Minha querida Sandra,
Está por fazer o estudo sociológico que mostre quantas vezes os desejos intensamente formulados à entrada de cada novo ano se transformaram em realizações concretas que mudaram ou marcaram a vida das pessoas no sentido antecipado nesses votos. Queres que eu te diga qual é a minha ideia? Nunca! É isso, nunca!
Por isso, e se tomasse para mim o sentir, muito cético, muito descrente, de um dos personagens escritores de Fernando Pessoa, eu diria que a passagem de ano não é nada mais do que um divertimento. Um divertimento que, tal qual como o Natal, está fortemente marcado por seduções para gastarmos dinheiro.
As diferenças com o Natal são basicamente duas: a primeira é que, enquanto no Natal somos levados a gastar dinheiro com os outros, na Passagem de Ano, gastamos o dinheiro connosco próprios. A outra diferença é que o Natal pede recolhimento em família e o Ano Novo pede expansão para a “molhada”.
Pela minha parte, sou um fervoroso defensor da festa do Natal. Sabes que mais, neste ano, o ano em que a “Crise”, a crise que económica (e política… e moral…) nos tocou como há muitos anos não acontecia – provavelmente, desde que me dou conta de estar vivo, a crise mais injusta de todas -, as prendas que pus nos sapatinhos dos meus familiares e amigos nunca custaram tão pouco dinheiro, coisa curiosa!, se há coisa que poderá perdurar por muitas gerações futuras da nossa família são precisamente essas prendas!
Quanto à festa de Ano Novo, é verdade, quando tinha a tua idade, e durante alguns anos depois, entusiasmei-me e aprumei-me para as festas de Passagem de Ano. E diverti-me muito com elas, claro!
Por isso, Sandra, te digo: diverte-te! Entusiasma-te com o momento de cair o Ano Velho e entrar triunfalmente o Ano Novo! Mas não ponhas na ilusão dos votos que agora formulas uma intensidade que depois se arrisque a trazer (não será mais correto dizer: renovar?) desapontamentos da mesma medida.
Se a algum de nós os dois cabe pegar no papel do Velho do Restelo, naturalmente é a mim, não a ti. Aqui estou, por isso, a cumprir-me.
Pela consideração e carinho que tu me mereces; pela ilusão genuína e sincera que é natural que tenhas da vida; e porque muito repeti a curta troca de palavras que o meu Mestre João dos Santos tantas vezes repetiu aos seus alunos, em que ele se interrogava se um projeto em que punha muita ambição não seria uma utopia, e a sua amiga Violante lhe respondeu: “Utopia?... Pois que seja, se é uma utopia, é precisamente por aí que é o caminho!...”; portanto, querida Sandra, por isto tudo, vou alinhar contigo e vou sinceramente formular dois votos para 2012.
O primeiro, vou deduzi-lo de um conto tradicional africano.
Diz assim o conto, que tem o título “A simplicidade da amizade”:
“Dois amigos viviam em duas aldeias distantes uma da outra. Uma noite veio uma grande tempestade e não havia luar. Mas um dos amigos levantou-se e sentiu vontade de ir visitar o outro. Pôs-se a caminho, embora tivesse medo que um raio lhe caísse em cima ou o fantasma da noite o viesse comer. Não parou enquanto não chegou junto da cabana do amigo. Estava todo molhado, como se tivesse caído a um rio, mas levou para a cabana lenha seca e enxuta. Entrou e acendeu uma fogueira. Depois começou a cozer arroz para oferecer ao amigo, que entretanto tinha acordado.
O amigo, ao vê-lo junto da fogueira, perguntou-lhe:
- Porque é que vieste de noite, com este temporal?
- Porque senti desejo de estar junto de ti. Será que o temporal te pediu licença para vir?"
Ora, o primeiro desejo que formulo para 2012 é precisamente este: que tenhamos – e sejamo-lo nós também – amigos que se cheguem a nós, mesmo durante a tempestade.
Quanto ao segundo desejo, faço-o a partir da notícia que ouvi hoje de manhã no telejornal. Já ontem à noite a tinha ouvido também. Faço votos que em 2012 nasçam mais bebés que em 2011, que foi, desde que há registos sistemáticos, um dos dois anos com mais baixo número de nascimentos.
Mil beijinhos, Sandra! Tenho a certeza de que nos encontraremos, não obstante as tempestades!
(Esta carta segue praticamente sem ser revista, eventualmente ainda a corrigirei num ou outro ponto, é preciso é que não perca oportunidade. Tenho de ir para a cozinha tratar de fazer uns miminhos para esta noite… é menos por ser a passagem de ano, é mais porque o meu sobrinho açoriano mais velho nasceu precisamente na noite de passagem de ano, ainda cheirava a fogo de artifício. Que renovação maior se pode querer quando se passa de um ano para o outro?)