A lição dos amigos
O Luís, sim, esse, o que se sentia no fundo do poço e a irmã desafiou a cavar ainda mais fundo, tem 3 filhos. Um deles é um rapazinho.
O breu do poço de onde o Luís saiu a pulso firme deu lugar à luz franca dos horizontes abertos; do trabalho e das relações pessoais positivas. A vida do jovem e integrado cidadão ganhou consistência, a pressão que quase impedia o fôlego deu espaço à folga que permitia o suspiro tranquilo.
O pai e a mãe do filho do Luís, num dia que a tradição diz que é de prendas para os miúdos – seria natal do Menino Jesus, ou natal do menino do Luís, não importa qual seria –, sentiam-se em condições de ir um pouco mais além na sofisticação do presente para o filho de ambos. Dois presentes, um do pai e um da mãe. Duas ideias, também, sobre o filho, uma do pai e outra da mãe. Dois objetivos também; sem querer, de boa-fé, ambos prendiam o filho ao brinquedo que ousavam para o filho, ambos arriscando a disponibilidade financeira da família. Mas o futuro era risonho e promissor; agora, nem uma réstia do breu difícil de tempos que se distanciavam cada vez mais.
Ignorando-se reciprocamente a início, num quase divertido jogo das escondidas, os brinquedos do pai e da mãe disputavam o filho:
a mãe escolheu um daqueles aparelhos modernos, sofisticados, de comandos à medida dos dedos ágeis infantis, que prendem as crianças, em casa, ao ecrã de televisão ou do computador;
o pai desafiou-se num pagamento a prestações, e comprou uma motoreta de quinhentos euros, que poria o filho na rua.
Estão todos juntos, é hora de os pais darem os presentes e do filho os desembrulhar.
A reacção do rapazinho ao presente do pai deixará adivinhar a reacção ao presente da mãe. O pai olha o filho, com ansiosa expetativa, enquanto ele desembrulha o presente. Sente-se bem, feliz de ter conquistado as condições para poder dar ao filho que tanto amava um brinquedo que simboliza a vida tomada nas mãos com algum desafogo. O jovem pai antecipa a alegria exuberante do filho, só não sabe se ele vai saltar primeiro para o selim da motoreta ou para o colo do pai.
Na hora de uma ou outra coisa acontecer, prenda completamente desembrulhada, o filho não faz uma coisa, nem a outra. O rapazinho mira quase indolentemente o magnífico presente.
Agora ansioso por outra razão, o pai pergunta ao filho:
- Então, filho, não gostas da mota?...
O miúdo tenta não desapontar o pai, mas também não consegue sentir, nem sequer fingir a alegria que o pai quer que ele mostre.
- Eu gosto, pai…
- Então, parece que não ficaste muito entusiasmado… insiste o pai, sem conseguir ver-se aliviado daquela ansiedade, à beira de se tornar numa deceção inesperada e indesejada.
O filho vira-se para o pai e, com a serenidade que expõe a sólida confiança e franqueza a que a educação dos pais levara já a personalidade em formação do filho, olha-o e diz-lhe:
- Ó pai, a mota é gira, mas não dá para o que eu quero…
- E o que é que tu queres, filho?... estranha o ansioso pai.
- É que a mota não dá para eu brincar com os meus amigos, pai… A mota é para eu brincar sozinho, só dá para um, e eu quero brincar com os meus amigos.
É isto a vida, é isto essa coisa extraordinária que é as relações que as pessoas são capazes de estabelecer umas com as outras. Este filho, com este sentir, sim, ele é que acaba sendo o verdadeiro presente – do filho para os pais, que – coitados! – tanto amor e tanto risco de si mesmos tinham posto nos presentes de valor que queriam dar ao filho.
Quanto vale, quanto custa, em dinheiro, o sentir espontâneo da amizade, do companheirismo, numa criança da idade do filho do Luís? Quanto mostra esta genuína forma de sentir do amor e dos valores recebidos pelo filho dos seus pais?
Numa perceção vertiginosa, o pai reviu as vicissitudes da sua própria vida, os afetos, as cumplicidades e os conflitos que o aproximaram e o afastaram dos outros, os amigos e a sociedade.
O Luís e a mãe do seu filho, o filho de ambos, seguramente se tornaram melhores pais, melhores pessoas a partir deste dia. E mimaram com redobrado carinho este filho precioso.
Quem, com esta história - história verdadeira - não ficará a pensar sobre os presentes que já deu, que gostaria de dar e que vale a pena dar?
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