(excerto do livrinho a publicar)
O mal de altitude
Cada um dos elementos do grupo experimentou o mal de altitude à sua maneira. Daí termos considerado que seria interessante que cada um deixasse aqui o seu testemunho pessoal, falando sobre o que pessoalmente sentiu.
Fernando Pinto
Guardo uma viva memória de toda a ascensão, quase passo a passo. A vivacidade está na memória dos sons dos passos, dos momentos de maior esforço físico e dos de alívio do esforço; do serpentear do grupo encosta acima; da claridade fascinante do luar… Enfim, de tanta coisa!...
Fisicamente, senti-me bem durante toda a ascensão, nunca senti qualquer cansaço muscular, senão aquele que penso ser normal ter-se. Foi nesta ascensão que bendisse a preparação física que tinha feito durante os meses anteriores.
Subi sempre alerta para qualquer sinal de enjoo ou de vertigem e, em cada metro escalado, renovava a satisfação de me sentir bem, sem sinais do mal de montanha.
E assim foi até por volta dos 5200m de altitude. Por esta altura, como que caiu sobre mim abruptamente, sem se anunciar sequer de mansinho, uma sonolência que logo identifiquei: Cá está!... É o mal de montanha!... O mal de montanha chegara-me na forma de um sono tremendo!... Entretanto, a clareza de ideias mantinha-se intacta e completamente íntegra. Como disse antes, guardo uma memória muito clara, muito viva, também do longo período de sonolência que se abateu sobre mim. Era como se duas pessoas coexistissem dentro de mim em simultâneo. Eu tinha a consciência clara que não podia deixar-me adormecer. Sabia que teria de lutar contra o sono!... Mas a vontade de dormir era tão grande!... Lembro-me perfeitamente do guia António se colocar à minha frente e pedir-me carinhosamente para não dormir. Eu sabia que não deveria fazê-lo, mas até o simples facto de me imaginar ali deitado a um canto, enroscadinho, a dormir, me consolava e aliviava. Foi, na verdade, uma luta titânica comigo próprio, e foi talvez a satisfação constantemente renovada de me ver a vencer esta luta que permitiu que chegasse aos 5700m de altitude. Tenho também a certeza de que a constante consciencialização que procurava fazer do estado da minha condição física me ajudou decisivamente nesta luta: sentia-me sempre bem fisicamente, não sentia cansaço nos músculos, coisa que me entusiasmava muito. Não tenho dúvidas nenhumas de que a minha experiência do mergulho também me ajudou nesta altura. Sentia-me tão bem (àparte o sono, claro) que, de vez em quando, perguntava-me se não estaria a ficar delirante; sempre que podia, e como podia, era como se pedisse a todos os meus sistemas de verificação internos que me dessem dados actualizados da minha condição física e psicológica e, todos eles, em uníssono me dissessem: Continua, estás bem. Aguenta.
Nunca me passou pela cabeça desistir, eu sempre soube que chegaria ao topo. Curiosamente, nunca tive o mais pequeno indício de náusea ou de vertigem. Nas minhas condições, aquele sono parecia ser como que uma peça que não encaixava no conjunto harmónico que as outras partes de mim todas formavam. Que era uma sensação de sono terrível, pois não tenho dúvidas nenhumas. Que me obrigou a uma luta pessoal titânica para o contrariar, também não.
Eu tinha claramente consciência da presença dos meus colegas e dos guias e preocupava-me por eles, interrogava-me se estariam bem. Se tivesse sido preciso carregar com alguma das suas cargas, certamente o teria feito, pois – repito – fisicamente, muscularmente e respiratoriamente, sentia-me muito bem.
Quando chegámos a Stella Point e ouvi um dos guias dizer qualquer coisa do tipo “Chegámos”, lembro-me que olhei em frente, olhei em volta, vi uma razoável extensão de percurso plano, deixei de ver inclinações de terreno à minha frente para subir; e, subsequentemente, consciencializei que tínhamos atingido um topo. Só um pouco mais tarde consciencializei também que o sono, tão depressa tinha chegado, assim depressa ele também tinha desaparecido. E não voltou mais.
Pouco depois, como está registado neste diário de bordo, explodi num choro intenso e quase incontrolável de alegria olímpica por muitas coisas que naquele momento eu pensei... sim, eu tinha sido capaz de vencer algumas lutas vitalmente importantes antes de ali chegar. É verdade, no pico do Uhuru eu chegara à medalha da minha Olimpíada!
Quando retomámos a caminhada em direcção a Uhuru Peak eu estava quase eufórico, saltava, falava, brincava. Até que senti uma pequena náusea. Rapidamente consciencializei que, por causa daquela alegria toda, perdera a disciplina pessoal necessária para aqueles últimos metros. Sem dificuldade, recuperei essa disciplina e não voltei a sentir qualquer vertigem.
Apenas lamentei, depois, não poder ficar mais tempo “curtindo” bem aquele topo e as neves do Quilimanjaro, afinal, a razão primeira da minha adesão ao projecto desta aventura.
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