25 de Dezembro. Vêm duas senhoras ao quarto para lavar a minha mãe e arranjarem-lhe a cama. Aproveito para ir tomar um café. Talvez o bar da entrada do hospital esteja aberto. Mas é Natal… talvez não esteja…
Sim, estava aberto. O lugar que parecia naturalmente destinado a mim era ali, naquele espaço de balcão entre dois sujeitos, qualquer um deles mais alto do que eu. O da minha esquerda, nitidamente mais velho. O da minha direita, nitidamente mais novo. Ambos vestiam aparentando ser pessoas “remediadas”, como ainda há bem pouco se costumava dizer.
O homem mais novo, o da minha direita, queria pão, perguntou à senhora do lado de lá do balcão se tinha pão. Sim, tinha, mas não era de hoje. O senhor hesitou, se não era de hoje… Parecia que vinha buscar pão para o almoço do dia de Natal, para a mulher e os filhos, queria uns sete ou dez, mas assim, de ontem…
O homem mais velho, à minha esquerda, disse que o pão de véspera era pão bom. O outro concordou, sim, o pão do dia anterior às vezes até sabia melhor que o do dia. Parecia que queria matar dois coelhos de uma só cajadada: ser simpático para com o outro senhor e convencer-se a si próprio de que o pão da véspera era bom.
Sim, ia levar o pão. Se a senhora tivesse, olhe, ele até levava doze. Ai tinha?... Então eram mesmo doze.
Enquanto a senhora foi lá dentro ensacar o pão e eu bebia o meu café, o sujeito da minha esquerda, como que para ocupar o vazio de silêncio que parecia querer cair ali no meio de nós os três, lembrou que no tempo dele – e eu imaginei-o nesta altura a pensar nos seus netos – o pão era de mais dias, era mesmo de muitos mais dias, até o pão com bolor se comia todo.
Aquecia-se água, deixava-se ferver um pouco o pão nessa água e o bolor “ia-se todo naquela água”. Depois arrefecia e comia-se. Por isso achava engraçado que hoje em dia as pessoas achassem que o pão da véspera já não prestava.
O sujeito à minha direita quedou-se a pensar. E eu quedei-me a vê-lo pensar. Voltei-me para o “meu avô” e ele agora olhava para lá da parede em frente dele, perdido no longínquo mar das memórias... Até que desabafou: “Dizem que é ó tempo volta p’ra trás, não é?... Ainda bem que não…”
O “meu pai” pegou no saco com as doze carcaças, perguntou quanto devia e pagou.
Eu tinha decidido demorar o meu café para não perder bocadinho que fosse daquele diálogo. Pela minha visão periférica, apercebia-me dos movimentos de cabeça de um e de outro, ora a olharem-se um ao outro, ora a olharem em frente, só com a parede do fundo à frente deles.
Mas agora que o sujeito do pão se ia embora olhei-o directamente. Por cima do meu olhar, sem que do meu olhar se apercebesse, ele olhou o “avô” seu interlocutor, fez-lhe um aceno e desejou-lhe boas-festas. O outro esboçou vagamente um sorriso e voltou a envolver-se com as suas memórias, as memórias do que foram duros natais, natais de tantos dias, dos tais tantos dias do ano que, assim, com o pão bolorento, nos demonstram que, afinal, o natal não é sempre que um homem quiser.
Atrás de mim, a minha mãe agora dorme. Já há algum tempo, no ecrã que mostra a informação que os fios que caem sobre ela recolhem, os números que se actualizam constantemente mantêm-se na cor verde e não apitam mais no amarelo, nem no vermelho. As apitadelas dos números vermelhos punham enfermeiros e enfermeiras a entrarem no quarto correndo. Os gráficos sinusoidais são menos claros para mim, mas parecem-me agora, sem dúvida, mais harmoniosos entre si.
Não sei se alguma vez ela comeu pão com bolor fervido, ainda um dia lho perguntarei. Mas lembro-me, por exemplo, das histórias da sardinha - uma só - repartida com um dos irmãos. E outras histórias.
Como escreve David Mourão-Ferreira, um dia haverá um primeiro Natal que será feito para sempre sem ela.
Consola-me a inquebrantável certeza que, se a lei natural da saúde e das gerações o permitir, até que esse venha, nenhum ela passará sem a presença aconchegadora de um dos filhos. Se calhar, colhe o que semeou. O que pôde semear.
Fernando Pinto, Horta (Faial) 25 de Dezembro de 2009
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