MEMÓRIA DE UM SABOROSO ALMOÇO
Em Lisboa, nos Olivais Sul, no dia 31 de outubro de 2013
Estávamos satisfeitos – muito
satisfeitos mesmo! – quando nos sentámos à mesa do restaurante. Os trabalhos na
escola, durante a manhã, tinham corrido muito bem!
Optámos por ficar na esplanada, à
sombra. O tempo já não está muito convidativo para estas opções, mas na
frescura húmida da hora havia ainda uma réstia do calor sul-europeu para
saborear.
A escolha da comida foi fácil de
fazer, apontámos no cardápio as tradicionais febras e o bacalhau à Gomes de Sá.
A Marisa Matias, com a-propósito, trouxe a história da origem dos pastéis de
bacalhau. Pegando as azeitonas, falámos doutras coisas, no fundo, aperitivos
trocados entre gente que se sentia ali bem, naquela mesa, com a presença dos
outros convivas.
O almoço aconteceu como todos
queríamos que acontecesse: sem pressas e sem delongas demasiadas, com a
conversa a fluir tranquilamente entre coisas mais sérias, outras mais
pitorescas, outras ainda mais pessoais. “Ó
Marisa, se continua assim, vou dar o dito por não dito e, afinal, vou deixar
que algum dos meus alunos faça o trabalho monográfico consigo! Já disse agora
tanta coisa que não está no trabalho da Daniela do ano passado que dá para
fazer um trabalho novo inteirinho!...”
Repetiam-se risos entre garfadas;
repunha-se o vinho nos copos, sem nunca os encher, assim controlando qualquer
eventual excesso, que a boa disposição, quase disfórica, tornava tentador.
Também, por vezes, como já o dei a entender, franziam-se os rostos, o presente
e o futuro de Portugal e do Mundo não deixam ilusões de esperanças e
entusiasmos. O único caminho é a solidariedade empenhada, o resto… O resto tem
de trazer qualquer coisa de bom, não pode ser de outra maneira!
Sem que fosse intencionado ou
antecipado, quando o almoço caminhava já para o desenlace que todos os almoços
têm, emergiu um momento criado em efeito direto da ambiência afetiva que a
Marisa, a Ana, o Flávio, o Acúrcio e eu mesmo alimentávamos. Numa carinhosa cumplicidade
silenciosa, quase instintiva, entre os mais velhos, o Flávio recebeu,
convergindo em uníssono, os olhares de todos os seus companheiros de mesa: ele
nunca saiu de Portugal e naquele instante ele foi confrontado com a confirmada
possibilidade de o fazer – a Bruxelas, no final de janeiro de 2014, com alguns
parceiros da bela jornada da manhã. Foi um momento que nos deixou a todos
profundamente contentes!
Até que chegou o momento das
teimas de quem pagaria o almoço. O Acúrcio, o vizinho mais próximo destes
lugares, com outra cumplicidade – neste caso, a do empregado do restaurante –
levou, como de costume, a melhor.
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Enquanto o momento das contas
decorria, uma senhora – como nos habituámos, por tradição, dizer: uma velhinha
– aproximou-se da mesa. A Marisa e a Ana, uma dum lado da mesa e a outra do
outro lado, eram as que estavam do lado de fora, em mais imediato contacto com
o espaço público para lá da esplanada. A senhora idosa chegou-se à cabeceira da
mesa e exibiu numa pequena cesta de vime alguns produtos – uma ou duas embalagens
de chá e outras tantas de folhas de louro, um frasco de mel, e mais uma ou
outra coisa; no seu braço esquerdo, pendurados, alguns trabalhos, toscos, em lã
– pegas de cozinha, quase todos.
A senhora agarrou no pequeno
frasco de mel, exibiu-o-nos e perguntou se algum de nós queria comprar aquilo.
A Ana perguntou quanto custava e a senhora respondeu-lhe que era um euro. A
Marisa ficou logo igual à Ana: quer dizer, bem visivelmente, de coração tomado
por imensa ternura pela frágil senhora, senhora idosa sem oportunidade de
saborear o descanso que as imensas e bem cravadas rugas do rosto, a magreza de
ossos de toda a sua figura, a curva irremediável das suas costas, as largas
lentes dos óculos, e o sorriso que eu adivinhava perdido há muito, lhe outorgavam
em bem profunda humana legitimidade.
Com gestos cuidados, prudentes, a
Marisa e a Ana procuravam bondosamente “enganar” a senhora: os gestos, não
obstante cuidadosos, mostravam alguma atrapalhação, que, esperávamos todos nós,
a senhora não se apercebesse. As nossas companheiras de mesa queriam ajudar a
senhora, mas queriam fazê-lo respeitando, com a dignidade que a senhora, fosse
quem fosse, fossem quais fossem os pecados feitos durante uma vida visivelmente
longa, merecia; não queriam – não queríamos - que a coisa parecesse uma esmola
condoída dada a uma pobrezinha num ato de circunstancial e despachada piedade
humana.
Entre pôr moeda e tirar moeda,
ficaram duas moedas de 2 euros em cima da mesa para pagar o euro do frasco de
mel. “Fica assim…”, diziam a Ana e a
Marisa. A atrapalhação que as nossas companheiras de mesa não queriam denunciar
tornou-se agora bem nítida nos gestos e na voz da frágil senhora: olhava o frasco de
mel, as moedas postas em cima da mesa, abria e fechava a boca sem nada dizer e
sem alguma vez mudar a expressão séria e triste do rosto. Nós parámos,
suspensos, na expetativa do que iria dizer ou fazer. Quase gaguejou, a senhora,
mostrando-nos o cansado indicador da mão direita: “Falta um…” . A todos nós pareceu que aquele preço era bem mais
justo para aquele frasco de mel do que o euro pedido pela senhora. Respirámos
todos aliviados!... Enquanto, claramente satisfeitas, a Ana e a Marisa
respigavam mais moedas nas suas carteiras, a senhora perguntava se não queriam
comprar mais alguma coisa. Exibiu a embalagem da folha de louro, a do chá de
lúcia-lima, e ergueu o braço esquerdo para vermos bem as toscas pegas de lã.
Nesta altura, a toalha da mesa já mostrava pelo menos quatro moedas de 2 euros e uma moeda de 1 euro, só para,
“discretamente”, pagar o frasco de mel. A Ana perguntou à senhora quanto
custava o saquinho de folhas de louro. Era cinquenta cêntimos. A Ana puxa de
mais uma moeda, penso que de um euro, e estende-a para a senhora: “Olhe, fica assim…” A senhora, sempre
com os mesmos gestos lentos, sempre com o mesmo rosto que todos queríamos ver
abrir um pouco mais, devolvendo-nos um sorriso, por pequenino que fosse, a
dar-nos sinal de que estava a sentir-se bem – sorriso esse que nunca veio, a
velha senhora sabe que a vida vai continuar a ser dura para ela e vai continuar
a exigir-lhe esforço em vez de descanso -; a senhora, dizia eu, olhou as moedas
que estavam em cima da mesa, olhou a seguir a Ana e, com a firmeza que a
fragilidade da voz gasta da vida ainda lhe permitia, disse-lhe, abrindo a mão
solta, a mão direita, como o fazem as mãos francas: “A senhora já pagou, já não é mais nada…” E apontou à Ana as moedas em cima da mesa.
Eu fiquei com um nó na garganta,
e estou convencido de que ficámos todos. Levantámo-nos da mesa, a senhora recolheu
as moedas, agradeceu e seguiu o seu caminho. Ela sabe onde o caminho a vai
levar, não faltará muito tempo; e nós, que ali continuámos juntos, em saborosa
partilha, também bem sabíamos onde os tão exaustos e tristes passos que se
afastavam de nós naquele momento iriam chegar e finalmente deixar descansar as
pernas que sempre os conduziram.
Quais serão as condições de vida desta
idosa senhora?... O que é que a sociedade desenvolvida que ela ajudou a criar
lhe dá agora, ou melhor, lhe tem tirado e lhe tem negado? Os poderosos, a gente
sabe o que eles fazem quando é a hora deles darem ou tirarem às pessoas. Esta
senhora, massacrada pela vida – já o disse: sejam quais sejam os pecados que
tenha feito até hoje -, quando foi hora de ser ela a decidir, escolheu ser
honesta com o seu próximo, ali mesmo, quando a oportunidade de juntar mais uma
preciosa moeda para a sua sofrida sobrevivência era fácil, estava ali
escancarada à sua frente com a bondade discreta das senhoras deputadas; bondade
esforçadamente discreta mas traída pela abundância de moedas, que a própria
senhora percebeu estarem em exagero perante o valor dos objetos da rudimentar
troca comercial. Que sabem os senhores poderosos do Mundo desta senhora? Levaram-lhe,
e continuam a levar-lhe, todos os dias, a paz e o sossego que os carregados
anos de vida legitimam à senhora, a qualquer senhora desta idade; mas não conseguiram
levar-lhe a dignidade! Que exemplo!... Que lição!...
Que manhã, esta!... Tão cheia de
humanidade! Valeu o esforço que prepará-la? Valeu a viagem “louca” da Marisa e
da Ana, de Aveiro a Tomar; e de Tomar a Lisboa? Valeu o esforço do Flávio, que
juntou, com a sua disponibilidade, mais exigências às exigências que o seu
dia a dia de estudante lhe coloca? Valeu, sim senhor! São estas coisas que na
vida, nos encontros humanos, valem a pena!
Beijinho grande, de muita
gratidão, Marisa! Outro para a Ana! Um abraço, ao mesmo tempo paternal e
fraternal ao Flávio; à Daniela e ao Fábio! Ao mano Acúrcio, o abraço do
costume!
Confesso que já imaginei a
senhora descansando num leito quentinho e aconchegado; a fechar a olhos,
esfregando mansamente a cabeça contra a almofada para a fazer ao jeito das
curvas do seu rosto. Eu, debruçado sobre ela, ajeito-lhe o lençol e os
cobertores, faço-lhe uma festa na cabeça, digo-lhe “Bom descanso… Até amanhã…”, apago a luz e fecho devagarinho a
porta do quarto atrás de mim.
Comentário publicado pela minha amiga facebookiana Laura Seabra, no Facebook, no dia 3 de novembro de 2013:
ResponderEliminarFernando, a tua velhinha, com a descrição que fizeste, sei quem é, tenho uma coleção de sapatinhos de lã e pegas que lhe compro. Ela anda por aqui nos Olivais, na zona do mercado ao pé da policia, na zona do supermercado Dia, na porta traseira do Pingo Doce, etc. Já tentei tirá-la da rua. Falei com ela aí há 4 anos (ou mais) para a ajudar. Falei com a Cardeal Cerejeira para as refeições, centro de dia, etc. Depois de tudo ela não quis. A vontade dela é soberana. Ela quer ganhar dinheiro para ajudar o filho e a nora. O dinheiro é para eles. Não quer/ não pode estar em casa sossegada, quer "trabalhar" e leva o tempo todo de pé, à chuva e ao frio...