Num documentário que pude visionar no canal Odisseia, "Caravanas" - documentário com fotografia magnífica, mas, no meu entender, composição infeliz -, é extraordinário o modo como tomamos noção de que aqueles homens, os Tuaregues, concebem que a Vida está em tudo e antes de tudo; até do Verbo.
O moço protagonista da aventura no mítico, no colossal Ténéré (deserto, na língua tuaregue), parte pela primeira vez com o seu pai para a longa jornada, jornada essa que ficará registada em documentário vídeo, permitindo-nos tomar um pouco dela para nós mesmos. É, há neste trabalho cinematográfico planos de imagem que nos fazem sentir o calor do deserto e tudo o mais que pai e filho pensam e conversam.
Quando atingem as primeiras dunas, o pai diz ao filho que suba com ele até à mais alta, para que possa ver a imensidão que vai para lá do horizonte.
É nessa altura que acontece o momento extraordinário, que faz passar de uma geração para a seguinte o modo de sentir que o ancestral Povo a que pertencem foi tecendo na relação entre os homens, os outros animais e os elementos.
O pai poderia ter dito ao filho:
"Rabdoulah, meu querido filho, como podes ver com os teus próprios olhos, aqui não há nada; para encontrares alguma coisa que mostre a presença dos homens ou de alguma coisa com interesse, terás de vencer esta terra de nada e de ninguém."
Mas não. O pai, com o filho a beber-lhe as palavras, diz-lhe:
"Esta é a terra vazia, onde só o vento, a areia e o silêncio conseguiram sobreviver."
Extraordinário, este momento, já o escrevi! Não sei se a tradução das palavras do pai, que leio nas legendas do documentário, reproduz fielmente o que o pai disse ao filho. Tomemos a tradução como correta.
Este pai, que tem como missão levar o filho ao coração da cultura que recebeu dos seus ancestrais, mostra ao que se está fazendo homem que o deserto não é um espaço vazio, totalmente ausente de vida. Os elementos que ele enumera - o vento, a areia e o silêncio - são sobreviventes, isto é, são possuidores de vida. Nada mais sobrevive porque a terra está vazia; mas, ao insuflar a ideia de vida ao vento, à areia e ao silêncio, o sujeito transmissor de cultura admite que o que não está lá agora pode já lá ter estado, ou pode vir a estar lá. Esta crença na presença da Vida é que é o elemento essencial daquele momento precioso de Cultura. O que poderia ter sido dito como uma resignação é dito como uma esperança, um alento; no lugar do dramatismo derrotista deixa a esperança estimulante.
No final do documentário, pai e filho regressam ao "refúgio das montanhas". Mas depois de descansar, contar as histórias da sua aventura e de voltar a brincar com os seus amigos, o jovem tuaregue, que passou a sentir o vento, a areia e o silêncio de outro modo, deixa-se levar na imaginação, preso à magia do deserto, do Ténéré, e descobre que o desejo de a ele voltar passou a fazer parte dele.
Que pai fantástico este, que mostra ao filho como é o Mundo, como há que sonhá-lo; e, pelo seu exemplo, como enfrentá-lo!
(Considero a composição do documentário infeliz porque os seus autores, tanto tentaram fazer um paralelo constante entre duas caravanas, entre duas aventuras diferentes, que acabaram por prejudicar a assimilação da dinâmica cultural complexa, humanamente muito exigente de ambas)