domingo, maio 12, 2019

LIBERDADE OU DISSOLUÇÃO DOS COMPORTAMENTOS E DOS COSTUMES?

ESPLENDOR E SOMBRA SOBRE A EUROPA, 6/12

LIBERDADE OU DISSOLUÇÃO DOS COMPORTAMENTOS E DOS COSTUMES?

Depois de acabada a 2.ª Grande Guerra, imediatamente depois, Stefan Zweig volta para a Áustria. Escreveu ele: «De um ponto de vista lógico, tratou-se da maior insensatez que eu podia ter cometido após a derrota das armas alemãs e austríacas».
Que ambiente de vida social se foi, nessa altura, aos poucos, instalando na sociedade austríaca?
Ao lermos o seguinte trecho, que semelhanças encontramos com os tempos de hoje? Há exactamente 100 anos de diferença entre o tempo histórico de Stefan Zweig e o nosso:

[…] A grande, a sagrada promessa feita a milhões de pessoas, de que aquela guerra
Wandervogel Movement / Photo c. 1914
seria a última, essa promessa, à qual os soldados, já meio desiludidos, meio desesperados e extenuados, ainda tinham ido buscar a sua derradeira energia, foi cinicamente sacrificada aos interesses dos fabricantes de armamento e à paixão do jogo alimentado pelos políticos que souberam pôr triunfalmente a salvo, contra a exigência sábia e humana de Wilson, a sua desastrosa tática de acordos secretos e de conversações à porta fechada. Desde que tivesse os olhos bem abertos, todo o mundo via que tinha sido enganado. Enganadas as mães que sacrificaram os seus filhos, enganados os soldados que regressaram como pedintes, enganados todos os que tinham subscrito patrioticamente empréstimos de guerra, enganado quem confiara nas promessas do Estado, enganados nós que sonháramos com um mundo melhor e mais ordenado, e agora víamos que tinha recomeçado a jogatina do costume, na qual a nossa existência, a nossa felicidade, o nosso tempo, os nossos haveres eram lançados no pano verde, precisamente pelos mesmos ou por novos aventureiros. É então de admirar que uma geração inteira de jovens olhasse com rancor e desprezo para os seus pais, que começaram por deixar escapar a vitória e depois a paz? Que fizeram tudo mal, que nada previram e cujos cálculos saíram todos errados? Não era compreensível que toda e qualquer forma de respeito desaparecesse da nova geração? Uma juventude inteiramente nova já não acreditava nos pais, nos políticos, nos professores; qualquer determinação, qualquer proclamação de Estado era lida com olhar desconfiado. De uma penada, a geração do pós-guerra emancipou-se brutalmente de tudo quanto até aí fora válido e voltou as costas a todas as tradições, decidida a tomar em mãos o seu destino, longe do passado que ficara para trás e lançando-se para o futuro. Um mundo inteiramente novo, uma ordem inteiramente diferente deveria nascer com ela em todos os âmbitos de vida; e como é natural, o começo foi marcado por exageros descontrolados. Quem não fosse, ou tudo aquilo que não fosse da sua faixa etária era posto de lado. Em vez de viajarem com os pais, como dantes, os miúdos de onze, doze anos, rumavam pelo país fora até à Itália ou ao Mar do Norte, organizados em grupos designados de
Wandervögel(1) e perfeitamente esclarecidos sobre questões sexuais. Nas escolas organizaram-se conselhos de alunos de acordo com o modelo russo, que vigiavam os professores e o «plano de estudos», subvertendo-o, pois as crianças só deviam e só queriam aprender o que lhes agradasse. A revolta ocorria pelo simples prazer da revolta, contra as formas estabelecidas, até mesmo contra a vontade da natureza, contra a eterna polaridade dos sexos. As raparigas usavam o cabelo tão curto, à la garçonne, que não era possível distingui-las dos rapazes; por seu lado, os homens rapavam a barba para parecerem mais femininos; a homossexualidade e o lesbianismo tornaram-se numa grande moda, não por uma questão de inclinação natural, mas como protesto contra as formas tradicionais, legais, normais do amor. Todos os modos de expressão da existência se esforçavam por pôr em destaque o seu carácter radical e revolucionário, e claro que a arte não constituía excepção.»(2)
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(1) A tradução directa leva-nos a "aves migratórias". Arrisco "vagabundeadores".
(2) “O Mundo de Ontem, recordações de um europeu”, de Stefan Zweig (1942), publicado pela Assírio & Alvim, reimpressão de 2017, pp. 349-50. 

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