Estou a ler um livro que juntou cartas que José Régio escreveu ao pai e à mãe.
José Régio ao meio, ladeado por João Gaspar Simões e Branquinho da Fonseca |
As cartas que li até agora são cartas de evidente mansidão afectiva; e são sobriamente afectuosas.
Se mais nada soubermos do seu autor, as cartas que li (parecem faltar tantas de permeio!...) não fazem adivinhar a turbulência emocional e intelectual do autor do intenso Cântico Negro.
E salta-me lesta ao pensamento a pergunta: saberão os meus alunos que o Cântico Negro é escrito de juventude de José Régio?...
Ele tem 23 ou 24 anos quando é publicada a primeira edição de "Poemas de Deus e do Diabo", obra que contém o Cântico Negro. A generalidade das fontes diz que o livro apareceu em 1925, mas numa carta que escreve, em Coimbra, ao pai, no dia 4 de Fevereiro de 1926, José Maria diz: "«É-me impossível, no entanto, ir no dia 8, por causa do meu livro. A zincogravura do desenho demora mais do que se esperava, mesmo a composição das últimas páginas atrasou um pouco, e além disso não posso ir sem ter definitivamente resolvido o problema da sua exposição e venda.» (1) Será que é a carta que está mal datada?... (2)
Ora, se o livro é publicado contando José Maria essa idade, com que idade terá ele sido escrito?... Ainda com menos de 24 ou 23 anos!
Um dos aspectos fascinantes deste poema de juventude é a quantidade de gente da cultura, das artes e dos 'media' que querem mostrar-se publicamente na leitura do poema! Especialmente fascinantes, sobretudo porque não são jovens!... Que poder o poema tem!
Eis alguns, a que agora temos tão fácil acesso na Internet:
- Talvez o mais célebre - João Villaret
- Maria Bethânia
- Paulo Gracindo
- Marco d' Almeida
- José Régio, ele mesmo.
Gostava tanto que os meus alunos conhecessem o poema; e até que o soubessem recitar de cor! A força do poema faz bem a todos nós! E, mais do que nunca, os jovens têm olhos doces estendendo-lhes os braços seguros de que os jovens os ouvirão dizer "vem por aqui!" É verdade, o poema tem quase cem anos... Mas continuamos a reconhecer-nos na modernidade da sua linguagem, das suas imagens e das suas interrogações.
Aqui está o poema, tal como a gente ouve José Régio a lê-lo:
Cântico Negro
“Vem por aqui” – dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: “vem por aqui!”
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali…
A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
– Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos…
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: “vem por aqui!”?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí…
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois sereis vós
Que me dareis machados [impulso], ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?…
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos…
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios…
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios…
Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: “vem por aqui”!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou…
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
– Sei que não vou por aí!
(1) José Régio (2010). Correspondência Familiar, Cartas a Seus Pais, introdução e notas de António Ventura, Caleidoscópio, p. 101.
(2) Albano Martins, num trabalho publicado no Colóquio | Letras, da F.C.G., edição n.º 113/114 (Jan. 1990), p. 159, diz que a primeira apreciação crítica que conhece é de Fevereiro de 1926, de A Bibliográfica, de Póvoa de Varzim. Ou o livro é mesmo de 1925, ou A Bibliográfica de Fevereiro terá saído... depois de Fevereiro. A esclarecer.
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