terça-feira, dezembro 02, 2008

Eu e a greve dos professores, amanhã, dia 3

Escrevi hoje assim para os meus colegas de escola, a propósito da greve de professores, amanhã. dia 3:

Caros colegas,
 
Penso que não conseguiria deixar passar este dia sem dizer qualquer coisa.
Desculpem-me a extensão do texto: 

 

                O texto que aqui trago resulta, essencialmente, da circunstância de três ocorrências se terem juntado por puro acaso. O que não foi obra do acaso foi a associação que entre elas fiz.

                Primeira ocorrência: recentemente escrevi uma carta aberta em que falava do privilégio que foi conhecer, ser considerado amigo e ter partilhado o cadeirão dos sábios com o dr. João dos Santos. Mais do que uma vez eu o ouvi dizer o que, numa última vez, ele repetiu no seu consultório, quando a doença, que acabou por vitimá-lo, já lhe tinha levado a robustez do porte e dos gestos. Uma última vez, como que a aconselhar-me que nunca o esquecesse: que, na vida, o que verdadeiramente importa é a educação e a política.

                Estou certo de que se com ele me cruzasse agora, precisamente da maneira que com ele me cruzei naquela última vez, quando eu caminhava a pé, vindo do Marquês de Pombal para o centro comercial das Amoreiras, eu saberia o que faria, como o olharia, e o que lhe diria. Novamente, como nessa vez, já com o centro à vista, eu deixaria fosse o que fosse que lá me levasse, e voltaria para trás com ele, acompanhando-o ao seu consultório. E lá, outra vez sentados, um em frente do outro, eu lhe diria, olhando com ternura e satisfação antecipada pela aprovação que ele seguramente me dirigiria, que nunca mais me tinha esquecido das suas palavras, e a inventariação das minhas empresas pessoais e profissionais aí estariam para o comprovar.

                Segunda ocorrência: como muita gente da minha idade, vi o filme "Música no coração", pela primeira vez, há mais de 40 anos. Há dias, fui à FNAC e lá encontrei, sem que intencionalmente o procurasse, um CD com uma versão recente de todos os temas musicais do filme. Não gosto muito desta versão. O refinamento a que os vários temas musicais foram levados, cantados por vozes belíssimas, educadas profissionalmente anos a fios, teve como consequência afastá-los de nós, que cantamos no caminho para o trabalho, durante o banho, ou quando nos ocupamos com uma tarefa caseira. Na versão original, quando os actores cantam, a gente acompanha-os. Nesta versão, as belas vozes desapropriam-nos da identificação aos actores e às melodias que cantam. Podemos apenas agarrar-nos ao sentido dos versos.

                Mas no meio de uma decepção generalizada, sim senhor, apreciei muito a reprise final do tema Climb ev'ry mountain. No canto, que coisa mais envolvente há que o vigor do coro feito de homens e mulheres cantando à uma? E precisamente aqueles versos acompanham-me há mais de 40 anos. Sim, desses versos eu me apropriei e toda a vida os tenho cantado. Tornei-os na minha maneira de viver a vida.

                Entretanto, dramaticamente consciencializei que alguma coisa mudava no meu pensamento e na minha forma de ver as coisas. Qualquer coisa, que até há bem pouco eu tinha como condição pessoal adquirida por esforço pessoal honesto ao longo de um já bem considerável número de anos, afinal, tinha sido perdida: pela acção de intenções e decisões espúrias e mal-intencionadas por parte de quem tem responsabilidades governativas no meu País (por parte de quem deveria usar o poder que democraticamente a sociedade portuguesa precisamente ao contrário do que o fez – na minha opinião, evidentemente. Opinião, entretanto, igual à de tanta gente! Lembro-me, por exemplo, de um artigo há muito tempo escrito por José Gil, na Visão, que falava de um, digamos, "pecado original" dos actuais decisores da educação em Portugal, na forma de se lidar com os professores do ensino secundário), dizia eu, eu tinha para mim adquirida a dignidade de professor. A minha dignidade. É, hoje sinto que não a tenho, que ma roubaram.

                E que tem isto a ver com o tal tema musical do "Música no Coração"?... Esse tema musical desafia-nos a subir montanhas e a vencer obstáculos, sempre em perseguição do sonho que devemos alimentar com todas as nossas forças. Pois, hoje em dia, eu sinto que a dignidade profissional passou a fazer parte do meu sonho. Deixou de estar adquirida e passou a fazer parte do meu sonho, vou ter de juntar forças e ir outra vez em busca dela. Ao pé desta empresa, a subida ao Quilimanjaro, que realizei há pouco mais de um ano, torna-se quase insignificante. Assim tenha eu forças para juntar à de tantos outros professores que estão no mesmo sonho, na mesma luta!...

                Terceira ocorrência: o canal Odisseia, da televisão por cabo, passou regularmente, durante o mês de Novembro, uma série de documentários reunidos à volta de um tema aglutinador: o poder da mente. Tentei vê-los todos, uns mais que outros serviam propósitos e conteúdos das minhas aulas de Psicologia.

                Um desses documentários foi sobre o perdão, sobre a elaboração pessoal da culpa, da raiva, do ódio, da perda; do trabalho do luto e da emergência do perdão. Coisa extraordinária!, a merecer reflexão e discussão pessoal sinceramente dedicada.  Mas agora não. Agora, apenas o que tem a ver com a circunstância de juntar três ocorrências a que atribui um significado. Uma das histórias apresentadas era a de uma mãe, pastora anglicana, que perdeu a filha de 24 anos de idade nos atentados bombistas que houve há poucos anos no Metro de Londres. Dizia ela que sentia culpa. Todo o seu magistério fora sempre dedicado a promover a paz, a concórdia e o perdão. Mas aquela experiência pessoal, que a rasgara cruamente até ao mais fundo do seu ser, mergulhou-a na mais intensa das raivas; afundou-a numa culpa castigadora; e nunca a permitiu sentir a dádiva do perdão. Até que um dia, muitos e muitos dias depois de intenso trabalho de reflexão pessoal, conseguiu perceber a origem da culpa. Só nesse momento ela foi capaz de vencer a raiva e foi capaz de sinceramente perdoar. Testemunhou ela para os autores do documentário que um dia ela percebeu que muito falara na sua igreja, na sua paróquia, do amor do próximo, do respeito pela diferença, da comunhão com o outro. "Mas, o que é certo, é que nunca fui para a rua, nunca fui a uma manifestação em que me juntasse a outros iguais a mim, e a outros diferentes de mim, e nunca gritei na rua pelos direitos dos outros e pelo verdadeiro respeito pela diferença. E perguntava-se: Como poderiam os outros, os que eram diferentes de mim, saberem que eu estava ali com eles?...

                É assim, colegas, amanhã, e sempre, mesmo depois de amanhã, eu quero estar na rua a manifestar-me, ao lado de outros, perseguindo o meu sonho, na luta política, a luta que faz o outro lado da educação que abracei.

Bjnhs e abraços!

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