Faz hoje um ano que, tomando parte na aventura de cinco amigos e companheiros, cheguei ao topo do Kilimanjaro.
Temos tardado em pôr na forma, se calhar, de um livrinho, essa experiência extraordinária. Mas hoje, em jeito de comemoração, aqui deixo a forma que está a tomar o relato desse dia fantástico:
27 de Agosto de 2007, segunda-feira (9.º dia)
Programa proposto:
Day 9: Wake up very early, at around midnight, have some light tea with cookies, Start trekking to the summit, the Uhuru peak (5895m 8hours). Spend sometimes at the summit; Start descending to Barafu hut for lunch and some rest, then walk down to Mweka hut for dinner and overnight.
Dados da expedição para este dia:
· Ponto de partida: Barafu Hut (4600m)
· Ponto de chegada: Mweka Hut (3100m)
· Ponto máximo intermédio: Uhuru Peak (5895m)
· Progressão em altitude: 1295m; depois, descida de 2795m)
· Distância percorrida: 5km (até Uhuru Peak) + 12km
· Tempo de caminhada previsto: 7 horas + 5 horas (real: xxhxx)
Condições do dia:
· Nascer-do-sol: 06h06
· Temperatura: temperaturas negativas durante a subida (a água gelava nos tubos das bolsas de água)
· Condições de tempo: durante a subida a Uhuru Peak, noite muito fria, de céu limpo, praticamente lua cheia; sem vento. Durante a descida: céu com algumas nuvens, dia quente.
Nesta jornada decisiva, a hora de levantar calhou… na hora de deitar!... Às 23h30 do dia 26 estávamos prontos para a derradeira escalada. Bebemos um chá quente e partimos.
A jornada deste dia – dia 9
A partida, como combinado, foi (cronometricamente) à meia-noite. A Isabel saiu da tenda e foi despedir-se de nós e desejar-nos bom regresso. Não quisemos deixar de tirar uma fotografia, talvez esse registo pudesse deixar expresso o entusiasmo e o “nervoso miudinho” daquele momento.
Estava uma noite calma, de luar sem vento – uma bela noite!... - e, apesar do frio que se fazia sentir, a noite apresentava-se propícia à nossa actividade. A subida, bastante difícil foi-se fazendo muito, muito lentamente. Praticamente logo no início tivemos que vencer a dificuldade de um gigantesco rochedo, que testemunhava, na sua superfície lisa, as marcas da erosão pelos elementos do clima e também por muitos outros caminheiros antes de nós. Passámos depois a terreno pedregoso e com gravilha porosa e escorregadia. A progressão foi-se fazendo contornando as rochas, aqui e ali, traçando ziguezagues pela montanha acima.
Apesar do magnífico luar, íamos todos munidos de frontais e era visível o espectáculo das pequenas lanternas que, no escuro, à nossa frente e atrás, progrediam ao longo da montanha deslocando-se vagarosamente. A noite estava bela, mas, não obstante, não tínhamos a perspectiva dos espaços percorridos, nem das alturas a vencer. Por isso as pequenas lagartas serpenteantes de luzes frontais, que, atrás e à frente do grupo, desenhavam linhas brancas e amareladas sobre o fundo cinzento-escuro, adquiriram para nós uma importância vital: eram essas lagartas, feitas das luzes das lanternas frontais, que nos diziam de onde vínhamos e para onde seguiríamos.
À medida que subíamos, no constante passo lento e cadenciado, todos começámos a ser tomados pelo surgimento, primeiro, e agravamento, depois, dos sintomas do “mal de altitude”: náuseas, dores de cabeça, tonturas e uma certa sensação de desequilíbrio. Sentíamos mesmo que era fundamental conseguir evitar os movimentos corporais e respiratórios bruscos, e criar uma rotina ou automatismo individual de marcha, fosse ele a manutenção de uma passada cadenciada, como fez o Man’el; ou cantar para dentro, sempre e sempre, a mesma canção, como fez a Cristina. Estes "esquemas" funcionavam também como truques para que conseguíssemos não pensar na subida que ainda faltava, ou no que estava já para trás (que teríamos de voltar a percorrer, no regresso!...) e deixar a ascensão ir por si. Fomos parando, aqui e acolá, bebendo chá quente, que tinha sido trazido em thermos, por cada um de nós. Foi, na verdade, muito útil este chá, dado que a água dos “Camel back” mantinha-se em risco de gelar nos tubos que a traziam à boca. Depois de cada chupada de água, havia sempre que soprar a água que ficava no tubo para dentro do depósito, para que não gelasse completamente no tubo, e assim impedisse que se bebesse mais água. E o esforço de soprar bem a água de volta ao depósito fazia-se ressentir na disponibilidade física e respiratória de todos.
Cada paragem constituía-se num paradoxo: por um lado, era desejada por causa do cansaço que sentíamos; mas, em contrapartida, representava também um esforço suplementar a cada recomeço da caminhada.
A Cristina, desde muito cedo, sentiu que não suportava do peso da mochila e entregou-a ao Augusto, que seguia à sua frente. Tornou-se evidente que o Augusto – bem como o António – tinha observado, ao longo dos dias anteriores, o comportamento e as características de cada um dos elementos do grupo e agora tinha uma ideia clara do que poderia esperar de cada um de nós. Ele sabia que a Cristina teria de o seguir imediatamente na subida e, no nosso entender, foi notável a maneira como ele casou a sua passada com a passada da Cristina, durante toda a ascensão. A Cristina fez quase todo o trajecto de mão dada com este guia, que, silenciosamente quase, uma palavra aqui, outra ali, lhe ia orientando o caminho.
O Fernando, por volta dos 5200m, foi tomado por uma vontade de dormir terrível. Em cada paragem, parecia que ia finalmente fechar os olhos para um sono de horas. O guia António, sempre presente, sempre vigilante, sempre animado, aproximava-se dele e muito carinhosamente, mas também muito firmemente, pedia-lhe: - Fernando, please, don’t sleep!...[1] O Fernando olhava para ele, sorria ao António, dizia-lhe que estivesse descansado, mas a expressão dos olhos sonolentos dizia absolutamente o contrário. Tentava construir pensamentos que o enquadrassem ali de uma outra forma, com uma outra disponibilidade vigil, mas até o nome da montanha lhe falhava!... Ao pensamento, impunham-se os nomes Nicarágua, Aconcágua e outros… excepto Quilimanjaro!
O Luís, a cerca de um terço do final da subida, e por solicitação do guia António, entregou-lhe a mochila. Começava a ser visível algum desequilíbrio postural da sua parte e, por volta dos 5700m, teve um acesso de náusea violento e vomitou profusamente.
Finalmente, depois de uma noite de esforço tremendo, de sofrimento estranhamente indolor, chegamos ao Stella Point (5735mts), situado na orla do vulcão.
Os relógios marcavam 06h06. Que maior glória poderíamos nós querer naquela altura do que ali sermos recebidos e saudados pelo Astro Rei, que logo naquele instante nos presenteou e felicitou com a beleza espantosa da alvorada a romper a noite!?... Alvorada única e irrepetível. Como ninguém nunca antes tinha visto, nem alguma vez se verá. Claramente o Rei Sol esperou pelo grupo para magnificamente se mostrar, e meigamente fez guardar na memória futura de cada elemento do grupo o luar intenso que agora dava lugar ao brilho do sol, luar que, assim começámos a caminhar, connosco tinha ficado e nunca nos tinha deixado. Durante toda a ascensão, suavemente, o luar nos fora tocando pelas costas, montanha acima, incentivando-nos carinhosamente, passo a passo. É verdade... naquele momento, às seis horas e dez minutos do dia vinte e sete de agosto de dois mil e sete, estávamos já todos transformados em heróis escaladores pulsando miríades de emoções intensas!
Lembrando vivências pessoais dramáticas recentes, e claramente conscientes dos significados que pusera nesta expedição, o Fernando deixou que as suas emoções explodissem num choro de torrente selvagem, em que parecia querer, a cada lágrima soltada, limpar os olhos de maneira a que não perdesse pedacinho da beleza imensa à sua volta. A romântica Cristina também não resistiu à intensidade das emoções, depois que a subida praticamente a tivesse confrontado com o desafio do limite das suas forças físicas.
Bastou apenas que uma ou duas palavras de cada um deles os dois se encontrassem, e os olhares se espelhassem um no outro, para que o peito de ambos vibrasse convulsivamente, até à mais completa exaustão. Por razões diferentes, o feito já alcançado tinha um sabor de vitória pessoal muito especial.
A certeza bem gostosa de que faltava apenas o passo final levou-nos a pensar que dispunhamos agora de tempo interminável, o que fez com que ganhássemos vontade de preguiçar e ficar ali mais um bocadinho... e outro... e outro, fruindo a imensidão à volta. E tentámos o impossível: fixar em bits de informação fotográfica as cores, as luzes e o infinito espacial do nascer-do-sol que tão gentilmente aguardara que aparecêssemos para se mostrar.
De Stella Point até ao topo (Uhuru Peak) faltavam poucos metros para conquistar, de vez, o Kili. Poucos mas difíceis. E lentos. Obrigando ainda a um controlo pessoal muito rigoroso na gestão do esforço.
O avanço foi feito sobre gelo quebradiço nas partes mais finas, mas duro e bastante escorregadio noutras partes mais preenchidas. Quase todo o gelo que pisávamos desenhava covas de pés mais fundas que as marcadas na areia das praias, dificultando a progressão. Na areia, as marcas dos pés de outros modificam-se ao molde dos nossos pés, mas aqui, se as nossas botas não se moldam aos buracos rígidos onde pousam, corremos seriamente o risco de tropeçar e cair. Por outro lado, contávamos já com uma subida nocturna exigente, a mais exigente de todas. E havíamos atingido o máximo de rarefacção de oxigénio. Daí que os “poucos metros” que faltavam demoraram ainda mais duas horas a percorrer. Não valia a pena estragar a festa naquela altura. O nosso maior adversário naquele momento era a nossa própria euforia. De Stella Point a Uhuru Peak a altitude a vencer atinge quase os 200m.
Finalmente, o tecto de África (5895m). Às 08h42. Tirámos mais fotos para registar o feito para a posteridade. A esgotada carga da bateria viciada de uma pequena máquina de vídeo que levávamos connosco – bateria carregada praticamente uma semana antes, e que não resistiu àqueles dias de condições climatéricas exigentes – permitiu a gravação de minúsculos instantes, que agora podemos ver e ouvir (http://www.youtube.com/watch?v=Wr_lHKU3vc0) repetidamente. A paisagem era magnífica e pudemos finalmente contemplar as neves eternas do Kilimanjaro. O último vestígio de carga da bateria da máquina de filmar foi para elas.
[1] Ver capítulo sobre o “mal de altitude”, pág. xx.
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