terça-feira, setembro 17, 2013

Santo Agostinho: brincar ou ir à escola; e ser castigado

O meu amigo Luís B. Moniz é o principal "culpado" de uma revisita aos escritos que tenho de Santo Agostinho. Encontrei um que achei ter muito a ver com o recomeço das aulas.
Os responsáveis dos estabelecimentos escolares esforçam-se em receber os alunos com cordialidade, com carinho, com sorrisos; mas não conseguem resistir a lançar firmes avisos da tolerância zero para os atos de indisciplina. Cada vez mais eu me interrogo sobre o que vale hoje a escola na formação integral da pessoa que é cada criança e cada jovem que a frequenta. Tenho cada vez menos certezas, mas também não me angustio com as minhas incertezas.
Creio que a generalidade dos alunos gosta de voltar à escola, mas as aulas são cada vez menos espaço para se gostar de estar, são espaços que despertam cada vez menos entusiasmo para aprender.
Os professores são profissionais com cada vez menos tranquilidade na sua condição profissional e também na sua condição pessoal; e familiar. Os professores são profissionais cada vez mais tolhidos na sua espontaneidade, na sua criatividade, na sua intuição e experiência pessoal por regulamentos, decretos ministeriais, procedimentos administrativos, e outras burocracias...
Não tenho soluções, mas acredito que continua a valer a pena privilegiar a experiência social positiva em sala de aula à preocupação obsessiva de encher as cabeças dos alunos com conteúdos programáticos - até porque, entretanto, seria necessário verificar se eles são os oportunos e ajustados. As lideranças políticas, económicas e financeiras do mundo estão cheias de especialistas de conhecimentos e o estado do mundo é a desgraça que se conhece. Falta na condução do mundo, nas lideranças o que, por exemplo, o ministro da Educação tanto critica: a humanidade, a ética, os valores, a solidariedade e a tolerância que as Ciências da Educação tanto alertam que não sejam descurados. Como diz a expressão popular, bem podem Nuno Crato e outros especialistas esclarecidos e empreendedores limparem as mãos à parede com a linda... coisa que têm andado a fazer!
Por isso deixo, então, aqui esse texto de Santo Agostinho, que ele escreveu há quase 1600 anos. Fala ele de gostar de ir à escola, gostar de brincar; compara crianças com homens de negócios (- Olha!...) e da maneira como uns são castigados e outros não por pecados equivalentes; finalmente, de quem acaba por ficar atormentado pela ira e pela inveja.
O texto:

Na paixão do jogo [da brincadeira]

Ó Deus, meu Deus, que misérias e enganos não experimentei, quando, simples criança, me propunham vida reta e obediência aos mestres, a fim de mais tarde brilhar no mundo e me ilustrar nas artes da língua, servil instrumento da ambição e da cobiça dos homens.
Fui mandado à escola para aprender as primeiras letras, cuja utilidade eu, infeliz, ignorava. Todavia batiam-me se no estudo me deixava levar pela preguiça. As pessoas grandes louvavam esta severidade. Muitos dos nossos predecessores na vida tinham traçado estas vias dolorosas, por onde éramos obrigados a caminhar, multiplicando os trabalhos e as dores aos filhos de Adão. Encontrei, porém, Senhor, homens que Vos imploravam, e deles aprendi, na medida em que me foi possível, que éreis alguma coisa de grande e que podíeis, apesar de invisível aos sentidos, ouvir-nos e socorrer-nos. Ainda menino, comecei a rezar-Vos como a "meu auxílio e refúgio", desembaraçando-me das peias da língua para Vos invocar. Embora criança, mas com ardente fervor, pedia-Vos que na escola não fosse açoitado. Quando me não atendíeis — "o que era para meu proveito" —, as pessoas mais velhas e até os meus próprios pais, que, afinal, me não desejavam mal, riam-se dos açoites — o meu maior e mais penoso suplício.
 Haverá, Senhor, alma tão generosa e tão unida a Vós pelos laços dum ardente afeto, que despreze, não por insensibilidade louca, mas por amor intenso e forte para convosco, os cavaletes, os garfos de ferro e os demais tormentos deste género dos quais os homens em toda parte suplicam que os liberteis? Haverá alguma alma dessas que despreze essas torturas a ponto de rir dos que tão acerbamente temem esses suplícios, como meus pais caçoavam das penalidades que a nós, meninos, infligiam os mestres? Eu não temia menos os castigos do que as torturas, nem Vos suplicava menos que nos livrásseis deles.
Contudo, pecava por negligência, escrevendo, lendo e aprendendo as lições com menos cuidado do que de nós exigiam.
Senhor, não era a memória ou a inteligência que me faltavam, pois me dotastes com o suficiente para aquela idade. Mas gostava de jogar - e aqueles que me castigavam procediam de modo idêntico! As ninharias dos homens, porém, chamam-se negócios; e as dos meninos, sendo do mesmo jaez, são punidas pelos grandes, sem que ninguém se compadeça da criança, nem do homem, nem de ambos. Um juiz reto aprovaria os castigos que me davam, por eu, em pequeno, jogar a bola e o jogo ser um obstáculo ao meu aproveitamento nos estudos, com os quais eu havia de jogar menos inocentemente quando chegasse a homem? Agia, porventura, de modo diferente aquele que me batia, se nalguma questiúncula era vencido pelo seu competidor? Então esse não era mais atormentado pela ira e inveja do que eu quando superado no desafio da bola pelo meu rival?...
(Santo Agostinho, 2010. Confissões. Público 20 anos, Livros que mudaram o mundo, p. 27-29)

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