domingo, abril 14, 2019

AS ILUSÕES DA ETERNA E LIVRE JUVENTUDE

ESPLENDOR E SOMBRA SOBRE A EUROPA, 2/12

AS ILUSÕES DA ETERNA E LIVRE JUVENTUDE

Vive-se o auge da "Belle Époque"(1). Com todos os sinais de bem-estar pessoal, liberdade individual, progresso material e poder científico, como querem que se acredite que podem estar a chegar tempos cinzentos, ou mesmo negros, à Europa?

«Nunca a Europa fora tão forte, tão rica, tão bela, nunca acreditara tão profundamente num futuro ainda melhor; ninguém, a não ser alguns velhos já engelhados, lamentava, como antigamente, os "bons velhos tempos".
September 8, 1906
Mas não eram só as cidades, também as próprias pessoas estavam mais belas e mais saudáveis graças ao desporto, à melhor alimentação, à redução do horário de trabalho e à relação mais íntima com a natureza. O inverno, outrora uma estação de monotonia, que as pessoas desbaratavam de mau humor, jogando às cartas nas tabernas ou então aborrecendo-se em compartimentos sobreaquecidos, tinha sido descoberto nas montanhas como lugar de filtragem do sol, como néctar para os pulmões, como voluptuosidade para a pele onde um sangue veloz afluía. E as montanhas, os lagos, o mar já não estavam tão longe como dantes. A bicicleta, o automóvel, o comboio elétrico tinham encurtado distâncias e oferecido ao mundo uma nova sensação de espaço. Ao domingo, milhares e dezenas de milhar, em anoraques de cores berrantes, lançavam-se velozmente pela encostas nevadas nos seus esquis e trenós; por todo o lado surgiam palácios de desportos e piscinas. E era justamente na piscina que era possível notar mais claramente a mudança: enquanto que, nos meus anos de juventude, um homem realmente bem constituído sobressaía no meio dos pescoços anafados, das grandes panças e dos peitos cavados, agora eram corpos ginasticados, tisnados pelo sol, enrijecidos pelo desporto que rivalizavam entre si à maneira das joviais competições clássicas. Ninguém, a não ser os mais pobres entre os pobres, ficava agora em casa ao domingo, toda a juventude, instruída em todas as modalidades desportivas, fazia caminhadas, trepava, lutava; quem tinha férias, já não as passava perto da cidade ou, na melhor das hipóteses, no Salzkammergut como ainda fora hábito no tempo dos meus pais; tinha-se curiosidade em saber se o mundo seria assim tão belo em toda a parte, ou se teria uma beleza diferente. Enquanto que outrora só os privilegiados conheciam o estrangeiro, agora eram os empregados bancários e os pequenos comerciantes que iam até à Itália, até à França. Viajar tinha-se tornado mais barato, mais cómodo, mas sobretudo: era a nova coragem, a nova ousadia das pessoas que as tornava também mais audazes nas deslocações, menos receosas e menos poupadas na vida — sim, tinha-se vergonha de mostrar receio. Toda aquela geração tomara a decisão de se tornar mais jovem; contrariamente ao mundo dos meus pais, tinha-se orgulho em se ser jovem; de repente, as barbas desapareceram dos rostos dos mais novos, imitados então pelos mais velhos que não queriam ser tomados como tal. Ser jovem, fresco, e não arvorar ares dignos tornou-se a palavra de ordem. As mulheres deitaram fora os espartilhos que lhes comprimiam os seios, abdicaram dos chapéus de sol e dos véus, porque já não temiam nem o ar nem o sol, encurtaram as saias para melhor poderem movimentar as pernas no ténis, e deixaram de ter vergonha de mostrá-las quando eram bem feitas. A moda tornou-se cada vez mais natural, os homens usavam calções, as mulheres aventuravam-se na sela de cavaleiro, ninguém se tapava, ninguém se escondia dos outros. O mundo não estava apenas mais belo, estava também mais livre.» (2)
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(1) "expressão origem francesa que significa literalmente “Bela Época”. Esta expressão criada para designar um período da história na Europa marcado pela paz aproximadamente entre 1871 quando teve fim a Guerra Franco-Prussiana e julho de 1914 quando começou a primeira Guerra Mundial, compreendendo um total de 43 anos. Este período ficou caracterizado sobretudo pela expansão e progresso tecnológico, científico e cultural." https://www.infoescola.com/artes/belle-epoque/
(2) “O Mundo de Ontem, recordações de um europeu”, de Stefan Zweig, publicado pela Assírio & Alvim, reimpressão de 2017, pp. 230-32.

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