou esse filho por ser uma rapariga, muito amada pelos seus pais, bem criada, bem educada, bem vestida, filha única; apenas 10 anos mais tarde nascia a sua irmã, a mãe dos nossos descendentes e Avó dos nossos netos.

A rapariga era Maria Eugénia. Natural na família, estudou no Colégio Francês – a família tinha essa dupla ascendência, típica do Chile, Franco-Chilena. A sua fala com a mãe era em Castelhano; com o seu pai e a mãe do seu pai, Eugénie Nolle de Montjeville, de Paris originalmente, em francês. Passou a ser uma rapariga mimada, querida, bem cuidada, completou os seus estudos secundários, aprendeu esse prazer da família de coleccionar mobília e mapas antigos e passou a ser uma entendida em colecções, o que lhe permitiu trabalhar nos melhores sítios da Empresa Phillips, Sucursal Santiago, em contacto directo, por causa do seu bom inglês, com a casa central da Holanda, onde a família se encontrava, especialmente nesse ano de 2000, em Utrecht, para o matrimónio da nossa filha primeira e o baptizado do nosso neto Tomas Mauro Van Emden. Dias lindos para uma senhora que, em pequena, era tímida. Timidez que acabou no seu crescimento, nas suas imensas viagens para outros países, que a tiveram sempre tão ocupada, que nem foi capaz de casar. A sua irmã e eu pensámos de imediato que era a outra Avô dos nossos netos. Esses netos que, coisa estranha, tiveram três Avôs, a mãe do nosso genro Cristan, Ans; Gloria, a irmã de Maria Eugénia; e ela própria. Dias lindos e divertidos, adorava contar histórias para todos rirem. Como adulta de muitas viagens, acabou por ser uma excelente anfitriã.

Viveu da mesma forma que entrou na eternidade, hoje 7 de Dezembro de 2008, de madrugada, dia prévio a Imaculada Conceição, dois dias após o aniversário da morte de Mozart e seis do dia do nascimento de Maria Calas, que, se fosse viva, teria feito 83 anos. Esses anos que Maria Eugénia, apesar dos cuidados médicos e da corte de pessoas ao pé de ela, especialmente irmã, sobrinhas e netos enteados, não conseguiu atingir. Hoje em dia está, para os que têm sentimentos de fé, com os seus pais, e a tomar conta de nós. Essa muito querida filha, irmã, amiga e excelente cunhada minha. Certo estou eu e a família toda, que descansa como deve ser. Essa filha mais velha do fundador da Força Aérea do Chile, que teve por mais lata honra, a sua descendência, especialmente esta que hoje o foi a acompanhar.

Raúl Iturra

Catedrático de Antropologia do ISCTE, Lisboa, Etnopsicólogo, Escritor, Membro do Senado da Universidade de Cambridge, UK, membro activo de Amnistia Internacional, que tem tido a mais alta honra de ser o cunhado de Maria Eugénia González Castillo.

Parede,  Portugal, 7 de Dezembro de 2008.

sexta-feira, dezembro 05, 2008

É a consciência do professor que o faz saber, não é a burocracia

O Professor Raúl Iturra não pára de de me prodigalizar provas de consideração e amizade (que dificilmente consigo agradecer-lhe como justo seria). E nessas provas ele renovadamente se mostra cidadão atento, activo e empenhado no país em que, por opção pessoal, tomou a sua mais recente nacionalidade.
Ele não podia deixar de olhar o que se passa no sistema educativo português, no que ao ensino secundário muito prementemente, nos dias de hoje, diz respeito.
É com a sua autorização que agora publico neste blogue um texto que escreveu muito recentemente. É um texto muito sério, que merece todo o nosso cuidado na leitura. É um texto em que o Professor Raúl Iturra procura levar-nos a tomarmos consciência do que é que está - ou do que é que faz - o âmago, a essência da educação, do acto educativo: está dentro da pessoa do professor.
As teias, as tramas das relações sócio-económicas, das tensões e dos conflitos entre os diferentes níveis da hierarquia social; e as lutas políticas e partidárias pelo controlo do poder legislativo e executivo - tudo isto constantemente exerce forte pressão sobre o sistema educativo, determinando os comportamentos dos pais, as decisões dos governantes... quais mares que, quando batem nas rochas, lixam o mexilhão. Os mexilhões - está-se já a ver - são os professors e os alunos.
Muitas das vozes que hoje se cruzam em brados estão, ou não estão (mas suspeita-se que estão), ao serviço de algum interesse ou conveniência menor, o que dificulta que se leia ou ouça, sem desconfiança, ideias, argumentos e propostas que consigam resolver os actuais - e graves - problemas do ensino secundário em Portugal.
Repito, o Professor Iturra esforça-se sinceramente por nos chamar a atenção para a necessidade de (quem realmente quiser ocupar-se com e resolver os problemas do ensino secundário, promovendo as condições indispensáveis para que os professores possam desempenhar satisfatoriamente a sua função social) não deixarmos de manter o debate, a discussão, a dialéctica e o conflito no âmago (ao mesmo tempo humano, social e político) do acto educativo.
Obrigado, Professor, por (mais) esta sua valiosíssima lição!

O QUE É EDUCAÇÃO [?]

Para Daniel Índias Fernandes, filho de Graça e Rui, no dia do seu aniversário

A questão parece simples. Ou, melhor, a pergunta. No entanto, ela sempre foi complexa e heterogénea. Há vários tipos definições de educação. A mais simples é dizer que educação vem do latim[1] e significa o que está na nota de rodapé de esta página. No entanto, tem significado para discutir, como esse o de domesticar. Não tenho esquecidas três definições fornecidas por mím, em vários textos meus.

Um desses textos, é um livro meu que cito no pé de página[2], livro no qual, após ter analisado com uma larga equipa mais de 40 crianças da aldeia de Vila Ruiva em Portugal, Concelho de Nelas, concluí que educar era formar cidadãos para os subordinar às formas e costumes de ser do nosso país. Aliás, para fazer de eles pessoas impingidas de saber social. Nunca esqueço esses anos de 1988-1989, dias em que imensas crianças nos acordavam às seis da manhã para começar os nossos trabalhos entre as 9 e as 12 horas da manhã dos verões escaldantes do lugar. Eram crianças entre os cinco e dez anos, hoje em dia todos profissionais de alguma parte do saber cívico ou com profissões que eu denomino doutorais. Doutorais, por haver dois tipos de saberes, o da mente cultural, definida no texto citado, conceito sobre o qual tenho um direito de autor oferecido a mim pela Sociedade Portuguesa de Autores (ou SPA), conceito deduzido da minha observação de ver como os pais ensinavam as suas crianças: “pega no livro, vai ao quarto e lê, caraças”. Os pais mais nada podiam dizer, eles próprios nunca tinham ido à escola, ou se nela tivessem estado, era para se distrair a pensar no que mais amavam, semear batatas. O convite ao estudo não era por isso amável, era a ambição de progenitores de quererem ver os seus descendentes angariar a vida, impingindo o seu saber na interacção social. Objectivo bom, mas mal entendido, para que os pudesse orientar dentro das avenidas do saber doutoral, esse saber pretenso de ser conhecido por poucos mas solicitado a todos. Especialmente hoje em dia, ao ser mandado aos docentes de qualquer grau de ensino, avaliar a sua actividade, um dia após outro. Esta avaliação que acaba por esmorecer a actividade dos docentes: preparar aulas, estudar para saber o quê dizer, escrever ideias novas de academia, explicar cada palavra da sua aula e, no fim de um dia bem ganho com a canseira de falar o dia todo no intuito de fazer dos mais novos cidadãos sábios, ou pelo menos submetidos ao braço da lei, reunir todos eles para, como hoje está mandado, avaliar o desempenho do dia. Dia que começam às 8 da manhã e acabam tarde, quase noite, pelas 20 horas. É este modelo que tenho auscultado ao analisar crianças Picunche, no Concelho de Pencahue, Província de Talca, no Chile do falecido ditador. E é este mesmo modelo que manda aos municípios, homens de política, orientar as escolas primárias e secundarias de sua jurisdição, o que em Portugal, seria uma Freguesia. Parece-me que o conceito freguês é adequado: obediência, disciplina, ver, ouvir e calar. Formas ditatoriais de definir a transferência de saberes de uma geração a outra, sem um carinho que arrebite o cansaço dos mais novos ou premeie com mais um dúzia de tostões, o deboche imerecido da exaustão desse desmerecido fim de dia. Especialmente entre os docentes de ensino especial, que reúnem sempre, dia após dia, para comparar a metodologia de João de Deus, trazida para nós por essa grande minha amiga, antiga subsecretária da educação, Ana Maria Toscano de Bénard da Costa[3], que nem por isso tem sido ouvida. Ou a opinião dos que trabalham com os que sofrem do espectro de autismo, imensos em Portugal, o meu antigo orientado de doutoramento, José Manuel Pombeiro Cravo Filipe[4], educador especial.

Uma segunda ideia que aparece no meu pensar, é que educar é a ternura de transferir saber dos adultos aos mais novos. Um saber que não está em livro nenhum, que reside na mente do educador e que, por acaso, se pode encontrar na vida social e natural. Os textos estudados por mim para entender o processo de ensino-aprendizagem, têm-me ensinado esta ideia. Essa grande dúvida de todo o educador, que entende que ao ensinar, aprende com as perguntas colocadas pelos mais novos, questões com emotividade, racionalidade e erudição retirada da vida social e do saber histórico pragmático do sítio onde os mais novos moram. Todo o bairro, vila ou aldeia nos países do mundo, têm dois mapas: o que está no saber dos estudantes que andam pelo seu desenho de corta mato, desconhecido pelos docentes que têm a delicadeza de andar pelos passeios, pelas ruas e as cruzar por passadeiras. Passadeiras que muitos de nós nem respeitamos na infantilidade que fica sempre dentro de nós ao desafiar, de forma parva, os carros que vêm de longe, a alta velocidade, mais outro adulto infantil que faz das ruas, estradas... Não é por acaso que, ainda sem carros mecânicos, os sábios gregos definiam educação como processo que leva à democracia[5].

Estas são ideias que usamos com Paulo Freire, asilado no Chile ao ser perseguido pelo Ministério da Educação. A sua pedagogia é simples e a aprendi com ele na acção: todo o mundo sabe; é preciso retirar esse conhecimento e fazer razoar a mente que pensa. As escolas apenas precisam levar aos estudantes aos sítios materiais dos quais o saber é retirado, sem o indivíduo saber que sabe. Na segurança lógica do conhecimento, esta é a educação. É por isso que a denomino processo de ensino-aprendizagem. A cultura doutoral não é superior à prática pragmática de saber entender a vida natural. Aliás, digo eu, a cultura doutoral perverte os professores e as suas autoridades, que mandam avaliar o que se faz cada dia. Os mais novos precisam de adultos que os amem e, descansados, poderem raciocinar e, assim, ensinar. Toda outra actividade não é apenas ilegal, bem como anti-pedagógica. É a consciência do professor que o faz saber o que, como e quando dizer, e não a burocracia. Essa [orientação] ministerial mata o necessário amor ao ensino, pois quem nunca ensinou, nem faz ideia do que é o processo de ensino-aprendizagem. Esse processo é vivido, não decretado. Os decretos são os assassínios do saber, especialmente ao serem ditados pela afamada Sociologia Industrial, que, por vezes, nas suas práticas, dão cabo do saber das crianças, os proletários do saber, com a burguesia a possuir os meios de produção pedagógico nas suas mãos inexperientes.

Educar é saber com amor, sem perseguições, e controlos quotidianos que matam a quem sabe.

Raúl Iturra, português.

 Parede, 28 de Novembro de 2008.

Catedrático de Etnopsicologia do ISCTE, Lisboa, Senador da Universidade de Cambridge, Membro de Honra do CNRS, Paris, Investigador do CEAS/CRIA/ISCTE, escritor e membro activo na primeira linha de Amnistia Internacional e dos Direitos Humanos.

lautaro@netcabo.pt


[1] Do lat educare v.educarev. Tr., desenvolver as faculdades físicas, intelectuais e morais a; instruir; doutrinar; domesticar; em: http://www.priberam.pt/dlpo/definir_resultados.aspx 

[2] A construção social insucesso escolar. Memória e aprendizagem em Vila Ruiva, 111 páginas, especialmente página do livro em formato de papel: p.87, Capítulo 8: “A sabedoria das crianças”, Escher (antes) Fim de Século hoje, 1990 a, em várias entradas Internet de: http://www.google.pt/search?hl=pt-PT&sa=X&oi=spell&resnum=0&ct=result&cd=1&q=Ra%C3%BAl+Iturra+A+constru%C3%A7%C3%A3o+social+do+insucesso+escolar&spell=1

[3] A sua biografia e opinião sobre o que eu denomino processo educativo, pode ser lido em: http://sinistraministra.blogspot.com/2008/03/entrevista-ana-maria-bnard-da-costa.html

[5] Aristóteles, 330 antes da nossa era, no seu texto: Ética a Nicómaco, diz, em síntese:A educação deveria inculcar o amor às leis – elaboradas com a participação dos cidadãos –, mas a lei perderia sua função pedagógica se não se enraizasse na virtude e nos costumes: "a lei torna-se simples convenção, uma espécie de fiança, que garante as relações convencionais de justiça entre os homens, mas é impotente para tornar os cidadãos justos e bons". Livro escrito para o seu filho Nicómaco, especialmente Livro I, capítulo X, em: http://www.analitica.com/bitblioteca/Aristoteles/nicomaco01.asp#l1c2, sítio para ler o texto inteiro. É assim que o livro e também denominado “...o da Educação”. Ideias usadas por Émile Durkheim para os seus textos de pedagogia. 

terça-feira, dezembro 02, 2008

Eu e a greve dos professores, amanhã, dia 3

Escrevi hoje assim para os meus colegas de escola, a propósito da greve de professores, amanhã. dia 3:

Caros colegas,
 
Penso que não conseguiria deixar passar este dia sem dizer qualquer coisa.
Desculpem-me a extensão do texto: 

 

                O texto que aqui trago resulta, essencialmente, da circunstância de três ocorrências se terem juntado por puro acaso. O que não foi obra do acaso foi a associação que entre elas fiz.

                Primeira ocorrência: recentemente escrevi uma carta aberta em que falava do privilégio que foi conhecer, ser considerado amigo e ter partilhado o cadeirão dos sábios com o dr. João dos Santos. Mais do que uma vez eu o ouvi dizer o que, numa última vez, ele repetiu no seu consultório, quando a doença, que acabou por vitimá-lo, já lhe tinha levado a robustez do porte e dos gestos. Uma última vez, como que a aconselhar-me que nunca o esquecesse: que, na vida, o que verdadeiramente importa é a educação e a política.

                Estou certo de que se com ele me cruzasse agora, precisamente da maneira que com ele me cruzei naquela última vez, quando eu caminhava a pé, vindo do Marquês de Pombal para o centro comercial das Amoreiras, eu saberia o que faria, como o olharia, e o que lhe diria. Novamente, como nessa vez, já com o centro à vista, eu deixaria fosse o que fosse que lá me levasse, e voltaria para trás com ele, acompanhando-o ao seu consultório. E lá, outra vez sentados, um em frente do outro, eu lhe diria, olhando com ternura e satisfação antecipada pela aprovação que ele seguramente me dirigiria, que nunca mais me tinha esquecido das suas palavras, e a inventariação das minhas empresas pessoais e profissionais aí estariam para o comprovar.

                Segunda ocorrência: como muita gente da minha idade, vi o filme "Música no coração", pela primeira vez, há mais de 40 anos. Há dias, fui à FNAC e lá encontrei, sem que intencionalmente o procurasse, um CD com uma versão recente de todos os temas musicais do filme. Não gosto muito desta versão. O refinamento a que os vários temas musicais foram levados, cantados por vozes belíssimas, educadas profissionalmente anos a fios, teve como consequência afastá-los de nós, que cantamos no caminho para o trabalho, durante o banho, ou quando nos ocupamos com uma tarefa caseira. Na versão original, quando os actores cantam, a gente acompanha-os. Nesta versão, as belas vozes desapropriam-nos da identificação aos actores e às melodias que cantam. Podemos apenas agarrar-nos ao sentido dos versos.

                Mas no meio de uma decepção generalizada, sim senhor, apreciei muito a reprise final do tema Climb ev'ry mountain. No canto, que coisa mais envolvente há que o vigor do coro feito de homens e mulheres cantando à uma? E precisamente aqueles versos acompanham-me há mais de 40 anos. Sim, desses versos eu me apropriei e toda a vida os tenho cantado. Tornei-os na minha maneira de viver a vida.

                Entretanto, dramaticamente consciencializei que alguma coisa mudava no meu pensamento e na minha forma de ver as coisas. Qualquer coisa, que até há bem pouco eu tinha como condição pessoal adquirida por esforço pessoal honesto ao longo de um já bem considerável número de anos, afinal, tinha sido perdida: pela acção de intenções e decisões espúrias e mal-intencionadas por parte de quem tem responsabilidades governativas no meu País (por parte de quem deveria usar o poder que democraticamente a sociedade portuguesa precisamente ao contrário do que o fez – na minha opinião, evidentemente. Opinião, entretanto, igual à de tanta gente! Lembro-me, por exemplo, de um artigo há muito tempo escrito por José Gil, na Visão, que falava de um, digamos, "pecado original" dos actuais decisores da educação em Portugal, na forma de se lidar com os professores do ensino secundário), dizia eu, eu tinha para mim adquirida a dignidade de professor. A minha dignidade. É, hoje sinto que não a tenho, que ma roubaram.

                E que tem isto a ver com o tal tema musical do "Música no Coração"?... Esse tema musical desafia-nos a subir montanhas e a vencer obstáculos, sempre em perseguição do sonho que devemos alimentar com todas as nossas forças. Pois, hoje em dia, eu sinto que a dignidade profissional passou a fazer parte do meu sonho. Deixou de estar adquirida e passou a fazer parte do meu sonho, vou ter de juntar forças e ir outra vez em busca dela. Ao pé desta empresa, a subida ao Quilimanjaro, que realizei há pouco mais de um ano, torna-se quase insignificante. Assim tenha eu forças para juntar à de tantos outros professores que estão no mesmo sonho, na mesma luta!...

                Terceira ocorrência: o canal Odisseia, da televisão por cabo, passou regularmente, durante o mês de Novembro, uma série de documentários reunidos à volta de um tema aglutinador: o poder da mente. Tentei vê-los todos, uns mais que outros serviam propósitos e conteúdos das minhas aulas de Psicologia.

                Um desses documentários foi sobre o perdão, sobre a elaboração pessoal da culpa, da raiva, do ódio, da perda; do trabalho do luto e da emergência do perdão. Coisa extraordinária!, a merecer reflexão e discussão pessoal sinceramente dedicada.  Mas agora não. Agora, apenas o que tem a ver com a circunstância de juntar três ocorrências a que atribui um significado. Uma das histórias apresentadas era a de uma mãe, pastora anglicana, que perdeu a filha de 24 anos de idade nos atentados bombistas que houve há poucos anos no Metro de Londres. Dizia ela que sentia culpa. Todo o seu magistério fora sempre dedicado a promover a paz, a concórdia e o perdão. Mas aquela experiência pessoal, que a rasgara cruamente até ao mais fundo do seu ser, mergulhou-a na mais intensa das raivas; afundou-a numa culpa castigadora; e nunca a permitiu sentir a dádiva do perdão. Até que um dia, muitos e muitos dias depois de intenso trabalho de reflexão pessoal, conseguiu perceber a origem da culpa. Só nesse momento ela foi capaz de vencer a raiva e foi capaz de sinceramente perdoar. Testemunhou ela para os autores do documentário que um dia ela percebeu que muito falara na sua igreja, na sua paróquia, do amor do próximo, do respeito pela diferença, da comunhão com o outro. "Mas, o que é certo, é que nunca fui para a rua, nunca fui a uma manifestação em que me juntasse a outros iguais a mim, e a outros diferentes de mim, e nunca gritei na rua pelos direitos dos outros e pelo verdadeiro respeito pela diferença. E perguntava-se: Como poderiam os outros, os que eram diferentes de mim, saberem que eu estava ali com eles?...

                É assim, colegas, amanhã, e sempre, mesmo depois de amanhã, eu quero estar na rua a manifestar-me, ao lado de outros, perseguindo o meu sonho, na luta política, a luta que faz o outro lado da educação que abracei.

Bjnhs e abraços!

quarta-feira, novembro 19, 2008

Carta aberta ao Professor Vital Moreira

Sr. Provedor,
A publicação, na edição do Público de ontem, dia 18 de Novembro, na secção "Espaçopúblico", de um artigo de opinião do Professor Vital Moreira, sob o título "Uma reforma que não pode ser perdida", na página 41, merece da minha parte, professor do ensino secundário público, um comentário que a seguir exponho e que peço seja publicado no jornal. Obrigado!


Senhor Professor Vital Moreira,

               Ainda nos anos 80, depois de ter concluído a licenciatura em Psicologia, recebi um convite irrecusável de uma universidade americana que me abria as portas de uma carreira universitária muito promissora, convite "irrecusável" que recusei.
               Levei algum tempo a decidir-me, longas conversas sobre este assunto mantive com o dr. João dos Santos, que algumas vezes me convidou a sentar-me ao seu lado, ali nos “cadeirões dos sábios”, como ele dizia, na sua casa de Sintra. Entre outras coisas, ele alertou-me: "Fernando, há oportunidades que só surgem uma vez na vida, mas cada um de nós é que tem de saber por qual optar, tentando ter claras para si todas as consequências que da escolha advirão. E são consequências pessoais, profissionais e de cidadania". Como já disse, recusei o convite irrecusável. Educadamente, bem entendido.
               Hoje, depois de ler o seu artigo de opinião no Público, assinado (provavelmente a responsabilidade não é sua) como "Professor universitário", rememorei o convite e as conversas com o dr. João dos Santos e senti-me a renovar a satisfação pela opção de abraçar o ensino secundário.
               Sabe, Professor, o senhor tem sido, de há muitos anos a esta parte, uma das minhas mais importantes referências políticas e de participação cívica; e não deixará certamente de o ser depois desta carta.
               Errar é humano. Vale para si e vale para mim.
               O que eu disse sobre o convite americano não me confere competência especial, nem sequer legitimidade para opinar e comentar as suas opiniões acerca do tema central do seu artigo e deste meu contraponto: o processo actual de avaliação dos professores portugueses no ensino secundário.
               Conhece certamente a já clássica afirmação de Ortega e Gasset, "Eu sou eu e a minha circunstância". O "episódio" que comecei por apresentar pretende apenas alguma coisa dizer sobre a circunstância histórica e de desenvolvimento pessoal que me leva a escrever o que a seguir vai encontrar.
               Os tempos que correm não são de feição para os textos longos, doutrinários ou outra coisa que sejam. Querem-se (diz-se – alguém diz – que é assim que a opinião pública os quer) "concisos", "directos", que vão logo ao fundo das questões.
               Vou tentar fazer assim.
               E parto destas premissas: há bons e maus professores. A grande maioria, são professores bons, com vontade de fazerem cada vez melhor. E, desta maneira, não somos melhores, nem piores que qualquer outro grupo profissional.
               A primeira ideia com que fiquei do seu texto foi que se espraiava fundamentalmente em considerações ou aspectos ideológicos; mas agora já hesito se não predominarão as considerações e os aspectos puramente afectivos.
               No meu pensamento – humano, por isso, repito, sujeito ao erro -, sintetizo a sua argumentação numa simples afirmação, que imagino mentalmente quase gritada por quem histrionicamente cerra com força nas mãos uma bandeira bem levantada "- A reforma! Avante a reforma!...! Eu até direi: "- Pois… a reforma, seja… Mas… qual reforma?..." Neste aspecto penso que o seu texto é completamente omisso, ao contrário de outros artigos de opinião publicados na mesma edição do Público, como sejam os do "jornalista" (assim apresentado) José Vítor Malheiros, de Helena Matos, e de Miguel Gaspar. Daí a minha hipótese da ideologia e da afectividade. E pergunto-lhe: de que nos serve a ideologia sem substância?... Ou a afectividade?... Sinceramente custa-me imaginá-lo quase preso da irracionalidade que vocifera "É preciso não deixar que essa classe consiga ganhar!..."
               Lamento vê-lo estatelar-se nas águas lamacentas das afirmações preconceituosas que garantem (com base em que critérios que são puramente subjectivos, neste caso, os seus) que os professores não querem ser avaliados. A este propósito, permito-me enviar-lhe, em anexo, um pequeno texto de circunstância, que escrevi à pressa num dos meus blogues, seguramente incompleto, mas que seguramente também expressa o essencial da minha ideia sobre o assunto. E sobre isto não digo mais nada.
               Percorre outro caminho de consistência muito duvidosa e traiçoeira quando diz que "é mais do que compreensível que uma reforma destas não seja aceite de bom grado por uma classe profissional mal habituada a uma "carreira plana", sem diferenciação de níveis profissionais e com progressão profissional garantida por simples antiguidade." Professor Vital Moreira, estas palavras não podem ser suas, não acredito. Não o tenho em conta de nenhumas das seguintes alternativas: da ignorância e da irresponsabilidade que põe alguém a falar com gravidade do que não sabe; ou da má fé, por parte de quem sabe que está a dizer coisas que não correspondem à verdade.
Por palavras semelhantes, colegas meus de uma escola secundária de Viseu apresentaram já queixa em tribunal contra o sr. Primeiro ministro José Sócrates. O menos que importará agora será a condenação ou a absolvição do potencial réu. O Senhor Professor sabe bem os caminhos complexos que as verdades e as mentiras tomam nos corredores e salas de audiência dos tribunais. O que não se apagará já, nunca mais, do comportamento dos homens é a defesa da dignidade e da honra assumida por quem tem responsabilidades educativas sobre “os homens de amanhã”, que devem fazer a experiência humana e social de valores e éticas na vida dos grupos humanos em que participam.
               Não quero tomar-lhe muito mais tempo. Por isso, antes de algumas considerações finais, ó Professor Vital Moreira, quando diz que "não existe razão, salvo uma ilegítima prerrogativa 'histórica', para que os professores não sejam avaliados", sabe que isso duvidosamente vai além do simples jogo de palavras. Sabe isso, não sabe?... Pergunto-lhe outra vez, se me dá licença: que substância tem essa afirmação? Escreveu assim porque estava a ironizar, não estava?
               Na minha opinião, na minha representação mental das coisas, à moda do mítico Sancho Pança, quase pragmaticamente, as reformas devem ser avaliadas como as árvores, pelos seus frutos. E que frutos produziu já esta árvore? Vejamos: abandono das escolas por parte dos professores mais velhos, com mais tempo de serviço, mais experientes. Desencantados e ofendidos. Tratados sem dignidade.
Como outros grupos profissionais, temos muitas características corporativas; e uma delas, das mais importantes, é a transmissão do saber e da experiência, pessoa a pessoa. Concorda comigo, ou não? Se concordar, será também levado a concordar que muitas escolas estão a ficar decapitadas e descapitalizadas (falamos de capital humano, naturalmente), o que empobrece o ensino. E, por favor, não caia no outro preconceito de dizer que os professores que foram embora são provavelmente os que não queriam trabalhar mais! Isso já foi dito perante as câmaras das televisões por quem verdadeiramente tem responsabilidades políticas pelo governo da Educação em Portugal! E já foi respondido bastamente. O caso da Escola Infanta D. Maria, paradigma das escolas do ensino público nos tão discutíveis rankings das escolas será exemplo suficiente. Dou aulas em Lisboa, conheço esta escola de Coimbra e já lá estive, e comigo levei alunos, para com professores e alunos de lá aproveitarmos dos seus saberes. Antes do aparecimento dos rankings.
               A sociedade portuguesa, não obstante todos os "simplexes" produzidos, continua a justificar as tiradas humoristas dos "Gato Fedorento" sobre "o papel, qual papel?..."
               Um dia, Sebastião da Gama respondeu a alguém que lhe perguntava se tinha muito que ensinar: "Não, tenho muito que amar". Hoje muito dificilmente os professores têm tempo para ensinar, mais dificilmente para amar; porque a exigência é de que se escrevam ou preencham formalidades. E o Professor sabe que uma "ficha" (no governo da Educação deste País é a palavra que se ouve mais; a outra a seguir é "aligeirar". E de tanto se aligeirar torna-se quase humilhante o nível de exigência a que se chega, acredite!, é um professor do Secundário que lho diz agora! O que torna indigna a avaliação… o modelo… a reforma. E contra essa reforma inconsistente os professores também se opõem) que se escreve sobre um aluno, sobre muitos alunos, por mais pequena que seja, não se escreve assim num repente com dois rabiscos, se se quer agir com sentido de responsabilidade e com objectivo de eficácia útil para o(s) aluno(s) em questão.
               Argumentará que padeço do mesmo mal que o acuso: a ideologia ou a afectividade. Será?... O senhor ajuizará de mim como eu tive a liberdade de o fazer em relação a si.
               Miguel Torga dizia que para educar é preciso ter as mãos purificadas. Será que vivemos tempos em que se torna ridículo assim falar, tal como no admirável mundo novo de Aldous Huxley se tornou ridículo dizer-se que se tinha nascido por parto natural?
               Acredite que tenho necessidade de ouvi-lo com a objectividade, a imparcialidade (não obstante os escolhos inerentes a este conceito; bom como em relação aos outros, afinal) e a "meta"-reflexão a que aos poucos me habituou. É verdade, pôs-me esse "vício" no corpo. Precisamos de pessoas assim, que nos esclareçam. Faça-me acreditar que este seu texto é um pesadelo que a noite trouxe, mas que a manhã, quando chegar, vai dissipar.
       Voltando a Sebastião da Gama – cujo Diário considero um fabuloso manual de verdadeira pedagogia, sempre actual, porque prodigaliza o húmus da fundamental relação pedagógica entre o professor e a turma; e infelizmente completamente esquecido (se calhar nunca o leram!...) por muitos dos nossos responsáveis educativos -, ele escreve a certa altura: “Ser PROFESSOR É DAR-SE… e lembrei-me então do Amaro e de que era tão bom que não fosse apenas o professor a dar-se…”
       E acabo com palavras do Padre António Vieira, de quem ainda estamos a comemorar os 400 anos do seu nascimento: “Para ensinar sempre é necessário amar e saber; porque quem não ama não quer; e quem não sabe não pode; mas esta necessidade de sabedoria e amor não é sempre com a mesma igualdade. Para ensinar nações fiéis e políticas é necessário maior sabedoria que amor; para ensinar nações bárbaras e incultas é necessário maior amor que sabedoria.”

Fernando Pinto, professor do ensino secundário, na Escola Secundária Eça de Queirós, em Lisboa

ANEXO:
A avaliação e os professores - 1: Porque é que se desconfia dos professores sempre que eles falam em avaliação?
Indo direito ao assunto: desconfia-se dos professores porque ninguém gosta de ser avaliado. O que quer dizer que quando alguém, da "opinião pública", ouve os professores a dizerem que não contestam a avaliação, o que contestam é este modelo de avaliação, pois esse "alguém" pensa logo que os professores estão a mentir, porque, na verdade, o que eles querem é não serem avaliados! E isto é verdade!... Só que, como diria Marcelo Rebelo de Sousa parodiado pelo Ricardo Araújo Pereira, "É verdade, mas isto não é bem verdade..."
Vou tentar explicar.
Ninguém gosta de ser avaliado. Ponto. Só gosta de ser avaliado quem gosta e precisa de receber um elogio e acredita que merece e vai recebê-lo.
O ser humano, enquanto tal, e qualquer ser - humano e não humano - não existe para ser avaliado. Qualquer ser existe para agir, para fazer coisas, uma após a outra e, em função dos resultados que obtém, volta a fazer igual, ou faz diferente. Ora, isto, se tem alguma coisa de avaliação, é de "auto"-avaliação, não é de "hetero"-avaliação.
O ser (humano ou não) quando avalia não é para penalizar, é para melhorar, é para "afinar a pontaria".
O problema da avaliação, hoje em dia, em geral - e, se calhar, nas sociedades humanas cheias de superegos - é que é sempre penalizadora.
A natureza quando põe a leoa a falhar a vitória sobre a presa - essencial para alimentar os seus filhotes - não castiga a leoa (já é "castigo" suficiente ela ficar sem o alimento), mas obriga-a, só pela simples falha do seu labor, a ser melhor da vez seguinte.
Sejamos claros, a natureza hedonista do ser humano não aprecia a avaliação: nem a natureza humana dos professores, nem a natureza humana dos que dizem que os professores (quando dizem que não recusam a avaliação, mas apenas este modelo de avaliação) o que na verdade querem é não serem avaliados.
E porquê? Porque nas nossas cabeças, na nossa tradição judaico-cristã (pelo menos nesta), a avaliação é sempre penalizadora. A avaliação tem sempre a ver com o castigo do pecado.
O reconhecimento da necessidade da avaliação é, sem rodeios e para simplificar o assunto, do domínio da ética. Por isso todos dizemos que a avaliação é uma necessidade... mas todos detestamos a avaliação... Esclareça-se: a nossa avaliação... feita pelos outros.
Fundamentalmente, o que é a avaliação? A avaliação é isto: é alguém que chega ao pé de nós e nos diz: "Ora muito bem, aqui estou eu, que tenho mais poder do que tu (note-se, poder; não competência), e venho ver se tu estás a fazer bem o que devias fazer bem; e, eu, que tenho o poder que tu não tens,  se achar que tu não estás a fazer bem, pois vou ter de dizer a quem tem mais poder do que eu, que tu não estás a fazer exactamente como deverias."
Eu poderia discorrer sobre outras implicações desta perspectiva, de segunda e terceira ordem, até sobre a avaliação que recai sobre quem avalia, mas não me quero desviar do essencial e por isso não o vou fazer... agora! Talvez noutro apontamento, noutro dia.
Quem é que gosta de ter na sua frente alguém com poder para dizer que não está a fazer bem o que devia estar a fazer bem e assim ficar sujeito a uma qualquer forma de castigo?... Ninguém!
As pessoas da "opinião pública" não gostam da avaliação e sabem que os professores também não gostam, porque têm a mesma natureza hedonista que os da "opinião pública"! E todos "suportam" a mesma ética.                    

domingo, novembro 16, 2008

A criança de Thomas Mann, o filósofo de Konrad Lorenz e as fadas do Peter Pan

Thomas Mann, também ele, repetiu a experiência pessoal de percorrer - como ele próprio diz - as "intermináveis extensões do oceano", "desbobinando... bocados de imensidão".
Nuna dessas vezes, ele leu, "ruminou" e escreveu sobre Cervantes e o D. Quixote de la Mancha.
A"circularidade do oceano", o "vazio absoluto", a "amplidão cósmica" e o diário acerto das horas, repetidamente levando-o de novo - ilusoriamente, mas obrigatoriamente - a um tempo de vida já passado; pois tudo isto terá produzido efeitos de eco, reverberação e amplificação de representações mentais e imagens sugeridas pela obra prima e clássica da literatura castelhana e mundial.
De tal modo que, a dada altura, ele escreve:
Que pensamentos estes, dignos de um rapaz em idade escolar!" Mas não é assim, que a mundividência cosmológica, quando comparada com o seu oposto, a psicológica, tem em si algo de pueril? Dizendo isto recordo-me dos olhos de criança, brilhantes e redondos como uma bola, de Albert Einstein. É mais forte do que eu: o conhecimento humano, o acto de perscrutar a vida humana, tem um carácter mais maduro, mais adulto, que a especulação em torno da Via Láctea - com o mais profundo respeito quero ter isto como verdadeiro. "Ao indivíduo", lemos em Goethe, "resta a liberdade de se ocupar com aquilo que o atrai, que lhe dá alegria, que se lhe afigura útil; mas o verdadeiro estudo da Humanidade é o Homem"."
Curioso!... No apontamento que ontem acrescentei neste blogue, também eu me fixei mentalmente nos olhos de espanto de uma qualquer criança. "Elementar, meu caro Watson", como, ao que parece, Sherlock Holmes nunca terá dito. E como eu próprio ponho agora na boca dele: "Esses olhos de criança, mesmo que da criança grande de nome Albert, são os próprios olhos do sujeito que olha ou imagina os olhos das crianças, os olhos do próprio espanto do sujeito que olha".
Pois é, pela minha parte não vou ao ponto de concordar com Thomas Mann, sobre a madureza superior do conhecimento humano. Como mais claramente que qualquer outro Konrad Lorenz me soube dizer , o que importa é o espanto de quem olha, seja para onde seja que olhe. Esse espanto, que Jean Piaget, também melhor que qualquer outro, soube mostrar que está no "instinto" de toda a actividade humana. É aí, no momento do espanto, que nasce a filosofia, diz Lorenz. Eu diria, é aí que nasce o filósofo.
Num dia destes, na rampa ziguezaguiante que agora temos sempre de percorrer para entrar e sair da escola, cruzei-me com uma antiga aluna que me cumprimentou muito carinhosamente. "Setôr, porque está tão sério a olhar para mim?..." "Minha querida, estou a chegar, com o corpo já bem dentro da escola, mas a cabeça ainda está longe. Quero ter a certeza de que te estou a ouvir bem." "Mas está zangado comigo?" Eu já estava parado ao lado dela. Mas agora virei-me bem para ela, a sua dúvida merecia agora toda a minha disponibilidade pessoal. Disse-lhe, então, devagar e a sorrir: "Quando um bebé tem toda a sua atenção sobre ti e quer saber quem tu és, como te olha ele?... Não será que te olha como eu acabei agora de te olhar?... A aluna calou-se por um bocadinho, cerrou ligeiramente os olhos, fixou-os nos meus, olhando infinitamente para além deles. Estava seguramente buscando nas suas memórias.
Até que encheu o rosto num sorriso: "É verdade!... É verdade, é!... O setôr quer mesmo [re]conhecer-me!..."
Voltando ao filósofo (às crianças-filósofos), é ele, são eles que nos entram ou deveriam entrar pela escola adentro, logo aos 5 ou 6 anos. Se não chegam, ou se aos poucos o deixam de ser, é porque, na voragem do ensino obrigatório, uniformizado e competitivo, acabamos por lhes dar o mesmo destino que na ficção cinematográfica da Terra do Nunca do Peter Pan se acaba por dar às fadas que nascem com todos os meninos:

WENDY (with great eyes). You know fairies, Peter!
PETER 
(surprised that this should be a recommendation). Yes, but they are nearly all dead now. (Baldly) You see, Wendy, when the first baby laughed for the first time, the laugh broke into a thousand pieces and they all went skipping about, and that was the beginning of fairies. And now when every new baby is born its first laugh becomes a fairy. So there ought to be one fairy for every boy or girl.
WENDY 
(breathlessly). Ought to be? Isn't there?
PETER. Oh no. Children know such a lot now. Soon they don't believe in fairies, and every time a child says 'I don't believe in fairies' there is a fairy somewhere that falls down dead. 
(He skips about heartlessly.)

WENDY (com os olhos muito abertos). Tu conheces fadas, Peter!
PETER (surpreendido que isto soasse como um aviso). Sim, mas agora elas estão quase todas mortas. (Cruamente) Sabes, Wendy quando o primeiro bebé riu pela primeira vez, o riso estilhou-se em mil bocados e foram-se espalhando por todo o lado. E isso foi o princípio das fadas. Agora quando um bebé nasce o seu primeiro riso transforma-se numa fada. Por isso, devia haver uma fada por cada menino e cada menina.
WENDY (sustendo a respiração). Devia haver?... Não há?
PETER. Oh, não! As crianças agora sabem muitas coisas. Não tarda muito, não acreditam mais em fadas, e cada vez que uma criança disser "Eu não acredito em fadas" há uma fada, num lado qualquer, que cai morta para o lado. (Salta dum lado para o outro sem qualquer compaixão.)

É... tanto que nos rimos das coisas tontas e caricatas que as crianças seriamente dizem!... Tanto que lhes ensinamos de "verdadeiro" e "científico", e tanto lhes negamos o Pai Natal, as fadas e os anões da floresta. E aos poucos destruimos a magia e o espanto das crianças. Thomas Mann e Albert Einstein serão dos poucos que terão conseguido preservar os pequenos filósofos que nasceram quando eles riram a primeira vez.

Por isso me soube bem ouvir na quinta-feira passada, a meio de uma aula da minha turma dos CEF, o desabafo que se espalhou por toda a sala: Ó  setôr, se continua assim, a mostrar-nos estas coisas e a falar assim, ainda voltamos outra vez a acreditar no Pai Natal!...

sábado, novembro 15, 2008

Uma alegria tonta de uma loucura mansa

Ouvi hoje, num dos telejornais da noite, de um dos canais generalistas (Já não me lembro qual...), que foi batido o record do Guinness Book de derrube de peças de dominó em cadeia, ultrapassando os quatro milhões de peças.
No meio de tanto motivo, sobretudo profissional,  para estar alerta e tenso; e de tanto problema na sociedade portuguesa, do "concerto das nações" e do equilíbrio ambiental, foi consoladamente que vi a reportagem toda do acontecimento.
Imaginar a alegria de cada uma daquelas pessoas que pulavam de contentamento depois da última peça ter caído, os abraços que davam uns aos outros, denunciando, com olhos de meninos encantados e sonhadores, muitas e muitos esforços partilhados, tudo com muito entusiasmo, foi isso mesmo: consolador.
Parece que não se esteve contra ninguém; que não se forçaram os recursos da Natureza; que não se oposeram grupos sociais nem ideologias económicas; não se provocaram políticos, nem políticas de ministras intratáveis.
Também não foi nada que aliviasse a fome e as outras desgraças do mundo; mas também não concorreram para que aumentassem.
Com a tonalidade emocional com que vi a reportagem, até deu para pensar que a alegria ingénua e espontânea apaziguaria muita tristeza de olhos grandes de meninos pequenos tomados ao colo.

domingo, novembro 09, 2008

A avaliação e os professores - 3: Uma árvore conhece-se pelos seus frutos, não é?

Ora bem, vamos recapitular:
- Quem não concorda com a melhoria do ensino público? (Ninguém responde, silêncio total...)
- Quem não concorda que os professores devem ser avaliados? (Silêncio absoluto)
- Quem não concorda que os professores mais competentes e os mais capazes (provavelmente, os mais velhos, ou antigos) avaliem os mais novos? (Outra vez silêncio absoluto)
- Quem não concorda com a ministra da Educação que diz que uma ficha no princípio do ano, só três aulas assistidas ao longo do ano e uma ficha de avaliação no fim do ano, é pouco trabalho (Bem, ouviram-se uns sussurros, mas, verdadeiramente, ninguém se opôs)?
- Quem não concorda que é preciso separar o trigo do joio?
Pois é, postas as coisas assim, é difícil não concordar com tudo. Só que, na prática, como diz a cultura popular, de velha e sábia que é, de boas intenções está o inferno cheio.
Mas por aqui não vamos lá, quero dizer, por este lado, os professores pouco ou nada convencem a "opinião pública".
Sendo assim, vamos por outro lado:
- As reformas do Ministério da Educação (bem intencionadas, naturalmente) estão ou não a acelerar a saída, antes de tempo, das escolas dos professores mais velhos, mais próximos dos escalões superiores da carreira docente, assim já consagrados por estas mesmas reformas?
- Os rankings das escolas, que aí apareceram e por cá ficaram, para o bem e para o mal, estão ou não a mostrar o abaixamento das escolas públicas, em geral?
- Aumentou ou não o nível de insatisfação dos professores nas escolas, agora que se conta com duas manifestações públicas de mais de cem mil professores, em Lisboa, num período de oito meses?
- É ou não é verdade que a Confederação Nacional das Associações de Pais, que tão cedo saudou as decisões da Ministra da Educação agora já publicamente defende a necessidade de se fazer a revisão de decisões ministeriais, ou da sua aplicação, já que decisões há que estão a prejudicar o ensino e a aprendizagem nas escolas?
- Uma árvore conhece-se pelos seus frutos, não é?
- Que podemos nós dizer desta árvore que o Ministério de Maria de Lurdes Rodrigues e José Sócrates plantaram?
- Dá ou não dá por vezes a sensação que, afinal, se está a deitar trigo de muito boa qualidade fora?

A avaliação e os professores - 2: Porque é que toda a gente acha que os professores devem ser avaliados?

- Porque é que toda a gente acha que os professores devem ser avaliados?
A resposta a esta pergunta é simples:
- Porque, como em todas as profissões, em todas as actividades humanas, há bons professores e há maus professores. E todos nós conhecemos professores, ou porque andámos na escola, ou porque os nossos filhos andam na escola, e nós e eles passámos já pelas mãos de muitos professores... logicamente, bons e maus professores.
Mas na hora de falar de avaliação,  nós lembramo-nos é dos maus que tivemos ou que os nossos filhos tiveram. É como os médicos, todos nós conhecemos bons médicos e maus médicos.
Os outros profissionais, é mais difícil encontrarmos os tais bons e maus. É que nem toda a gente precisa de engenheiros (estou a falar da vida normal do dia-a-dia), ou advogados, ou arquitectos, ou... ou... ou... Mas a nossa saúde e a nossa educação não nos livra de médicos e professores.
Ora é precisamente por isto que, quando o mais pintado dos dirigentes dos sindicatos dos professores, ou de qualquer associação de professores, por mais independente e apartidária que seja, vem para a televisão ou para os jornais contestar a avaliação do Ministério da Educação, por mais honesto que seja, como eu já dizia no apontamento anterior, a "opinião pública" desconfia: é que nessa altura toda a gente se lembra daquele professor ou daquela professora que parecia mesmo muito incompetente e que deveria ser apanhada por alguém que lhe pudesse fazer o que esse professor ou essa professora merecia!...

A avaliação e os professores - 1: Porque é que se desconfia dos professores sempre que eles falam em avaliação?

Indo direito ao assunto: desconfia-se dos professores porque ninguém gosta de ser avaliado. O que quer dizer que quando alguém, da "opinião pública", ouve os professores a dizerem que não contestam a avaliação, o que contestam é este modelo de avaliação, pois esse "alguém" pensa logo que os professores estão a mentir, porque, na verdade, o que eles querem é não serem avaliados! E isto é verdade!... Só que, como diria Marcelo Rebelo de Sousa parodiado pelo Ricardo Araújo Pereira, "É verdade, mas isto não é bem verdade..."
Vou tentar explicar.
Ninguém gosta de ser avaliado. Ponto. Só gosta de ser avaliado quem gosta e precisa de receber um elogio e acredita que merece e vai recebê-lo.
O ser humano, enquanto tal, e qualquer ser - humano e não humano - não existe para ser avaliado. Qualquer ser existe para agir, para fazer coisas, uma após a outra e, em função dos resultados que obtém, volta a fazer igual, ou faz diferente. Ora, isto, se tem alguma coisa de avaliação, é de "auto"-avaliação, não é de "hetero"-avaliação.
O ser (humano ou não) quando avalia não é para penalizar, é para melhorar, é para "afinar a pontaria".
O problema da avaliação, hoje em dia, em geral - e, se calhar, nas sociedades humanas cheias de superegos - é que é sempre penalizadora.
A natureza quando põe a leoa a falhar a vitória sobre a presa - essencial para alimentar os seus filhotes - não castiga a leoa (já é "castigo" suficiente ela ficar sem o alimento), mas obriga-a, só pela simples falha do seu labor, a ser melhor da vez seguinte.
Sejamos claros, a natureza hedonista do ser humano não aprecia a avaliação: nem a natureza humana dos professores, nem a natureza humana dos que dizem que os professores (quando dizem que não recusam a avaliação, mas apenas este modelo de avaliação) o que na verdade querem é não serem avaliados.
E porquê? Porque nas nossas cabeças, na nossa tradição judaico-cristã (pelo menos nesta), a avaliação é sempre penalizadora. A avaliação tem sempre a ver com o castigo do pecado.
O reconhecimento da necessidade da avaliação é, sem rodeios e para simplificar o assunto, do domínio da ética. Por isso todos dizemos que a avaliação é uma necessidade... mas todos detestamos a avaliação... Esclareça-se: a nossa avaliação... feita pelos outros.
Fundamentalmente, o que é a avaliação? A avaliação é isto: é alguém que chega ao pé de nós e nos diz: "Ora muito bem, aqui estou eu, que tenho mais poder do que tu (note-se, poder; não competência), e venho ver se tu estás a fazer bem o que devias fazer bem; e, eu, que tenho o poder que tu não tens,  se achar que tu não estás a fazer bem, pois vou ter de dizer a quem tem mais poder do que eu, que tu não estás a fazer exactamente como deverias." 
Eu poderia discorrer sobre outras implicações desta perspectiva, de segunda e terceira ordem, até sobre a avaliação que recai sobre quem avalia, mas não me quero desviar do essencial e por isso não o vou fazer... agora! Talvez noutro apontamento, noutro dia.
Quem é que gosta de ter na sua frente alguém com poder para dizer que não está a fazer bem o que devia estar a fazer bem e assim ficar sujeito a uma qualquer forma de castigo?... Ninguém!
As pessoas da "opinião pública" não gostam da avaliação e sabem que os professores também não gostam, porque têm a mesma natureza hedonista que os da "opinião pública"! E todos "suportam" a mesma ética.

quarta-feira, novembro 05, 2008

Sobre a superioridade (?) da espécie humana

Estive hoje, ao final da tarde, na Fundação Calouste Gulbenkian, onde fui assistir à segunda conferência do ciclo "No caminho da Evolução", no âmbito da Exposição "A evolução de Darwin", comemorativa dos 200 anos do nascimento do "pai" da teoria da evolução das espécies.
A conferencista, Patrícia Beldade, fez uma apresentação muito harmoniosa e equilibrada, bem dirigida ao grupo dominante entre a assistência, alunos do ensino secundário. Gostei de ver tamanha plateia, com escolas de fora de Lisboa. De Valongo veio um grupo grande da Escola Secundária de Alfena. Espero que todos tenham aproveitado das duas horas de presença na Gulbenkian. Só que... já lá vamos.


O tema da conferência: "Evolução e Desenvolvimento: variações a dois tempos e muitas cores".
Como já disse, a conferência foi muito bem apresentada pela jovem investigadora portuguesa.
Já antes dela, um outro cientista (de quem não fixei o nome) fez uma muito agradável apresentação do livro "Evolução, história e argumentos".
Depois da apresentação da investigadora Patrícia passou-se a um período - amplo, por sinal, o que se saúda muito agradavelmente - de debate, perguntas e respostas.
Pois aqui é que a porca torceu o rabo!...
Então, Patrícia, fica-se perante uma plateia assim, sem uma folhinha de papel e uma esferograficazinha no colo?... Viu como se viu em dificuldade para se focalizar bem nas perguntas que lhe fizeram?... E reconhece que acabou por dar um exemplo pedagógico pouco conveniente, não é? Desculpe-me, mas a minha idade e a minha antiguidade em ofício idêntico ao seu responsabiliza-me por esta cordial chamada de atenção.
Os alunos cumpriram muito satisfatoriamente a sua obrigação, pondo perguntas sincera e esforçadamente saídas dos seus níveis de conhecimentos escolares, da sua generosidade adolescente típica, das cogitações próprias de espíritos prenhes de ideiais sociais e humanitários.
No meu entender, as respostas lá foram calhando - e encalhando - de acordo com o pouco cuidado no registo das perguntas (não me leve a mal que insista neste ponto, não é minha intenção criticá-la), que, para que não falhassem, na sua maioria estavam já escritas e foram lidas, depuradas, sem redundâncias, dificultando a sua correcta percepção por quem lhes deveria responder. E em qualquer momento, qualquer pergunta empenhada e séria de um aluno é para ser tratada... "como se fosse a Poesia que nos visitasse". Como Sebastião da Gama escreveu que Miguel Torga lhe tinha dito: "Para ser professor, também é preciso ter as mãos purificadas. A toda a hora temos de tocar em flores. A toda a hora a Poesia nos visita."
As perguntas dos jovens têm a simplicidade, mas ao mesmo tempo a complexidade; e a ingenuidade, mas ao mesmo tempo a assertividade, próprias do pensamento em expansão que é da natureza essencial de todos os jovens.
Por duas ou três vezes foram colocadas questões claras e pertinentes sobre a superioridade da espécie humana em relação às outras espécies.
Hoje em dia, mais do que nunca, quando tanto - tão justamente! - é dito sobre a responsabilidade do Homem na destruição das condições de vida de todos os seres vivos e de todos os ambientes de vida no Planeta Terra, seguramente que intensos processos de dissonância cognitiva interferem nos raciocínios dos jovens quando, noutras perspectivas, lhes queremos - enquanto professores - passar-lhes a ideia de que o Homem é a espécie mais desenvolvida, é o ser superior, é o ponto mais alto da escala evolutiva. No fundo, directa ou indirectamente; velada ou claramente; intencional ou involuntariamente, no ensino está-se sempre a passar esta ideia.
Querida Patrícia - permita-me esta familiaridade, que me concedo amparado nos meus cabelos já com muito de branco - não basta dizer a estes jovens sedentos de apaziguamento para os seus raciocínios saudavelmente turbulentos e tortuosos, que Eu não penso assim.
Não tivesse sido o adiantado da hora, eu teria pedido para intervir para dizer qualquer coisa do género:
Isso de ser superior, tem a ver com um critério estabelecido arbitrariamente. Por exemplo, se se considerar superior a espécie que maior capacidade adquiriu para transformar o ambiente à sua volta e influenciar ou agir sobre as outras espécies, naturalmente que o Homem é a espécie superior. Mas se, noutra perspectiva, se considerar que o critério é a capacidade de adaptação ao meio, preservando-o, não o pondo em perigo, bem assim como não pondo em perigo a sobrevivência da generalidade das espécies e dos habitats, então, neste caso, o Homem é quase seguramente a espécie "mais inferior". Há outros critérios possíveis, como muito bem me chamou a atenção a minha querida colega Eulália.
Pessoalmente, penso que respostas, mesmo que dadas de boa fé, que se conformem a simples opiniões pessoais, baseadas nos mais correctos e honestos argumentos científicos, não são respostas que respeitem o dinamismo do pensamento jovem, até quando eticamente pareça que se está a proceder bem.
Que respeitem e que libertem. As respostas que acabo de falar não libertam, antes, formam becos sem saída onde se desejariam estradas largas para percorrer e horizontes a vislumbrar.
Se dissermos aos jovens que a tal superioridade depende de critérios - arbitrários -; se msotrarmos alguns exemplos; e se lhes dissermos que podem criar os seus próprios critérios, deste modo sim, libertaremos e permitiremos a expansão dos seus pensamentos.

domingo, novembro 02, 2008

O abate das árvores da Eça de Queirós e a "Canção da manhã" dos índios Cherokee

No dia 29 de Outubro começou o abate de árvores na Escola. Para que se possa construir um novo edifício de salas de aula, mais acolhedoras e mais ricas de possibilidades do que as que temos agora.
Na noite de 29 para 30 publiquei no YouTube um pequeno vídeo que denunciava a minha tristeza do momento, apesar de conhecer as razões, e querer acreditar nas suas boas intenções.
No dia 30, a minha colega Isabela mandou-me um e-mail de apreciação do vídeo que, no eco empático da minha tristeza, a apaziguou e me fez sentir que vale a pena fazer coisas...
A Isabela acabou por publicar o vídeo no blogue da sua turma. Saúdo o blogue, que já visitei; e agradeço vivamente a publicação do meu vídeo.
Deixo-o agora aqui:

Deixo aqui também o link para o blogue do 9.º A da Eça de Queirós: http://aturmaa.blogspot.com/. Vale bem a pena faze lá uma visita.
Entretanto, nesta fase, que ainda é de "luto", como dizem os psicólogos clínicos, não posso deixar de pensar em algumas de referências que balizam o meu pensamento e a minha maneira de ver e de me dar com o mundo.
Por exemplo, Jane Goodall, que tenho numa gravura, na parede, bem junto à minha mesa de trabalho em casa. Ainda há dois dias a minha sobrinha Mariana me perguntou: - Ó tio, porque é que tens um quadro assim aqui, com uma senhora e um macaco?... Na gravura, Jane Goodall olha interrogativamente, em serena expectativa, um dos chimpanzés que estudou no Gombe, na Tanzânia. Jane procura no chimpanzé o segredo da natureza humana. Ela, em resultado da observação sistemática de 30 longos anos, e do enredo cultural e científico que subrepticiamente determinava o seu pensamento, tinha baptizado o chimpanzé com o nome de Freud. Simbolicamente. Bem significativamente. O quadro tem o nome de "Thinkers", Pensadores.
Penso também em Konrad Lorenz, que um dia escreveu que um dos pecados mortais da civilização [actual] era a devastação do espaço vital. Noutro lado, ele diz também que tanto a beleza do mundo natural, bem como a beleza do mundo cultural são necessários para manter o Homem espiritualmente são, como eu já disse algures neste blogue.
Os eucaliptos e os pinheiros deitados agora abaixo na Escola não faziam parte da natureza "selvagem" ou "natural" do local onde a Escola está implantada. Isso sim, da natureza domesticada pelo homem. Ora, domesticada não quer necessariamente dizer mau, ou menor. Esse é o grande desafio do Homem: o equilíbrio adequado entre a Natureza selvagem e a acção transformadora dos grupos humanos.
No mínimo, com este abate de árvores de porte e presença magníficos, vamos trocar um espaço de vida aberto por um espaço de vida fechado. Deixamos o contacto directo com elementos da Natureza, mesmo que distraído ou inconsciente, e ficamos de costas voltadas para as árvores e para o ambiente. Mais uma razão porque o novo edifício, razão de ser do abatimento das árvores, tem de justificar a sua construção.
Finalmente, sempre que os pensamentos e os afectos me levam de novo à Natureza, volto aos textos e às fotografias dos povos índios da América do Norte, que tão magnificamente souberam estar na Natureza e dela falar. Antes que os pecados mortais da "devastação do espaço vital", da "competição contra si mesmo" e da "rotura com a tradição", entre outros, sobre eles se abatessem.
Em homenagem destes povos nativos, de que já aqui também falei, e como que procurando neles e na magia da manhã - de todas as manhãs - a força da esperança de que vale a pena ser optimista, aqui deixo um belo testemunho, que, hoje em dia, a Internet tão facilmente põe ao nosso alcance.
E em homenagem também aos alunos do 9.º A da Escola Secundária Eça de Queirós e da sua professora, e minha querida colega, Isabela.

Cherokee Morning Song (A beautiful Native American song)

sábado, setembro 27, 2008

O Paul Newman de Raúl Iturra morreu no dia em que reencontrei velhos amigos

Saí hoje para Abrantes, para um almoço de antigos alunos e professores da escola onde fiz o ensino preparatório e também o secundário.

Dos meus colegas de turma, apenas encontrei o Rui Coutinho, primeiro, e depois o António Neto. Claro que nos sentámos à mesma mesa e desfiámos lembranças de episódios que tivemos juntos na escola, perguntámos por colegas e professores. Pouco ou nada falámos de nós, agora, carecas ou de bigodes brancos. Dos tempos de agora, praticamente só falámos da caça do Rui e do Neto, entretenimento que descobrimos terem em comum, o Neto apresentando-se como caçador mais maduro (ou mais mentiroso, como se deve pensar sempre dos caçadores).

De volta a Lisboa, na viagem, revisitei o nosso encontro no extenso almoço, puxei ao pensamento as imagens que trouxemos uns aos outros. Afinal, imagens de gentes e acontecimentos que moldaram fortemente a pessoa que hoje sou.

Senti saudades dos cabelos loiros e encaracolados do Neto! O seu desaparecimento simbolizava, no instante em que o consciencializei, o irremediável da juventude que se perdeu para sempre. Mas senti que se poderia recuperar quase integralmente o "velho" Rui, assim a gente consiga fazer qualquer coisa com a grande barriga sedentária que ele deixou que o envolvesse. Quer dizer, simbolicamente também, afinal, de tudo o que se perdeu, coisas há que ainda se podem recuperar. E que terão eles pensado de mim?...

Cheguei a casa e, quando pude, fui ver o que tinha na minha caixa de correio electrónico. Lá estava um pequeno texto de Raúl Iturra, de homenagem a Paul Newman, que morreu hoje. Só por este texto o soube. Porque o Raúl o quis partilhar comigo.

Raúl Iturra fala dos personagens a que Newman deu corpo. Que marcaram… que o marcaram… que moldaram… que o moldaram… que simbolizaram e fixaram, pela própria ficção, comportamentos, gestos e pensamentos humanos.

Comparei os personagens de Iturra com os personagens (os meus antigos colegas de escola, e os professores) que desfilaram nos "filmes" que vi em retrospectiva quando voltava para Lisboa. O pequeno texto, escrito em inglês, se calhar, para que o próprio Paul Newman mais facilmente os possa ler e entender, fez-me tomar consciência da força que os personagens têm na formação das pessoas em que nos tornamos: se são reais (como os meus colegas de hoje), com eles construímos ficção que nos guia ou nos apazigua – ou que interrogamos; se são de ficção (como os homens virtuais de Newman), facilmente os deslocamos para as nossas realidades e os tornamos partes vitais das acções e dos comportamentos em que nos envolvemos.

Soube-me muito bem estar com os meus colegas de há mais de trinta anos atrás, trinta e muitos. Também por esse reencontro de hoje li as palavras de Raúl Iturra com um outro espírito e provavelmente com um entendimento mais autêntico do que ele escreveu sobre Paul Newman, o homem, o actor, os personagens.

É com a autorização e a gentileza do cidadão do Mundo, Raúl de seu nome, que aqui transcrevo integralmente o seu texto de homenagem a Paul Newman, com a sinceridade única do que é dito a quente, de coração aberto.

Paul Newman has passed away. Sad. However, no one can bring eternity into this earthly world. To my relief, he is not suffering anymore, either himself, extremely nice and faithful wife Joanne Woodward, as good as an actress as Newman was, descendents and friends. And the large mob of admirers he had all over the world. Friendly, serene, happy, friend of the poor. He is Exodus, he is Butch Cassidy, he is the writer, he is all the plays he performed, above all, he is Brick, he is Professor Michael Armstrong, he is Chance Wayne, as he is the sweet birth of youth. Paul Newman is force by his brilliant career, to live eternally as Hud Bannon and, above all, the father who knows how to teach as Eddie Felson. No need to cry, he lives in his pure soul and in the soul and feelings of Joanne Woodward. We, Portuguese, revere, respect, mirror on him.

Prof. Dr. Raúl Iturra

quinta-feira, setembro 18, 2008

Nas escolas portuguesas... Sinais dos tempos!

Os tempos, nas escolas portuguesas, fazem correr ventos de medos entre os professores: medo de estar, medo de falar, medo de fazer... corre-se sempre o risco de se cometer uma falha que marque a "avaliação" que pende sobre a cabeça, avaliação burocrática, complexa, ameaçadora. Teme-se ter iniciativa para qualquer coisa que possa não corresponder ao "amén" que se pressente que é a única coisa que se quer que os professores façam.
Um pequeno exempo, retirado de um canal de televisão generalista, no noticiário da hora do almoço, hoje:
A jornalista pergunta claramente à professora (eventualmente, com responsabilidades directivas na escola) o que acontece aos alunos que estão à espera de professores que ainda não foram colocados. Se ficam sem aulas.
A colega pensa, guarda para si uma pequena pausa e, diplomaticamente, cuidadosamente (eu digo: tristemente, ridiculamente), responde: "São encaminhados para o pátio."
Como se foge de palavras comprometedoras!... Como se dizer "Sim, ficam sem aulas... Pois, não têm aulas..." ou outra coisa qualquer fosse uma acusação contra quem superior determina e avalia desempenhos!... Ou então o reconhecimento de uma culpa que estaria nas mãos do professor ter-se evitado!...
Percebo a colega e, tanto quanto possa fazer sentido que o diga, estou solidário com ela.
Repare-se: um não-acontecimento, uma série de não-acontecimentos [a(s) aula(s) que deveria(m) ter sido dada(s), mas que não foi(foram)], por presumida, adivinhada, responsabilidade de o (ou a) inomonável [não vá ele (ou ela) "cair-nos" em cima, e lá se vai a avaliação, ou lá vem o processo disciplinar!...], em resultado dos caminhos tortuosos dos pensamentos e das falas de mentes aflitas, transforma(m)-se numa acção activa, "responsável" e criativa dos professores que devem estar sempre prontos - como determinam os regulamentos - para cuidarem dos alunos... Assim, em vez de as aulas não acontecerem, em vez de não lhes darem aulas, os professores... encaminham os alunos para o pátio!
Que mais se pode dizer, senhores?... O melhor é calarmo-nos, não é?... Se calhar, já falámos demais...
... ... ...

Há mesmo que dar a volta a este ambiente constrangedor, confrangedor e que nega o fim último de qualquer processo educativo: a formação de cidadãos sabedores, esclarecidos, responsáveis e capazes de iniciativas pessoais socialmente úteis.

No hay Rey, no tenemos quién nos gobierne, nos vamos a gobernar nosotros! Toda história tem uma realidade por detrás da verdade pública!

Recebo todos os dias um e-mail da Britannica Encyclopedia que assinala as datas, as efemérides que a evolução dos tempos foi juntando, digamos, na História da Humanidade. A Enciclopédia Britânica é um colosso de informação, sendo considerada por muita gente um dos maiores, se não mesmo o maior, depositário de conhecimento enciclopédico do mundo.

Por razões editoriais, ou por outras razões – lamentável seria por desconhecimento ou por desvalorização – não assinala, para o dia de hoje, o “grito do Ipiranga” do Chile. E se uso esta imagem é apenas para assinalar os anseios certamente idênticos e fraternos dos povos locais vizinhos relativamente aos poderes monárquicos e colonizadores de portugueses e espanhóis na América do Sul.

Devo a Raúl Iturra, uma vez mais, o acesso a um acontecimento histórico de repercussões muito sensíveis, e de grande impacto, numa área de dinâmica social a que, por empenho pessoal e profissional, tenho dedicado atenção especial: a interculturalidade, a relação entre os povos e o desenvolvimento da tolerância perante as diferenças pessoais e grupais.

Como já noutras vezes o fez, Raúl Iturra traz-nos um relato vivo, à maneira do jornalista repórter que vê os acontecimentos passarem diante de si e procura dar deles uma imagem imediata, que espelhe a vivacidade das ocorrências, sejam simultâneas, ou venham uma após outra. Aqui e ali junta um pequeno complemento informativo, que intui facilitarem ao leitor a compreensão do que está a acontecer, sem deturpações.

Iturra sacrifica alguma forma e gramática à expressividade vital e emocional das ambições de liberdade e de independência dos protagonistas dos acontecimentos.

O Chile, o povo chileno, os chilenos que amam profundamente o seu país de muito longe, como é o caso do nosso “jornalista repórter”, merecem que se grite de júbilo neste dia comemorativo. Que se grite tão alto que os autores da Enciclopédia Britânica se virem para o lado das vozes jubilosas, que sobem intensas lá do fundo, do outro lado do mundo, muito abaixo do Equador, e constatem a falha do seu conhecimento ou do seu registo; e que não queiram que, no ano que vem, alguém no mundo lhes aponte a mesma falha nas efemérides assinaladas para o dia 18 de Setembro.

Agora, finalmente, a palavra viva de Raúl Iturra, a quem, desde já endereçamos um imenso abraço, cheio de sincera fraternidade!

No hay Rey, no tenemos quién nos gobierne, nos vamos a gobernar nosotros!
Toda história tem uma realidade por trás da verdade pública!

Foram as primeiras palavras do Governador do, em esse tempo, 18 de Setembro de 1810, Reyno[1] do Chile. Era uma Colónia. Era parte das propriedades da família real da Espanha, um ramo dos Bourbón de Navarra, reino do Norte da Espanha de esses tempos. Mais tarde virão a ser dos Bourbón Orleáns, como é hoje, 198 após a Independência auto-proclamada do Chile. O Governador do Reyno, o Conde da Conquista, Mateo de Toro e Zambrano e Ureta bem sabia que, desde 1808, Napoleão Bonaparte tinha invadido o Reino da Espanha e colocado como Rei o seu irmão José, levando cativos a França o Rei Fernando VII e a sua mulher, a Infanta Maria Caserta de Bourbon-Sicilia, ao Castelo e cidade de Bayonne, um exílio dourado, do qual Fernando VII nem queria tornar: como em Portugal, era um Rei Absolutista e não queria liberais dentro das suas Cortes, esses Parlamentos impostos às Monarquias desde a Revolução Francesa de 1789. Mateo de Toro e Zambrano[2] sabia tudo isto, mas quis ignorar: estava confortável e cómodo no seu sítio de Governador, sem ter que lutar em guerras nem se aventurar em Cabildos[3], guerras e debates. Mas havia ambições entre as famílias mais antigas, com posses imensas e títulos nobiliários, como relato em outro livro meu: Para Sempre Tricinco. Allende e Eu. Essas família foram as promotoras do auto-governo e Mateo de Toro e Zambrano viu-se obrigado a invocar um Cabildo aberto, instigado pelos escrito do frade que o Primeiro Jornal Chileno instigou com os escritos de um redactor, jornal fundado em finais do Século anterior, pelo denominado frade da Boa Morte - mais uma vez não é gralha, é a ordem à qual pertencia o redactor, mais tarde director, o denominado Frade da Boa Morte, Camilo Henríquez [4].

Não é por acaso que este frade é nomeado dentro do texto. Foi quem instigou ao Governador para abrir um Cabildo, por meio dos seus sermões e textos do jornal referido, exaltando aos patriotas que queriam independência a solicitar essa convocatória. Os revolucionários de famílias antigas, como José Miguel Carrera, José Luis Carrera e a sua Irmã Javiera, famílias antigas e de poder, estavam fora do Chile ao ser convocado o Cabildo. De imediato apareceram em Santiago, a capital, e em conjunto com outro patrício revolucionário, o denominado patriota Manuel Rodríguez Erdoiza, já Deputado do Primeiro Congresso Chileno. Os dois criaram a primeira bandeira do Chile, o primeiro hino nacional e a primeira Constituição, tudo a seguir a um golpe de Estado contra o Governo Eleito por sufrágio dos mais poderosos. No Jornal Aurora de Chile, foi publicado ao detalhe os acontecimentos do 18 de Setembro[5]. José Miguel Varrera estava na guerra da Espanha contra Bonaparte, tornou rapidamente ao Chile, organizou com o seu grande amigo Manuel Rodrígues um batalhão, “Los húsares de la Muerte” e derrubou o Presidente da Junta Superior de Governo, Juan Martínez de Rozas, pacífico cidadão e patriota, para passar a ser o ditador do Chile, com o Título de Presidente da República, derrubado mais tarde pelas forças encabeçadas pela família Jaraquemada, tornou a atacar em 1813, auto-designou-se outra vez Presidente, até cair perante as forças patriotas encabeçadas pelas família Pérez, Infante e Eyzaguirre, todos eles depostos ao lutar uns contra os outros pelo poder, até que em 1814 a Coroa Espanhola tornou às mãos de Fernando VII Bourbon, derrotada finalmente em 1818, pelo novo Brigadeiro Bernardo O’Higgins, na batalha de Cancha Rayada, ao sul de Santiago do Chile, com a colaboração inacreditável das forças de mais nova República de Argentina. Lideradas pelo General José de San Martín, derrubado em Buenos Aires mais tarde ao querer se auto-proclamar Imperador da Argentina e exilado para Paris, onde faleceu. José Miguel Carrera e os seus irmãos José Manuel e José Luis foram, fuzilados na Argentina, enquanto se preparava um Exército Libertador do Chile. Apenas ficou viva a irmã, lembrada como uma grande patriota hoje em dia, Doña Javiera Carrera. Após ter ganho o Chile para os Chilenos, o Brigadeiro O´Higgins passou a ser Director Supremo, até que pelas suas imprudências, assassinatos de patriotas, como Manuel Rodríguez, e uma má Constituição, foi-lhe solicitado pelo Congresso abandonar o cargo e se exilar do Chile. Após criar a nacionalidade denominada Chilena em 1929, anunció a sua visita ao Congresso, onde se demitira e dissera: “Compatriotas, sé que no me quíeren acá. Me voy al Perú, que también liberté y me acepta. Les entrego el bastón y el mando”, y se fue. Todos os golpes e contragolpes foram sempre a 11 de Setembro, como é possível ler na História do Chile[6]. Uma histórica premonição!



[1] Não é gralha, é como se escrevia antigamente a palavra Reino em Castelhano antigo, em quanto em Portugal era a Pessoa Sagrada do Rei. Mudam os tempos, mudam os costumes e as palavras. Para Portugal, esta citação: O mais importante tratado, pelo seu carácter lesivo a Portugal, foi o de Methuen, assinado em 1703, em pleno início da mineração no Brasil. O tratado possuía apenas dois artigos:
Artigo 1º. Sua Sagrada Majestade El Rei de Portugal promete, tanto em seu próprio Nome, como no de Seus Sucessores, admitir para sempre de aqui em diante, no Reino de Portugal, os panos de lã e mais fábricas de lanifício de Inglaterra, como era costume até o tempo em que foram proibidas pelas leis, não obstante qualquer condição em contrário.

[2] Mateo de Toro Zambrano y Ureta (o de Toro y Zambrano, como se escribe en muchos registros históricos) (Santiago de Chile, 20 de septiembre de 1727 - † 26 de febrero de 1811), Vizconde previo de la Descubierta, I conde de la Conquista, Caballero de la Orden de Santiago, Gobernador de Chile 1810-1811, militar criollo chileno y presidente de la primera Junta de Gobierno de Chile.

[3] Cabildo é uma reunião de notáveis que acompanham a pessoa governante para decidir o quê fazer em momentos de mudança o para votar uma decisão importante. Normalmente composto pelos homens das famílias mais antigas e de mais patente hierárquica e muita riqueza. As minhas palavras. Há também uma definição mais oficial: Consistía en la reunión de la parte más "sana" y principal de cada población, convocada por el cabildo ordinario, que la presidía, para tratar asuntos de grave importancia. La reunión solía celebrarse en el recinto del cabildo o en alguna iglesia.
Los cabildos abiertos atribuían a la parte representativa de la ciudad el derecho a deliberar sobre cuestiones que por su naturaleza requerían una solución extraordinaria. Las personas convocadas eran designadas por el cabildo invitante sin intervención del pueblo y constituían la aristocracia local; pero, con todo, la circunstancia de llamarlas para deliberar con el cabildo ordinario daba a estas asambleas un carácter más democrático, em: http://es.wikipedia.org/wiki/Cabildo_abierto#Cabildo_Abierto

[4] Camilo Henríquez, da ordem dos Camilianos que ajudavam a morrer bem, foi Presidente do Primeiro Senado do Chile e perseguido pela Inquisição pelos seus escritos subversivos. Religioso y político chileno. Religioso de la Orden de los Camilos, fue perseguido por el Santo Oficio a causa de sus ideas ilustradas. Apoyó a los independentistas chilenos, fue elegido diputado y en 1811, en un sermón pronunciado en la catedral de Santiago, reclamó la independencia de la patria chilena. A través de sus periódicos, La Aurora de Chile, el primer diario nacional chileno, y El Monitor Araucano, difundió el pensamiento liberal y apoyó la independencia de su país. En 1812 escribió El catecismo de los patriotas, donde realiza una vigorosa defensa de la libertad y la razón frente al despotismo, la superstición y la ignorancia. Retirado do meu saber e de: http://www.biografiasyvidas.com/biografia/h/henriquez.htm

[5] EL CABILDO ABIERTO DEL 18 DE SEPTIEMBRE DE 1810 fue un éxito resonante, y sus organizadores se restregaban las manos con regocijo. Todos los acuerdos se tomaron por unanimidad, y hasta los nombramientos de los dos últimos vocales de la Junta Provisoria de Gobierno fueron hechos por mayorías abrumadoras, sin que se notasen voces discordantes, especialmente después de los elocuentes discursos de Argomedo y de Infante. El tímido llamado a la reflexión que intentó hacer don Manuel Manso, cabildante más timorato que realista, fue acallada a las primeras frases por la vociferación general de: '¡Junta queremos! ¡Junta queremos!', artículo de La Aurora de Chile, retirado do livro de Ismael Espinosa V.
Artículo publicado en su libro "Historia secreta de Santiago de Chile", en el cual escribe sobre las medidas y actuaciones del Cabildo Abierto de 1810. http://www.auroradechile.cl/newtenberg/681/article-2325.html

[6] O Presidente da República do Chile é ao mesmo tempo o chefe de estado e de governo do Chile e também a máxima autoridade política. Ele é eleito por voto popular e seu mandato dura quatro anos, sem a possibilidade de reeleição imediata.
De acordo com a Constituição, o Presidente tem o dever de desempenhar fielmente seu cargo, manter a independência da nação e defender e fazer ser defendida a Constituição e as leis, tal como determina o juramento que ele presta antes de assumir suas funções.
A sede presidencial é, desde 1845, o Palácio de la Moneda ("Palácio da Moeda") na capital Santiago.
A lista dos Presidentes pode ser lida em:
http://dicionario.sensagent.com/presidente+do+chile/pt-pt/