"Texto ligeiro", como diz o autor, recolhido no Pensageiro Frequente, publicado pela Caminho. Em rigor, é uma parte do texto "As águas da terra" (p. 99), originalmente publicado na revista de bordo das Linhas Aéreas Moçambicanas, em abril de 2005.
Para mim, a ocorrência relatada, mesmo que literariamente, por Mia Couto, é um hino ao que as crianças, em geral (quer dizer, todos nós), são capazes de fazer a partir da sua natureza social ingénua, espontânea, discretamente apoiada ou reforçada por educação pessoal, familiar, simples, que valorize a comunhão e a partilha, mais que a competição, a apropriação individual e a maximização perfecionistas das ações.
Este "subtexto" chama-se MAPUTO.
Maputo tem uma dívida permanente com o rio Umbeluzi. A cidade bebe das suas águas. Subo de canoa, contra a corrente, e vou parando nas margens lodosas. Ali, em pleno estuário, o Umbeluzi é rio ou é mar? As águas são salobras, as marés comandam, a vegetação nas margens são típicos mangais. Estamos mais em ambiente marinho que fluvial.
Vejo, então, o pequeno pastor trazendo os bois que se apressam para a margem. Parecem conhecer o provérbio local que diz: “O boi que chega primeiro é o que bebe água mais limpa.” O menino senta-se sob uma sombra mais pequena que ele. De uma sacola encardida retira uma xigovia. Sopra na pequena cabaça e faz soar a improvisada flauta. A melodia, confesso, era monocórdica.
Para mim, naquele momento, soava como uma sinfonia. E acenei, da canoa. Não me respondeu. Não me percebeu o gesto. Entendeu, sim, que eu lhe pedia a cabaça. Ainda hesitou, por um momento. Mas, de súbito, fez lançar pelo ar a xigovia. Com algum esforço, juntei ambas as mãos e apanhei o fruto da nsala. Ainda hoje guardo a xigovia desse menino que não terá nome mas que, para mim, tem a história de um encontro.
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