sábado, janeiro 25, 2014

Um hino à bondade genuína que a educação natural cultiva

O texto é de Mia Couto.
"Texto ligeiro", como diz o autor, recolhido no Pensageiro Frequente, publicado pela Caminho. Em rigor, é uma parte do texto "As águas da terra" (p. 99), originalmente publicado na revista de bordo das Linhas Aéreas Moçambicanas, em abril de 2005.
Para mim, a ocorrência relatada, mesmo que literariamente, por Mia Couto, é um hino ao que as crianças, em geral (quer dizer, todos nós), são capazes de fazer a partir da sua natureza social ingénua, espontânea, discretamente apoiada ou reforçada por educação pessoal, familiar, simples, que valorize a comunhão e a partilha, mais que a competição, a apropriação individual e a maximização perfecionistas das ações.

Este "subtexto" chama-se MAPUTO.
Maputo tem uma dívida permanente com o rio Umbeluzi. A cidade bebe das suas águas. Subo de canoa, contra a corrente, e vou parando nas margens lodosas. Ali, em pleno estuário, o Umbeluzi é rio ou é mar? As águas são salobras, as marés comandam, a vegetação nas margens são típicos mangais. Estamos mais em ambiente marinho que fluvial.

Vejo, então, o pequeno pastor trazendo os bois que se apressam para a margem. Parecem conhecer o provérbio local que diz: “O boi que chega primeiro é o que bebe água mais limpa.” O menino senta-se sob uma sombra mais pequena que ele. De uma sacola encardida retira uma xigovia. Sopra na pequena cabaça e faz soar a improvisada flauta. A melodia, confesso, era monocórdica.

Para mim, naquele momento, soava como uma sinfonia. E acenei, da canoa. Não me respondeu. Não me percebeu o gesto. Entendeu, sim, que eu lhe pedia a cabaça. Ainda hesitou, por um momento. Mas, de súbito, fez lançar pelo ar a xigovia. Com algum esforço, juntei ambas as mãos e apanhei o fruto da nsala. Ainda hoje guardo a xigovia desse menino que não terá nome mas que, para mim, tem a história de um encontro.

sábado, janeiro 18, 2014

De volta ao TEMPO, com Mia Couto, Eusébio, Mário Soares e o régulo Evaristo Faife

Gungunhana (1891), provavelmente o
régulo mais famoso da História de Portugal
Quando Mia Couto tinha olhos de menino, os olhos que agigantam o mundo, um dos seus manos costumava chantagear os pais e os irmãos para dar satisfação às suas birras: dizia-lhes que fugiria para Inhaminga.
“Inhaminga situava-se numa inatingível bruma, era o lugar mais longínquo que nós, nascidos e vividos na Beira podíamos imaginar. (…) Quarenta anos depois regresso a esse percurso de encantamento. A primeira impressão quando fazemos essas incursões no passado é sempre de que o mundo ficou mais pequeno. Aquilo que eu retinha como grandes estradas de areia sempre foram, afinal, estreitas picadas. (…) À noite, conto ao régulo a história do meu irmão, usando Inhaminga como chantagem emocional. O homem ri-se. Depois, uma certa melancolia invade o seu rosto magro. Então, Evaristo Faife diz:
- Seu irmão tinha razão: isto aqui é mais longe que o estrangeiro.
- Não é verdade. Então não estamos aqui, juntos?
- Sim, mas quanto tempo demorou para que o senhor voltasse aqui?”

 (Mia Couto, 2010. Pensageiro Frequente, pp. 85-88. Editorial Caminho)
Mia Couto calou-se ao ouvir isto. Eu também me calei ao ler estas palavras. Confesso que não consegui evitar que me viesse ao pensamento, outra vez, o Eusébio (moçambicano de um bairro periférico de Lourenço Marques) e a “homenagem” que Mário Soares lhe fez quando evocou, no dia da morte do fantástico jogador de futebol, a sua “sem cultura”. É que me perguntei se a cultura de Mário Soares (muito mais parecida com a minha do que a de Eusébio) nos propicia a oportunidade e as condições para pensarmos desta maneira. Que questionamento notável, o do réculo! Quando o homem consagrado pela Cultura, Mia Couto – felizmente, humilde pessoa, amante do contacto pessoal -, tentava simbolizar a proximidade dos afetos por oposição à distância geográfica. O pensamento do extraordinário régulo apanhou, desprevenido, o escritor, no seu próprio terreno, jogando em casa…

domingo, janeiro 12, 2014

As 8 coisas que aprendi com Eusébio

RESPEITAR EUSÉBIO E A SUA MEMÓRIA
É TORNAR NOSSO O TESTEMUNHO DE JOÃO VIEIRA PINTO
É a minha opinião, nada mais do que isso. Vou muito intencionalmente tomar para mim o testemunho do João Vieira Pinto.
De tudo o que me esforcei por ver, ler e ouvir na semana que decorreu desde que Eusébio morreu, este testemunho é o que, no meu entender, melhor sintetiza o exemplo e o legado de Eusébio, o que vale a pena tomarmos em linha de conta do exemplo de Eusébio no futuro das nossas vidas. Eu leio as palavras de JVP, transporto-as para a minha vida, para a minha condição de cidadão e para o meu magistério de professor, e tudo mantém pleno sentido!

  1. BEM RECEBER.  Quando cheguei ao Benfica, em 1992, vindo do Boavista, já o conhecia, da seleção, e estabelecemos logo uma boa relação. Senti-me sempre protegido por ele. Ele gostava muito de mim como jogador e acolheu-me muito bem, como aliás fazia com toda a gente que chegava ao Benfica.
  2. MELHORAR. Depois dos jogos, costumávamos falar sobre o que tinha acontecido, analisávamos os lances e as movimentações que tinham corrido menos bem, para que no domingo seguinte isso já saísse perfeito - ou pelo menos melhor.
  3. ELOGIAR. Quando um jogo me corria bem, ele era o primeiro a vir ter comigo a dizer "estavas endiabrado", "partisre aquilo tudo", "estás em grande forma".
  4. LUTAR. Ele dizia sempre que nunca podíamos desistir de um lance, tínhamos de lutar, dar tudo em campo. Ele contava histórias das lesões e realçava que queria jogar sempre.
  5. JOGAR AO ATAQUE.  O Eusébio era muito objetivo, tinha uma enorme velocidade e potência de remate. E por isso dizia que a finta era apenas um recurso, que o jogo se fazia a avançar no terreno.
  6. REMATAR SEMPRE.  O Eusébio, até na bancada, a ver os jogos, quando via um avançado perto da área gritava: "Chuta." Esse também era um dos conselhos recorrentes dele. Perto da área, não valia a pena estar com rodriguinhos, era arranjar espaço e chutar, porque se não se chutasse não se marcavam golos de certeza.
  7. APURAR A TÉCNICA. Falava muito comigo sobre a forma de rematar, de colocar o pé na bola, de inclinar o corpo. Nos livres, treinava comigo a melhor maneira de colocar a bola em arco no lado contrário. Costumava marcar cantos do lado de fora da linha de campo, já atrás da baliza, e a bola descrevia um arco e entrava. No fim dos treinos ele desafiava-me, a mim e aos outros, a fazer melhor do que ele. Eu às vezes conseguia, mas ele ganhava quase sempre esses concursos de cantos diretos. Era isso ou ver quem é que acertava mais vezes na barra. Ou quem colocava a bola no meio das pernas de um jogador num passe de 30 metros. Fazíamos exercícios de grande precisão e de grande execução técnica.
  8. AMIZADE. Tornei-me amigo dele. Íamos muitas vezes almoçar ou jantar e falar dos seus grandes tempos de jogador. Tinha uma ótima relação com ele. Muitas vezes, quando o Benfica jogava no estrangeiro, no regresso o autocarro levava-nos até ao Estádio da Luz e depois eu é que o ia levar a casa.

quinta-feira, janeiro 09, 2014

JOSÉ TRAVASSOS E EUSÉBIO. AOS MEUS ALUNOS DO SPORTING.

Meus queridos alunos,

pelo menos alguns de vós não conhecereis estas palavras de Eusébio, escritas no hospital, em dezembro de 1960, e recolhidas no livro O que as almas são por dentro - 99 Testemunhos, da autoria do cónego António de Azevedo Pires, publicado em 1967 pela Editorial Pórtico. Antes de reproduzir na íntegra a carta, deixai-me destacar uma parte que tanto tem a ver com o que temos falado nas últimas aulas. E desta vez não quero dar relevo à humildade de Eusébio; isso sim, à nobreza de alma e à sabedoria humana do grande sportinguista José Travassos. As palavras são claras, não precisam de ser comentadas ou interpretadas por mim. O Eusébio dirige-se ao senhor padre autor do livro. Eu não conheço ainda o livro, admito que o senhor padre, boamente, tenha vertido para o livro uma versão especialmente bem compostinha das palavras originais de Eusébio. Na verdade, eu sei "do que é que a casa gasta..." Tenho experiência de muitos alunos da idade com que Eusébio escreveu esta carta (18 anos), sei qual é o rigor de expressão escrita, formal, de que, em geral, são capazes.

"Lembra-se da conversa que tivemos aqui, há pouco, neste quarto do Hospital, com o sr. José Travassos que veio também visitar-me? Estávamos só os três. Conversámos muito. O sr. Travassos, que foi grande jogador, foi muito largo nos elogios que me dirigiu. Ouviu aquilo que ele me disse e que eu não esperava?: «O Eusébio, se trabalhar e se tiver sempre juízo, pode ir longe no futebol. Já o vi jogar, e digo-lhe que tem qualidades para vir a ser o melhor jogador português de todos os tempos. Aproveite-as, trabalhe e nunca seja vaidoso.»
CARTA DE EUSÉBIO - VERSÃO INTEGRAL
Hospital da C. U. F.
Dezembro de 1960.
Aqui estou neste Hospital depois da operação que há dias me fizeram. Espero que hei-de ficar bom depressa. Deus há-de-me ajudar.
Desde que vim de Moçambique lembro-me muito de minha Mãe. Escrevo-lhe muitas vezes a dar notícias minhas, porque sei que ela gosta muito de as receber. Eu gosto de lhe dar alegria. No futuro, se as coisas me correrem bem, ela nunca será esquecida, Se eu triunfar no futebol e os jornais vierem a falar de mim e se eu ganhar dinheiro grande, não quero isso para vaidade minha. Quero para dar alegria à minha Mãe. Não gosto de ser vaidoso, mas quero que os meus triunfos vão dar gosto à minha Mãe. Ela merece. Fez muito pelos filhos, por mim e pelos meus irmãos. Não esqueço a formação que me deu, para ser um homem bom e honrado.
A formação cristã que minha Mãe me deu e a que recebi também dos padres missionários que estavam lá perto da minha terra hão-de ajudar-me muito na vida.
A minha Mãe Elisa é extraordinária, Também quero ajudá-la com o dinheiro que eu ganhar.
Lembra-se da conversa que tivemos aqui, há pouco, neste quarto do Hospital, com o sr. José Travassos que veio também visitar-me? Estávamos só os três. Conversámos muito. O sr. Travassos, que foi grande jogador, foi muito largo nos elogios que me dirigiu. Ouviu aquilo que ele me disse e que eu não esperava?:
«O Eusébio, se trabalhar e se tiver sempre juízo, pode ir longe no futebol. Já o vi jogar, e digo-lhe que tem qualidades para vir a ser o melhor jogador português de todos os tempos. Aproveite-as, trabalhe e nunca seja vaidoso.»
Isto foi o que disse o sr. José Travassos ao querer ser amável comigo, lembra-se? Como sou muito novo e estou a começar a minha carreira, naturalmente ele disse aquelas coisas só para me estimular. Mas vou aproveitar o estímulo e vou trabalhar a sério, para vir a ser alguém. Não quero vaidades. Quero ser um homem, e quero dar muitas alegrias à minha Mãe Elisa.
Eusébio da Silva Ferreira

"Homenagem a Eusébio" - Luís Filipe Borges - 5 Para a Meia Noite

Aos poucos, irei aqui enumerando as razões porque considero que este pequeno discurso tem uma miríade de potencialidades pedagógicas, que podem ser tranquilamente exploradas na educação, também tranquila, das crianças e dos jovens.

terça-feira, janeiro 07, 2014

Gandhi deixou 2 dólares de bens materiais quando morreu

Menos de dois dólares

Um texto notável de José Tolentino Mendonça


A "pegada ecológica" diz muito acerca de nós: quantos recursos (e que recursos) hipotecamos para construir o que é o nosso estilo de vida, quais as necessidades que consideramos vitais e como as priorizamos, que tráfico de bens e serviços temos de colocar em funcionamento para realizar o nosso sonho (ou a nossa ilusão) de bem-estar. Os indicadores coincidem no seguinte: as sociedades avançadas geram uma inflação permanente de necessidades, indiferentes aos desequilíbrios que causam, e que são, em grande medida, não só de sustentabilidade ambiental mas de sustentabilidade espiritual. [o destaque é meu]

A verdade é que cada um de nós traz vazios por preencher, carências e interrogações submersas, desejos calcados que procura compensar da forma mais imediata. Não é propriamente de coisas que precisamos, mas, à falta de melhor, condescendemos. À falta desse amor que nem sempre conseguimos, desse caminho mais aberto e solitário que evitamos percorrer, à falta dessa reconciliação connosco mesmo e com os outros que continuamente adiamos... O consumo desenfreado não é outra coisa que uma bolsa de compensações. As coisas que se adquirem são, obviamente, mais do que coisas: são promessas que nos acenam, são protestos impotentes por uma existência que não nos satisfaz, são ficções do nosso teatro interno. Os centros comerciais apresentam-se como pequenos paraísos, indolores e instantâneos. Infelizmente, de curtíssima duração também.

Li há dias, e impressionou-me muito, que, quando Gandhi morreu, os bens materiais que deixou valiam menos de dois dólares. Voltei a ler para verificar se me tinha enganado: menos de dois dólares. Os bens espirituais e civis que legou ao futuro tinham, porém, uma dimensão incalculável. O que nos enfraquece não é, de facto, a escassez, mas a sobreabundância; não é a indagação, mas o ruído de mil respostas fáceis que conflituam; não é a frugalidade, mas sim o desperdício. O que nos enfraquece é não termos escutado até ao fim o que está por detrás da fome e da sede, da nossa urgência e da nossa fadiga, do atordoamento, dos medos ou da abstenção.

Há aquela cena do filme de Steven Spielberg "A Lista de Schindler". O ator Liam Neeson representa o papel do industrial alemão que salvou a vida a mais de mil judeus. Na cena final, os resgatados oferecem-lhe, expressando a sua gratidão, uma aliança com uma frase do Talrnude. «Aquele que salva uma vida, salva o mundo inteiro». E a resposta de Oskar Schindler é inesquecível: «Podia ter feito mais. Não sei, eu... Podia ter salvo mais. Desperdicei tanto dinheiro com futilidades. Não fazes ideia. Se soubesses... Não fiz o suficiente. Este carro... Porque fiquei eu com ele? Alguém o teria comprado. Teria salvo dez pessoas, mais dez pessoas. Este alfinete! Duas pessoas! É de ouro. Podia ter salvo mais duas pessoas. Por isto... eu poderia ter salvo mais pessoas... e não o fiz». Estamos condenados a uma dor assim?

Mas há finais felizes. Lembro-me dos meses que antecederam a partida do poeta Eugénio de Andrade. Ele ficou internado longo tempo no Hospital de Santo António, no Porto. Nessa altura, passei por lá algumas vezes a visitá-lo e só me recordo de ouvi-lo pedir uma coisa: que lhe trouxessem duas maçãs. Não para comer, obviamente, mas para ficar a olhá-las da cama, para sentir a cor, a textura, o perfume, para distinguir a sua forma no silêncio, para amá-las como se ama uma pintura de Cézanne. Acho que duas maçãs custam menos de dois dólares, não é verdade? (José Tolentino Mendonça, In Expresso, 4.1.2014)

domingo, janeiro 05, 2014

Ser bom professor com Ricardo Araújo Pereira

E, de repente, aparece Ricardo Araújo Pereira a trazer-me à consciência a pergunta:
http://problemasteoremas.wordpress.com/2008/07/22/
dois-comboios-e-duas-cidades/
- Será, na verdade, possível ser-se bom professor se não se entender isto e se não se lidar com prudência e sabedoria com estas diferenças?...
Vem na Visão, na edição de 2 de janeiro de 2014:
"O escritor brasileiro Luís Fernando Veríssimo percebeu que se interessava mais por letras do que por números quando, em criança, o professor de matemática lhe colocou aqueles problemas do costume. "Um comboio parte do ponto A às 8h00 e viaja a uma velocidade média de 100 km/h. Outro comboio parte do ponto B duas horas mais tarde e depois segue a 80 km/h. Determine a que horas vão os comboios encontrar-se no ponto C, sabendo que, etc." Em vez de calcular a resposta, Veríssimo punha-se a imaginar quem seriam os passageiros dos comboios, por que razão iriam do ponto C àquela hora da manhã, ou quem os esperaria lá."