OS VALORES DA EDUCAÇÃO E A EDUCAÇÃO DOS VALORES, N.º 3
Voltei onde vou de tempos a tempos comer à pressa. Consolava-me a ideia de ir pedir outra vez o gelado de baunilha com cobertura de caramelo e pedaços de amêndoa. Esta semana ainda não comi doce nenhum, ora, seria o pecado da gula da semana.
O atendimento foi mais lesto que o costume. Daria tempo para comer devagar. Praticamente à minha frente, o meio da sala a separar-nos, na mesa redonda cercada por um separador específico, um aglomerado de gente jovem. Contei 3 raparigas e 6 rapazes, numa mesa destinada a 4 pessoas. Rapaziada de 10.º ano, certamente.
9 jovens, bem juntinhos num espaço duplamente fechado: o interior da sala e a cerca alta da própria mesa.
Pensei em ir falar com eles, hesitei porque não queria ralhar com eles, não queria sequer admoestá-los, pensava como poderia falar-lhes ganhando-os para os bons cuidados sanitários — a situação com a covid-19 está tão difícil em Lisboa! Também não queria ouvir deles uma resposta torta, não sei como reagiria depois.
Cheguei finalmente a uma formulação que me pareceu cheia de possibilidades de sucesso. Mais ou menos assim: «Tenho estado ali a olhar para vocês, entra pelos olhos dentro de qualquer pessoa que vocês são todos muito amigos uns dos outros, era bom que muita gente fosse assim como vocês. Agora, não sei se têm a noção de que o que noutras alturas seria um convívio de amigos exemplar, agora é um convívio de amigos perigoso, e os amigos nunca são perigosos para os amigos. Reparem como vocês estão: todos sem máscara, num dos dias mais perigosos da covid-19 em Lisboa, num espaço pequenino, muito fechado e, reparem, todos vocês a respirarem e a falarem para o mesmo ponto, o centro da mesa. À vossa volta, está tudo fechado, o ar sobe e, como não sai, não se espalha e volta a descer, para o meio de vocês, e vocês continuam a respirar e a falar alegremente uns com os outros. Se um de vocês está positivo, naturalmente, sem o saber, o risco para os outros amigos todos é enorme, é um risco grande, grande, grande. Que pena não poderem estar aqui completamente à vossa vontade!...»
Repeti para mim o cordial aviso, a convencer-me que era mesmo só aviso e que era mesmo cordial. A repetição foi fatal, eles começaram a levantar-se com os tabuleiros nas mãos. Confesso que também senti algum alívio.
Em dirigindo-se para fora do estabelecimento, dividiram-se em dois grupos pequenos, um saiu por uma das portas, o outro pela outra. 2 rapazes colocaram logo a máscara sanitária, bem colocada; outros 2 colocaram-na a tapar apenas a boca; as 3 raparigas tinham as máscaras no pescoço e assim as deixaram ficar; 1 rapaz levava a máscara na mão e o último nem isso. Digo último porque ficou mais para trás, era nítido que procurava uma superfície espelhada onde pudesse ver se estava bem penteado ou não e, sem a ver, enfiando os dedos no cabelo, desenrascou-se como pôde.
Foram para a esplanada. Agora eu já tinha de virar claramente a cara para a minha direita para continuar a vê-los e eu queria mesmo ver o comportamento espontâneo de todos eles. Tentaram fazer uma ‘selfie’ de grupo, mas pareceu-me que a coisa não correu bem - só os tais 2 de máscara bem colocada.
Continuam os 9 juntos. Agora estão 4 rapazes com a máscara bem posta; as 3 raparigas continuam com as máscaras no pescoço. O rapaz vaidoso do cabelo agora já tem uma máscara na mão e acaba por colocá-la correctamente; está só 1 rapaz com a máscara abaixo do nariz, boca tapada.
As 3 raparigas afastam-se, depois afastam-se 2 rapazes. Ficam os 4 que primeiro colocaram bem a máscara, a conversarem uns com os outros. Continuo a pensar que teria sido bom falar com eles.
Saboreio agora o gelado. Entra outro grupo de jovens, dois ou três anos mais velhos que os da mesa redonda. Conto-os: são 4… 5; não, outros há que entraram pela segunda porta, no total ficam 8, 3 raparigas e 5 rapazes. Apuro o ouvido, não percebo o que dizem… Ah, pois claro, falam estrangeiro, inglês, entre eles.
Dos 5 rapazes, um é chinoca, o outro é bem pretinho e outro parece um loiro do Leste europeu. Todos de máscaras muito bem postas. Conversam entre eles, vão para os ecrãs de pedidos, nenhum mexe na máscara.
Estão finalmente os 8 sentados, na mesa mais larga e mais ao centro da sala, lugar facilmente arejável. Nenhum tira a máscara e continuam a conversar entre eles em inglês.
Só quando os tabuleiros da comida chegam eles tiram as máscaras.
Eu, que estava a comer o gelado lentamente, apressei-me. Não, desta vez não queria falhar a oportunidade, nem sequer antecipei o bom discurso.
Cheguei-me a eles, perguntei-lhes se algum falava português e que grupo era aquele. Respondem-me 2 ou 3, dizem falar português. 2 calam-se para que se ouça o outro, certamente o líder do grupo: «Somos amigos, só isso, combinámos encontrar-nos aqui hoje, olhe, eu, por exemplo, sou de Almada e vim aqui só para me encontrar com estes meus amigos.»
Não quis perguntar mais nada, todos eles se tinham calado para me ouvir. Dei-lhes os parabéns, disse-lhes que os tinha visto entrar e que que apreciei muito o cuidado de todos no uso da máscara, eram um bom exemplo para toda a gente. Desejei-lhes bom almoço, repeti os parabéns, desejei-lhes um bom convívio, boa sorte e muita saúde.
Até o tal que me parecia do Leste, de hambúrguer parado entre o tabuleiro e a boca fez questão de me agradecer num português de estrangeiro, alto, para ter a certeza de que eu o ouvira. Fui-me embora, ia satisfeito.
Sem comentários:
Enviar um comentário