domingo, maio 17, 2009

O José Geadas e a mística do Benfica

Carta aberta ao José Geadas (aberta, porque penso que fará bem a todos os benfiquistas lerem-na):
Hoje voltei a Cernache (Coimbra). Quando cá cheguei, o familiar que vim visitar ainda estava para a missa. Aproveitei e vim para a quinta onde o meu pai passou a sua infância e daqui te escrevo esta carta.
Não há quase dia nenhum em que não pense sobre o que leva as pessoas a aproximarem-se umas das outras; e também sobre o que as leva a afastarem-se. Ou não fosse eu psicólogo e professor. Por exemplo, penso muitas vezes sobre o que se poderá fazer para aproximar mais os professores dos alunos; ou o que se poderá fazer para que os casais não se desunam com a facilidade com que hoje em dia acontece, e assim prejudiquem a consolidação dos laços afectivos dentro das famílias.
Ora a história que te venho contar é precisamente a história de uma ocorrência que me fez aproximar de ti, sem deliberadamente o querer, ou o procurar. E tu aí, longe, no teu Rio de Moinhos, também sem fazeres ideia de nada!
É por isso, por este feliz acaso, que a única coisa que posso agora desejar é que, no fim de leres a história, sintas que gostaste, que é uma história gira.
Certamente já ouviste dizer que as conversas são como as cerejas, quer dizer, atrás de um assunto vem logo outro.
Bom, pode-se dizer que a conversa que deu em história - esta história - começou por causa do David Gomes, outro dos teus companheiros do concurso da TVI.
Mas a marca que faz desta história uma coisa única, absolutamente original; que faz desta história uma narração inimitável, é inteiramente tua. Tem a tua presença, tem a tua vivacidade. Sem saberes, deste-me a oportunidade de vivê-la na primeira pessoa, de ser eu o descobridor do tesouro guardado na memória do meu querido tio Francisco José que - como vais ver - decidiu tornar-se benfiquista sensivelmente com a idade que tu agora tens (cá está outra coisa que apareceu por acaso, e teve o condão de facilitar a tal aproximação pessoal).
Vamos à história. Quase me apetece começar a dizer “Era uma vez...”
A minha irmã vive nos Açores. No dia 19 de Abril estava por cá, por razões profissionais. Aproveitámos e viemos a Coimbra visitar o tio Francisco José, o decano da família.
Antes de lhe batermos à porta, passámos por um grande supermercado para pegar numa caixita de bombons para oferecer à tia Hermínia. Já lhe levávamos o chá tradicional dos Açores e quisemos juntar uma guloseima. (E foi precisamente nesta altura que se passou o que, logo nesse dia, relatei no apontamento deste blogue, no dia 19 de Abril, a propósito do David.)
Ainda agora não conseguimos falar com o tio Francisco José (o mais velho dos quatro irmãos, todos rapazes) sem falar do nosso pai, que morreu há pouco tempo. A certa altura eu disse que a última grande paixão que eu vi esmorecer na alma do meu pai foi a que tinha pelo seu Sporting. Nunca eu desejei tanto que o Sporting tivesse vitórias gloriosas, até contra o nosso Benfica, Zé, como no ano triste de 2007! Mas a vida já tinha tomado um certo caminho e não voltou atrás.
A seguir ao assunto do Sporting do nosso pai, veio o assunto das revistas que eu comprei sobre o David Gomes. Depois, o do momento televisivo delicioso que aconteceu quando te levantaste do teu lugar, foste para junto do Nuno da Câmara Pereira, falaste do Benfica e cantaste o Cavalo Ruço.
De repente, guiado por nada, num impulso, perguntei ao tio Francisco José como é que ele se tinha tornado adepto do Benfica, já que o pai deles, o nosso avô Pinto - ele, sim, um grande poeta popular! - nunca tinha mostrado qualquer interesse pelo futebol. Afinal, quem é que o tinha influenciado?... “Ninguém...” respondeu-me ele prontamente, muito convictamente. Ninguém o tinha influenciado, tinha sido uma opção pessoal. Mais, ele lembrava-se perfeitamente desse momento, teria esse sensivelmente a idade que tu tens agora, como já te disse, onze ou doze anos.

Passaram mais de 70 anos, é certo, mas, repetiu-nos ele, a memória é ainda muito clara:
Corria-se a Volta a Portugal em bicicleta, talvez a de 1933, ou 34. Naquele dia, a etapa ia terminar em Coimbra. Como pode, o tio Francisco José fintou as suas obrigações de trabalho (é verdade, como acontecia com muitos dos rapazes pobres daquela altura, ele trabalhava todo o dia para ajudar os pais) para ir ver a chegada dos ciclistas. E conseguiu-o.
Quando foi o sprint da chegada, ele reparou que havia um ciclista que sangrava abundantemente, mas não deixava de pedalar com muito vigor. “Naquele tempo, não havia nada do apoio médico que os atletas têm hoje”, frisou bem o tio Francisco José. Ele fixou a atenção nesse ciclista: reparou no sangue quente que nele escorria; reparou na ferida aberta na perna, que certamente ardia muito; reparou no suor sujo que lhe caía intensamente pela cara abaixo e testemunhava a queda brutal da bicicleta.
Os olhos do nosso tio fixaram-se finalmente no rosto do ciclista e na expressão de dor que ele mostrava. Mas não foi só isso que ele viu no rosto que o hipnotizava. Ele viu nele também a determinação, a garra bem vincada de quem queria acabar o que tinha de ser acabado, custasse o que custasse. E quando ele viu aquele ciclista cortar a meta, e só depois deixar-se cair e sofrer, o tio Francisco José viu-se tomado por uma sensação de profundo respeito e admiração por esse atleta. E logo ali decidiu que o emblema desse homem assombroso seria também, para sempre, o seu emblema.
O atleta, o ciclista lutador e determinado era o mítico José Maria Nicolau; e o emblema que brilhava no seu peito era o do Benfica.
E foi assim que o nosso tio se tornou adepto do Glorioso!
Não achas bonita esta história, Zé?...
E, se não fosses tu, quem sabe?, talvez nunca alguém chegasse a conhecer esta memória única e irrepetível deste benfiquista cheio de anos, que por acaso é meu tio; e que há muito tempo viveu a magia do crescimento que agora a ti cabe viver.

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