sábado, outubro 08, 2011

A viagem a Ermua e o Professor Aníbal Pinto de Castro

Passa das 3 da tarde. Estou em trânsito, de Lisboa a Coimbra. Estou na Nazaré, no papel de chauffeur.
Acontece que, por momentos, sou chauffeur dispensado das suas obrigações. Quem me requisitou ao seu serviço está agora numa reunião de médicos.
Tentei tirar partido da liberdade que a dispensa me proporcionou: fui ao mercado tradicional da terra à procura dos velhos bolos de feira. Encontrei alguns, mas ao domingo -diz-me quase com pena de mim o senhor Joaquim, pegando numa pequenina broa e oferecendo-ma, como que para me consolar- é que há os que eu gostaria de mandar para a minha mãe. A minha "patroa" de hoje, a minha irmã, volta amanhã muito cedinho para o Faial, a horas que não nos permite tirar partido de amanhã ser precisamente domingo, o tal dia da semana que é o único que tem os bolos em forma de bonecas. Voltarei eu cá em breve, noutro domingo. Antes que chegue o Natal, para que a senhora idosa que está no Faial sinta que o Menino Jesus pensou mesmo nela.
Depois do mercado fui para a marginal, à procura de mesa para almoçar. Ainda era cedo, mas os sentidos traziam já os aromas tentadores dos peixes a grelhar. A esplanada a que me sentei praticamente obrigou-me a optar por uma salada de polvo; grelhados, ainda não, as brasas estavam atrasadas, que eu os desculpasse. O sentido do paladar reclamava sabores de maresia mais fresca; o estômago puxava avidamente para o excesso da gula. Preteri um e outro a favor do conforto pachorrento e resguardado do corpo; e a favor da vontade imperial da visão. Pronto, daquele lugar eu não me mudaria, que viesse a salada. O sentido da visão, portanto, esse, sim, empanturrou-se como pode. Seguramente escolhi a mesa com a panorâmica mais próxima, mais viva e mais completa do mar da Nazaré, ali em frente, e do Sítio, lá em cima, sobre o lado direito. Depois de quase cansar os sentidos a ver e a ouvir o mar, tirei algumas fotografias.
A seguir, já na praça da baixa nazarena, aproveitei a modernidade da pública rede wireless, peguei no pequeno computador portátil, e pus-me a deitar mais lenha na fogueira do Comenius que ainda arde intensamente, agora que está passada uma semana completa sobre a empresa escolar partilhada de Ermua, no País Basco.
Daqui a três horas estarei, já sem patroa, só com irmã, em Coimbra a lembrar, junto de outros, o falecimento de um dos mais importantes vultos dos estudos literários das universidades portuguesas: o professor Aníbal Pinto de Castro. Tive o privilégio de ser seu primo, amigo e confidente. Um dia ele, a tentar demover-me de fazer o meu doutoramento em Psicologia, perguntou-me porquê, se, afinal, havia tanta coisa verdadeiramente bonita e interessante para fazer nas escolas com os alunos; e que já havia muita gente com canudos grandes. Ri-me, sem me deixar convencer por ele. E disse-lho.
Tenho a certeza de que daqui a pouco, quando o ato religioso na igreja da Rainha Santa Isabel nos convidar ao recolhimento, eu vou falar ao meu primo Aníbal na viagem a Ermua, o que lá aconteceu, e sei que ele vai aprovar a minha participação nesta ação, que moveu um número razoável de alunos e professores de vários países da Europa.
Já agora, que acabo de escrever duas ou três palavras com uma grafia que até há pouco tempo era diferente, deixem-me dizer que o professor Aníbal Pinto de Castro, o seu ponto de vista sobre este assunto, foi determinante para que não adiasse hesitantemente ou contrariadamente a minha adesão ao acordo ortográfico que tanta polémica tem mantido. E se cuidadoso procuro ser no trato da língua que foi mãe dele e é também minha mãe (é a outra mãe que tenho, a da matriz cultural, não a biológica de que falei ainda há pouco), a alguns gigantes devo o exemplo de tal cuidado; ele, o meu primo Aníbal, é - foi-no sempre! -, seguramente, um dos mais poderosos de todos esses gigantes! Qual Colosso de Rodes, à beira do qual, desde muito pequeno, sempre me senti protegido, ele sempre fez projetar a luz que me levou, encantado e entusiasmado, para Alexandria, à procura de outras luzes.

P.S. 1 - Enquanto escrevia este apontamento, fui notificado por mensagem de telemóvel: a dispensa de chauffer termina às 16h30. A essa hora, viatura pronta para seguir viagem. A doutora terá terminado a sua reunião aqui neste hotel da Pederneira, sobranceiro ao mar e à povoação da Nazaré, pelo lado sul.
P.S. 2 (acrescentado hoje, dia 9 de outubro, em razão do acrescentamento da fotografia na sala da Confraria da Rainha Santa Isabel) - Agradeço muito vivamente, do fundo do coração, ao "Cajo", a gentileza (como diria o primo Aníbal, a pachorra de nos aturar!) de, no meio da azáfama profissional em que estava quase afundado, tirar a fotografia em que os dois irmãos puderam ficar juntos do primo de que guardam ternas, saudosas e exemplares lembranças.

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