Hoje, de manhã, quando entrei no supermercado com uma lista grande de legumes para comprar (já se me acabaram praticamente todos cá em casa) quase esbarrei com um expositor temporário de cartões de Natal. Todos da Unicef. Nas duas prateleiras mais perto do chão tinha bonequinhos de peluche e carrinhos (o jipe azul, com a cruz branca, da Unicef).
Já depois de me ter decidido a quantidade de cartões a comprar, e depois de ter optado pelos pacotes de seis em vez das caixas de dez (afinal, mais caras); quando estava a escolher os desenhos, uma senhora chegou-se ao expositor e pegou logo num dos bonequinhos. "Olha, e se for isto?..." Sem olhar, percebi, pela resposta, que estava a falar com a filha. "Eu acho que os meninos não vão gostar disso..." Eu continuava a escolher os desenhos dos meus cartões. O que ouvi a seguir fez-me decidir não olhar mesmo para o meu lado direito: "Azar o deles..." foi a reação da mãe. A frase saiu-lhe da boca com rudeza explosiva! Fez-se um breve silêncio, a filha estaria a pensar no que a mãe tinha acabado de dizer. Depois percebi que estariam a fazer uma compra para um qualquer projeto de ajuda a crianças institucionalizadas, fazê-las felizes numa festa de Natal. Pouco depois, a menina repetiu: "Eu acho que os meninos não vão gostar desses bonecos..." Desta vez a mãe já não respondeu nada. Acabou por se voltar para a filha e perguntou-lhe: "Qual dos bonecos é que gostas mais?" Veio-me à cabeça que o que a senhora agora tentava fazer era comprar a cumplicidade da filha, os meninos não gostariam, certamente, mas sempre poderia vir a dizer que tinha sido a filha a escolher, e, assim escudada na ingenuidade pura e oblativa das crianças, a perversidade da escolha - da sua escolha, escolha de mãe - ficaria "genialmente" disfarçada. A menina continuou a ser muito mais lúcida, honesta e companheira do que a mãe: "Eu gosto mais deste, mas já te disse mãe, os meninos não vão gostar..."
A mãe baixou-se, esticou o braço mais duas ou três vezes, a pegar em bonecos, e finalmente escolheu um: "Vai este..." E foram embora.
Não cheguei a ver se acabou por levar o que a filha tinha dito que tinha gostado mais ou não, fixei-me só nas vozes e não pude deixar de ver, pela visão periférica, os gestos e as movimentações dos corpos.
Só depois de se afastarem é que olhei os bonecos. Pelo seu preço, pareceu-me que seria uma prenda convidativa; e pensei que os bonecos não seriam assim tão desagradáveis para as crianças, fossem elas quais fossem, a quem as meninas se referia.
Mas não era isso que era o cerne da questão, eu sabia-o bem. O cerne estava naquele "azar", pelo que ele denunciava dos verdadeiros sentimentos da mãe; e pelos efeitos que comportamentos assim têm na progressiva (des)educação das crianças e na sua formação moral, social e solidária.
Neste episódio - significativo episódio - quem foi sincera, tolerante e dialogante, foi a criança! Que virá a acontecer a estes valores ao longo do seu desenvolvimento pessoal?...
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