domingo, dezembro 30, 2012
Mensagem de Ano Novo 2013 (no fundo, dá para qualquer ano...)
Bem, depois desta receita, o que fica, realmente, de importante para dizer?...
RECEITA DE ANO NOVO, de Carlos Drummond de Andrade
Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)
Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.
Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.
quarta-feira, dezembro 26, 2012
2013 - Ano Europeu dos Cidadãos
http://ec.europa.eu/portugal/comissao/destaques/20110817_2013_ ano_europeu_cidadaos_pt.htm |
2013, antecipado em 2012, quer trazer importância e valor à cidadania europeia - que bem precisados andamos, não obstante o recente Prémio Nobel da Paz.
Hoje fui adquirir o sempre muito interessante calendário "Celebração do Tempo", das Edições Paulinas, que recomendo vivamente.
Na capa, os editores condensam numa só duas afirmações de São Paulo, extraídas de duas das suas cartas, que agora aqui reproduzo integralmente, de acordo com a Bíblia de Jerusalém (Paulus, 2002):
- (...) Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher;pois todos vós sois um só em Cristo Jesus. (...) (Epístola aos Gálatas, 3, 28)
- (...) Vós não vos desvestistes do homem velho com as suas práticas e vos revestistes do novo, que se renova para o conhecimento segundo a imagem do seu Criador. Aí não há mais grego e judeu, circunciso e incircunciso, bárbaro, cita, escravo, livre mas Cristo é tudo em todos. (...) (Epístola aos Colossenses, 3, 10-11)
NOTA: Ver aqui (http://www.paulinas.pt/livro_detail.asp?idlvr=1268) a apresentação do "Celebração do Tempo", que - repito - recomendo vivamente!
terça-feira, dezembro 25, 2012
O Pai Natal usa brincos!
Contou a minha comadre que uma das filhas, em pequenina, vivia intensamente a Noite de Natal, os Presentes e, claro, acima de tudo, o Pai Natal.
http://4.bp.blogspot.com/-VswD1QohWCg/UJw9nJbFMoI/ AAAAAAAAHYQ/kq8Z-OaQ9rY/s1600/Slide1.JPG |
A menina atropelava, com toda a pressa, pormenores da figura do Pai Natal, do que ele disse, do que ele fez. A determinada altura, na descrição do Velho de Barbas Brancas, a pequenita olhou a mãe, de um e do outro lado da face, e sem interromper o caudal do seu relato, disse, olhando-a agora nos olhos: "... ele, mãe, tinha uns brincos iguais a esses que tu tens agora..." Depois, continuou a debitar pormenores, enquanto a mãe tentava recuperar, sem se dar por descoberta, do abalo que o delicioso pormenor do discurso da filha lhe causara.
Que coisa bonita!... Esta menina, certamente muito inteligente, arranjou uma maneira de proteger a fantasia excitante, saborosa, que ela gosta de experimentar - e que a mãe também gosta de viver! E, implicitamente, muito diplomaticamente, diz a si própria - e diz à mãe! - que a sua perceção da realidade é correta, se mantém íntegra e que, por sua livre decisão, opta por se deixar levar na "mentira" dos pais e avós porque lhe sabe muito bem a história e a fantasia, sobretudo naquela ambiência familiar em que todos se acarinham e aconchegam uns aos outros.
Por isso, e sem querer esgotar - ou sequer, discutir - o assunto, enquanto psicólogo, aconselharei a que, diga-se o que se diga sobre o Menino Jesus e o Pai Natal, ou diga-se o que se disser para os negar na celebração do Natal, o mais grave ou condenável é ofender a inteligência e o bom juízo percetivo das crianças. Negar rigidamente o que a criança consegue ver ou percecionar é deturpar-lhe a capacidade de observar e entender a realidade que a envolve; e fazer opções, de acordo com as suas motivações e valores. Se a criança quer brincar ao "frisson" da Noite do Pai Natal, porque não deixá-la?... Este tipo de fantasias não afastam as crianças para muitos fantásticos e irreais; pelo contrário, podem ser bons instrumentos para a ajudarem a envolver-se mais ativamente na sua cultura de pertença e a ser mais tolerante com culturas diferentes da sua.
O NATAL NA PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL
O PRIMEIRO NATAL NA PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL.
Agradeço ao meu amigo Luís Bettencout Moniz a partilha desta fotografia espantosa |
Agradeço à minha colega Sofia Barros a partilha desta fotografia |
Este acontecimento é recordado numa das mais recentes edições da Times, que junta mais 9 ocorrências invulgares da época natalícia.
http://www.time.com/time/specials/packages/article/0,28804,1868506_1868508_1868515,00.html
http://www.time.com/time/specials/packages/article/0,28804,1868506_1868508_1868515,00.html
terça-feira, novembro 06, 2012
Cheira a chulé - realidade ou ficção?
1) Às 13h30, ou melhor, alguns minutos depois dessa hora, eu estou "refugiado" na sala do Departamento das Ciências Sociais e Humanas da minha escola. Estou lá "refugiado" porque acabei de dar as aulas da manhã, tenho a cabeça tensa de tanta coisa para fazer - a viagem a Estrasburgo, ao Parlamento Europeu está aí a rebentar, estamos a "safar" as coisas de última hora -, e a sala de professores fervilha de colegas professores que, como eu, procuram descomprimir do primeiro meio-dia de trabalho. Vou aqui sorver em um trago, como diria o patrono da escola, "um apressado almoço".
2) Sem que eu as veja e sem que elas me vejam, algumas jovens (são, na verdade, várias, pelas vozes que se sobrepõem umas às outras) protestam junto da funcionária do pavilhão por causa do cheiro a chulé da sala onde acabam de entrar para ter aula. Dizem que é impossível estar lá com aquele cheiro.
3) A funcionária, solícita e paciente, procura justificar-lhes a situação, e, ao mesmo tempo, percorre com o olhar a sala de professores - mais uma vez deduzo eu isto pelas vozes e sons de proximidade, eu não estou a olhar para elas - à procura da docente que pode ter estado a dar aula na sala malcheirosa no bloco de aulas que aconteceu imediatamente antes do deste grupo de alunas.
4) A minha colega vem à porta da sala de professores, toma conta da ocorrência, as alunas dizem-lhe o que tinham já dito à funcionária; eu oiço a minha colega justificar-se também às alunas, oiço-a, por exemplo, perguntar às alunas se será mesmo a chulé já que na aulas estavam todos calçados.
5) O som das vozes e dos passos afasta-se; discretamente levanto-me e vou espreitar a sala: ainda ninguém tinha aberto as janelas da sala, ainda ninguém pusera a sala a arejar.
6) Deixo-me ficar a pensar... Os alunos aprendem a reclamar os seus direitos (têm legitimamente direito a uma sala de aula que, no mínimo, esteja isenta de odores corporais desagradáveis); os professores reconhecem respeitam e fazem a pedagogia dos direitos dos alunos; os funcionários procuram ajudar os alunos e facilitar a vida dos professores. Mas, verdadeiramente, ninguém tomou a iniciativa clara de resolver imediatamente o problema como era preciso ele ser resolvido.
7) Que educação é esta que está a acontecer? Será que é isto que tanto depois se critica ao chamado "Estado Providência"? Que temos o direito de esperar que alguém resolva seja o que seja por nós?
8) Será que isto aconteceu mesmo? Ou isto é uma ficção que construí num momento de descompressão da exaustão ao final da manhã de aulas, numa sequências de dias a fio - fim de semana incluído - de trabalho intenso? Na verdade, apuro o ouvido: lá em baixo as coisas estão calmas, a porta da sala está fechada. Será que cheirava mesmo a chulé na sala de aula?
2) Sem que eu as veja e sem que elas me vejam, algumas jovens (são, na verdade, várias, pelas vozes que se sobrepõem umas às outras) protestam junto da funcionária do pavilhão por causa do cheiro a chulé da sala onde acabam de entrar para ter aula. Dizem que é impossível estar lá com aquele cheiro.
3) A funcionária, solícita e paciente, procura justificar-lhes a situação, e, ao mesmo tempo, percorre com o olhar a sala de professores - mais uma vez deduzo eu isto pelas vozes e sons de proximidade, eu não estou a olhar para elas - à procura da docente que pode ter estado a dar aula na sala malcheirosa no bloco de aulas que aconteceu imediatamente antes do deste grupo de alunas.
4) A minha colega vem à porta da sala de professores, toma conta da ocorrência, as alunas dizem-lhe o que tinham já dito à funcionária; eu oiço a minha colega justificar-se também às alunas, oiço-a, por exemplo, perguntar às alunas se será mesmo a chulé já que na aulas estavam todos calçados.
5) O som das vozes e dos passos afasta-se; discretamente levanto-me e vou espreitar a sala: ainda ninguém tinha aberto as janelas da sala, ainda ninguém pusera a sala a arejar.
6) Deixo-me ficar a pensar... Os alunos aprendem a reclamar os seus direitos (têm legitimamente direito a uma sala de aula que, no mínimo, esteja isenta de odores corporais desagradáveis); os professores reconhecem respeitam e fazem a pedagogia dos direitos dos alunos; os funcionários procuram ajudar os alunos e facilitar a vida dos professores. Mas, verdadeiramente, ninguém tomou a iniciativa clara de resolver imediatamente o problema como era preciso ele ser resolvido.
7) Que educação é esta que está a acontecer? Será que é isto que tanto depois se critica ao chamado "Estado Providência"? Que temos o direito de esperar que alguém resolva seja o que seja por nós?
8) Será que isto aconteceu mesmo? Ou isto é uma ficção que construí num momento de descompressão da exaustão ao final da manhã de aulas, numa sequências de dias a fio - fim de semana incluído - de trabalho intenso? Na verdade, apuro o ouvido: lá em baixo as coisas estão calmas, a porta da sala está fechada. Será que cheirava mesmo a chulé na sala de aula?
domingo, novembro 04, 2012
IDOSOS, ÉTICA E REFORMA
IDOSOS, ÉTICA E REFORMA
por Frei Bento Domingues, O.P.
(jornal Público, edição de 4nov12, caderno Opinião)
1 Vivemos numa sociedade paradoxal: por um lado, alegramo-nos com o aumento da esperança de vida; por outro, os idosos são acusados de levar muito tempo a morrer. Gastam, não produzem e ainda se sentem no direito a receber uma reforma ou uma pensão dignas. Mas os casais novos também não escapam à censura: são responsáveis por sermos um país de velhos. Tinham obrigação de ter mais filhos. Como são egoístas, não se importam. Diz-se que lá virá o dia em que também eles verão as consequências desta falta de previdência.
Mais do que paradoxal, é niilista: não aguenta nem os idosos nem os novos. Se há queixas contra os idosos, os novos estão a ser preparados para nada. Diz-se que Portugal perde 2,7 mil milhões por causa de jovens inactivos. A grande alternativa parece ser a emigração, que não é um crime, mas esses jovens foram educados em Portugal e vão-se embora, sem pensar em ajudar quem por eles se sacrificou. Quando uma sociedade deixa de ser sujeito do seu destino e passa a ser objecto de contabilidade, não se vê possibilidades de acerto. As pessoas queixam-se de serem exploradas pelo Estado e o Estado diz que elas estão a ficar muito caras. Sentem-se todos prejudicados.
A nossa sociedade talvez não seja nem paradoxal nem niilista. Parece irreflectida.
Pensar em termos simplistas, como os que acabei de evocar, é o modo mais habitual de funcionar com os estereótipos, muito facilitados com a redução de tudo a números. Levou-se muito tempo a pensar em termos de deveres e direitos humanos, deveres e direitos de pessoas, sujeitos de dignidade. Agora, a propósito de tudo e de nada, só se pergunta quanto se perde e quanto se ganha. É um jogo de abstracções. As abstracções não choram, não riem, nem protestam. Uma boa máquina de calcular tornou-se o supremo órgão do pensamento. Os cursos de filosofia, de literatura, de teatro, de cinema, de música são artes de empobrecer alegremente, salvo casos geniais, que se descobrem, sobretudo, depois de mortos.
2. Para I. Kant, o ser humano não tem preço, tem dignidade. Nunca deverá ser um meio. É sempre um fim. Nas sociedades pluralistas em que vivemos, se os imperativos éticos não forem incondicionais, se a moral não tiver uma justificação, uma fundamentação, estas não serão pluralistas, mas relativistas, pois não haverá distinção entre bem e mal, tudo será aceitável - "vale tudo" -, basta que corresponda às tendências actuais, aos desejos de cada um, à moda. A pura actualidade sem horizonte, dominada pelo corropio das notícias, sem referência a uma orientação de longo alcance, tende a considerar tudo provisório, com medo do império de falsos absolutos. Será uma época que tem cada vez mais recursos, mas também um tempo de "meios sem fins".
As propostas éticas - que não sejam a sua negação - estão todas inseridas numa tradição. Procuram interlocutores na história.
Paul Ricoeur, sem juramentos de fidelidade ortodoxa a nenhuma delas, situou-se na confluência das tradições aristotélica e kantiana. Apresentou, várias vezes, o seu programa, da forma mais sintética: "A ética tem como objectivo a vida boa, com e para os outros, em instituições justas."
Como diz A.-J. Festugière, a norma para o grego não é "tu deves" (como é para Kant), mas "tu podes" ser humano, podes ser feliz.
Onde está o fundamento ético da reforma? Encontra-se na historicidade da condição humana. Não somos, vamos sendo. Importa que em todas as idades da vida, possamos contar com previdências e providências pessoais, comunitárias e sociais, para quando já não tivermos condições para cuidar de nós e dos outros.
Numa civilização pragmatista, os idosos não valem, estorvam; estão fora de prazo de validade. Paradoxo: caímos numa sociedade de idosos sem saber o que fazer com eles. Mas os reformados não podem ser indesejados e arrumados a um canto, à espera da morte, com medo ou como alívio.
3. Na chamada 3.ª idade reproduzem-se todos os aspectos da vida. Os idosos podem ser acarinhados ou maltratados, considerar-se indispensáveis ou a mais. Com a reforma - cuja idade pode variar - cessa a vida profissional, mas não acaba uma competência desenvolvida ao longo da vida. Deverá ter oportunidade de servir a comunidade, de fazer voluntariado, onde puder e quiser. Os idosos têm muito para dar, mas precisam de quem mostre alegria em receber.
Diz-se que já não produzem, mas quem contabiliza o que eles representam na família e na sociedade? A vida humana só se conta em euros? Fundamental é a sabedoria, mas quem sabe o seu preço?
Os idosos foram, em todas as culturas, considerados a sua memória viva. Fazem falta aos gestores de hoje. Os bons conselheiros não são, apenas, as pessoas de grande competência técnica. Sem sabedoria deita-se a perder o que ilusoriamente se ganhou.
Como escreveu Catarina Nunes, "um dia o mundo será um grande lugar onde ninguém é visto como velho, mas como alguém mais adiantado na jornada da vida". A isto se poderá chamar solidariedade entre gerações.
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sábado, novembro 03, 2012
O Acordo Ortográfico e a tradução para português
Arrogo para mim a boa fé de aceitar escrever em acordo com o tão polémico Acordo Ortográfico (1). A ver o que ele dá, até porque, enquanto psicólogo, sempre tenho defendido que a lógica da escrita se deve aproximar da lógica da fala e da lógica do pensamento. Está já experimentalmente demonstrada a importância dessa aproximação, por exemplo, com o estudo das línguas orientais e as facilidades que essas línguas naturalmente proporcionam nas aprendizagens escolares fundamentais.
Começamos a dispor de tempo de experiência para avaliar a lógica, a eficácia e valor do Acordo Ortográfico. Começo a pensar que o saldo é desfavorável às alterações oficiais na escrita do português
A este propósito, gostei muito de ler, no passado domingo, dia 28 de outubro, o artigo de Paula Blank, "O Acordo Ortográfico e a tradução para português", publicado, sob o signo do "Debate Língua Portuguesa", na edição do Público (pág. 56).
Tomo a liberdade de transcrever para aqui esse artigo:
O meu trabalho consiste, em suma, na revisão de traduções do Inglês para o Português de manuais de instruções e interfaces do utilizador de equipamento médico. Vai desde a simples maca de exames utilizada nos consultórios médicos ao ventilador de cuidados intensivos ou desfibrilador cardíaco, de cujo correcto funcionamento e utilização dependem as vidas de tantos doentes por este país fora. Dependendo de o fabricante ser europeu ou americano, as traduções são produzidas – em geral – para Português de Portugal ou do Brasil, respectivamente. Por conseguinte, quando importamos da Europa, geralmente, repito, não há problema de maior; contudo, ao comprar equipamento nos EUA e com a globalização, consequentes fusões de companhias e migração de quadros pelo mundo inteiro, a situação complicou-se.
O que me chega às mãos está 90% das vezes muito longe do nível de qualidade que seria de esperar para qualquer tradução, quanto mais para traduções nesta área. Os exemplos são infindáveis, mas escolhi um que servirá para demonstrar aquilo de que falo. Na tradução do manual de um ventilador, feita por um tradutor brasileiro, lê-se:
“Usar o ventilador de maneira diferente como foi instruída pode causar danos ao digitalizar de RM.”
Uma tradução correcta do original em Inglês poderia ser assim:
“A utilização do ventilador de maneira diferente da que foi indicada nas instruções, pode causar danos ao aparelho de RM (ressonância magnética).”
Em praticamente todos os manuais traduzidos para Português do Brasil, e também no deste exemplo, chama-se “vazamento” a fuga, “cabo de força” a cabo de alimentação, “tela” a ecrã, “plugue” a ficha (um “plugue” que se “pluga”, do verbo “plugar”), “jack” a tomada, “leiaute” a disposição, “acurácia” a precisão, diz-se que a impressora “está aquecendo”, que “você tem de acessar isso” (aceder) ou “você deve apertar aquilo” (pressionar), os verbos reflexivos são conjugados ao contrário (“isso se faz assim” em vez de “isso faz-se assim”), etc.
O manual de um dispositivo de suporte de vida chega a ter 300-400 páginas e o deste exemplo era uma tradução que estava autorizada, em utilização em Portugal, e que só foi corrigida (1) quando o fabricante passou a fazer parte da gama de comercialização de certa empresa e (2) porque, depois de muita argumentação, o fabricante acabou por concordar em produzir uma versão em Português de Portugal.
Peço-vos que voltem a ler os exemplos apresentados. Não verão uma só instância de diferença ortográfica, o que prova a futilidade do esforço (inútil porque não o consegue) de uniformização ortográfica. A maioria dos manuais traduzidos no Brasil que eu revi estão escritos assim e, provavelmente, no Brasil até são textos perfeitamente aceitáveis, não sei, nem discuto. Mas em Portugal não. As traduções utilizadas em Portugal têm forçosamente que ser feitas por tradutores portugueses, em Português de Portugal, para que se possam cumprir os critérios exigíveis. E isso não basta, é preciso que o tradutor preencha outros critérios técnicos específicos, cuja discussão ficará para outra altura.
Contudo, há uma batalha contínua para que os dispositivos comercializados sejam acompanhados de instruções adequadas. A realidade é que os fabricantes pressionam os distribuidores portugueses a utilizar as traduções brasileiras em Portugal. Os argumentos são sempre os mesmos: (1) só se produz uma versão em Português e, dado que o Brasil é um mercado maior, a versão a produzir será em Pt-Br ou (2) temos que reduzir custos, por isso há que anular uma das versões em Português; o Brasil é um mercado maior, portanto eliminamos a versão Pt-Pt. Ponto final. Contra-argumentar dizendo que a sintaxe e a terminologia não são aceitáveis para textos que se destinam a profissionais clínicos, que os erros podem provocar acidentes de proporções mais ou menos sérias, é por regra inútil. Algumas vezes, felizmente, o esforço de argumentação é recompensado, e os médicos e enfermeiros em Portugal podem usufruir do privilégio de ler as instruções do dispositivo médico, que adquiriram em Portugal, num Português de fácil e natural compreensão. Sim, aquilo que devia ser um direito, que está previsto numa directiva europeia, que, por sua vez, foi transferida para a lei portuguesa, é no fundo, um privilégio. Quase um favor.
É, portanto, com profunda consternação que vemos o Governo português, que devia defender os nossos interesses, assinar um Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, que (defendem alguns) visa unificar a ortografia e resolver todas as diferenças entre ambos os registos do Português.
O Acordo Ortográfico, ao criar esta falsa noção de uniformidade, extremamente nefasta para o Português-padrão, tem um resultado terrível para a tradução, porque enche o mercado português de instruções que quanto mais técnicas, mais incompreensíveis são.
Mas ainda podemos inverter este erro colossal, assinando a Iniciativa Legislativa de Cidadãos. Para saber como assinar e ficar a saber mais pormenores, por favor, visite o portal http://ilcao.cedilha.net/.
(1) Além disso, sou professor do ensino secundário, condição que me obriga a escrever de acordo com o AO. Faço-o sempre desejando que os meus alunos desenvolvam a capacidade crítica para apreciarem as diferenças entre a escrita que faziam e a que fazem agora; e tomem depois a sua opção.
Começamos a dispor de tempo de experiência para avaliar a lógica, a eficácia e valor do Acordo Ortográfico. Começo a pensar que o saldo é desfavorável às alterações oficiais na escrita do português
A este propósito, gostei muito de ler, no passado domingo, dia 28 de outubro, o artigo de Paula Blank, "O Acordo Ortográfico e a tradução para português", publicado, sob o signo do "Debate Língua Portuguesa", na edição do Público (pág. 56).
Tomo a liberdade de transcrever para aqui esse artigo:
O meu trabalho consiste, em suma, na revisão de traduções do Inglês para o Português de manuais de instruções e interfaces do utilizador de equipamento médico. Vai desde a simples maca de exames utilizada nos consultórios médicos ao ventilador de cuidados intensivos ou desfibrilador cardíaco, de cujo correcto funcionamento e utilização dependem as vidas de tantos doentes por este país fora. Dependendo de o fabricante ser europeu ou americano, as traduções são produzidas – em geral – para Português de Portugal ou do Brasil, respectivamente. Por conseguinte, quando importamos da Europa, geralmente, repito, não há problema de maior; contudo, ao comprar equipamento nos EUA e com a globalização, consequentes fusões de companhias e migração de quadros pelo mundo inteiro, a situação complicou-se.
O que me chega às mãos está 90% das vezes muito longe do nível de qualidade que seria de esperar para qualquer tradução, quanto mais para traduções nesta área. Os exemplos são infindáveis, mas escolhi um que servirá para demonstrar aquilo de que falo. Na tradução do manual de um ventilador, feita por um tradutor brasileiro, lê-se:
“Usar o ventilador de maneira diferente como foi instruída pode causar danos ao digitalizar de RM.”
Uma tradução correcta do original em Inglês poderia ser assim:
“A utilização do ventilador de maneira diferente da que foi indicada nas instruções, pode causar danos ao aparelho de RM (ressonância magnética).”
Em praticamente todos os manuais traduzidos para Português do Brasil, e também no deste exemplo, chama-se “vazamento” a fuga, “cabo de força” a cabo de alimentação, “tela” a ecrã, “plugue” a ficha (um “plugue” que se “pluga”, do verbo “plugar”), “jack” a tomada, “leiaute” a disposição, “acurácia” a precisão, diz-se que a impressora “está aquecendo”, que “você tem de acessar isso” (aceder) ou “você deve apertar aquilo” (pressionar), os verbos reflexivos são conjugados ao contrário (“isso se faz assim” em vez de “isso faz-se assim”), etc.
O manual de um dispositivo de suporte de vida chega a ter 300-400 páginas e o deste exemplo era uma tradução que estava autorizada, em utilização em Portugal, e que só foi corrigida (1) quando o fabricante passou a fazer parte da gama de comercialização de certa empresa e (2) porque, depois de muita argumentação, o fabricante acabou por concordar em produzir uma versão em Português de Portugal.
Peço-vos que voltem a ler os exemplos apresentados. Não verão uma só instância de diferença ortográfica, o que prova a futilidade do esforço (inútil porque não o consegue) de uniformização ortográfica. A maioria dos manuais traduzidos no Brasil que eu revi estão escritos assim e, provavelmente, no Brasil até são textos perfeitamente aceitáveis, não sei, nem discuto. Mas em Portugal não. As traduções utilizadas em Portugal têm forçosamente que ser feitas por tradutores portugueses, em Português de Portugal, para que se possam cumprir os critérios exigíveis. E isso não basta, é preciso que o tradutor preencha outros critérios técnicos específicos, cuja discussão ficará para outra altura.
Contudo, há uma batalha contínua para que os dispositivos comercializados sejam acompanhados de instruções adequadas. A realidade é que os fabricantes pressionam os distribuidores portugueses a utilizar as traduções brasileiras em Portugal. Os argumentos são sempre os mesmos: (1) só se produz uma versão em Português e, dado que o Brasil é um mercado maior, a versão a produzir será em Pt-Br ou (2) temos que reduzir custos, por isso há que anular uma das versões em Português; o Brasil é um mercado maior, portanto eliminamos a versão Pt-Pt. Ponto final. Contra-argumentar dizendo que a sintaxe e a terminologia não são aceitáveis para textos que se destinam a profissionais clínicos, que os erros podem provocar acidentes de proporções mais ou menos sérias, é por regra inútil. Algumas vezes, felizmente, o esforço de argumentação é recompensado, e os médicos e enfermeiros em Portugal podem usufruir do privilégio de ler as instruções do dispositivo médico, que adquiriram em Portugal, num Português de fácil e natural compreensão. Sim, aquilo que devia ser um direito, que está previsto numa directiva europeia, que, por sua vez, foi transferida para a lei portuguesa, é no fundo, um privilégio. Quase um favor.
É, portanto, com profunda consternação que vemos o Governo português, que devia defender os nossos interesses, assinar um Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, que (defendem alguns) visa unificar a ortografia e resolver todas as diferenças entre ambos os registos do Português.
O Acordo Ortográfico, ao criar esta falsa noção de uniformidade, extremamente nefasta para o Português-padrão, tem um resultado terrível para a tradução, porque enche o mercado português de instruções que quanto mais técnicas, mais incompreensíveis são.
Mas ainda podemos inverter este erro colossal, assinando a Iniciativa Legislativa de Cidadãos. Para saber como assinar e ficar a saber mais pormenores, por favor, visite o portal http://ilcao.cedilha.net/.
(1) Além disso, sou professor do ensino secundário, condição que me obriga a escrever de acordo com o AO. Faço-o sempre desejando que os meus alunos desenvolvam a capacidade crítica para apreciarem as diferenças entre a escrita que faziam e a que fazem agora; e tomem depois a sua opção.
sábado, agosto 25, 2012
Kilimanjaro 2007 - 25 de Agosto de 2007, sábado (7.º dia)
25 de Agosto de 2007, sábado (7.º dia)
Programa proposto:
Day 7: The
moor lands soon come to an end and the rocky path leads amongst outcrops to the
Lava tower (this is optional if one not taking western breach) where there are
good campsites (4600m, 5 hours) then continue to Barranco hut (3900m, 2hours).
Dados da expedição para este dia:
·
Ponto de partida:
Shira Camp 2 (3850 m)
·
Ponto de chegada:
Barranco Camp (3950 m)
·
Progressão em
altitude: 100 m
·
Distância percorrida:
6 km
·
Tempo de
caminhada previsto: 8 horas (real: 08h32)
Condições do dia:
·
Nascer-do-sol: às
07h10, já com o céu muito claro, vimos o sol aparecer pelo lado esquerdo do Kilimanjaro, a partir do ponto mais baixo visível, que sobe
suavemente até ao topo
·
Temperatura: na
tenda, não medida; no exterior: 0º C
·
Condições de
tempo: céu limpo; algumas nuvens, muito finas, espalhadas, longe umas das
outras; não há vento
A alvorada hoje
foi às 06h30, o chá às 07h00, e o pequeno-almoço às 07h30. Saímos do
acampamento às 08h22. A temperatura, entretanto, subiu para os 10º C.
Confirmam-se os
indícios de planeamento e regulamentação das actividades com os grupos de
turistas e montanheiros. Os guias e os carregadores, gente simples, pobre –
sim, gente pobre; muito pobre -, são muito zelosos e cumpridores. Não lhes
podemos chamar profissionais. Não o são, nem de perto, nem de longe. Só os
guias possuem uma certificação oficial. Nas atitudes dos guias e das equipas de
carregadores notamos que a sua relação com os turistas é regulada por
princípios e normativos profissionais que visam proteger as pessoas dos
turistas e proteger também as condições ambientais. Sentirmos isso faz-nos
sentir em segurança, faz-nos ter respeito por eles; faz-nos pensar que o
Kilimanjaro, no que deles depender, terá vigor e saúde por muito tempo.
O respeito que
os guias e carregadores têm pelos turistas não é reverencial, nem subserviente.
E isso torna-os muito dignos aos nossos olhos. Na verdade, não aturam
complacentemente tudo aos montanheiros, são educadamente e discretamente firmes.
Todos os visitantes da Montanha deverão cumprir regras de boa utilização
daquele ambiente magnífico (por exemplo, quanto aos lixos e à satisfação das
bem humanas necessidades fisiológicas para eliminar do interior do corpo as
substâncias líquidas e sólidas residuais do metabolismo de assimilação de
alimentos… Uf! Que eufemismos!... Será do respeito pela Montanha que nos penetra
cada vez mais até aos ossos?). É verdade, não é qualquer moita ou chaparro que
serve para o que costumamos fazer no campo. E – atenção! – eles, os guias e os
carregadores, são os primeiros a dar o exemplo.
Também as
estruturas que sinalizam os caminhos de ascensão ao topo do Kili revelam o planeamento e a organização. O mais
engraçado de todos – pelo menos, na rota que fizemos – é capaz de ser o que
mostramos na seguinte fotografia. Dispensa palavras, naquele ermo longínquo e
de acesso muito difícil.
A progressão em
altitude prevista para este dia é enganadora. Na verdade, o percurso prevê a
ascensão até aos 4600 m, só depois descendo à altitude de Barranco Camp. A
acentuar as dificuldades do dia, o valor da altitude a que efectivamente já nos
encontramos, ou seja, ronda já os 4000 m. O percurso será difícil com subidas
prolongadas, sempre em grande altitude, fazendo-nos tomar contactom mesmo que
de mansinho, com os sintomas para que estamos bem avisados: dificuldades
respiratórias e dores de cabeça. A vegetação é rasteira e a progressão será
feita em passo lento.
Nem a beleza da paisagem conseguia fazer esquecer os efeitos
da altitude, especialmente sentidos pela companheira Cristina.
Só para se ter
uma ideia das diferenças no ritmo de progressão durante o dia de hoje, veja-se
o seguinte: às 09h27, uma hora depois de termos iniciado a ascensão de hoje,
atingimos os 4000 m. Quer dizer, subimos 150 metros; mantínhamos uma cadência
de passada de 57 passos por cada minuto. À tarde, por volta das 13h15, ainda a
subir para Lava Tower, a cadência mantinha-se nos 58 passos por minuto. Às
16h00, depois de escalarem a Lava Tower, os rapazes desceram para Barranco Camp
com uma cadência de 110 passos por minuto!
09h55. Atingimos os 4100 m. A temperatura é de 14º C. Fizemos uma pausa
de descanso, praticamente à mesma altitude, às 10h30.
O almoço
decorreu já depois da intersecção com a Machame Route, um outro percurso
alternativo de aproximação ao Kilimanjaro. Aqui, a Cristina, sentindo-se bastante
afectada pela altitude com dores de cabeça, mau-estar e náuseas, resolveu tomar
um comprimido de Diamox que é
referido em vários sites como redutor dos sintomas negativos da altitude. Verificou-se
que, pelo contrário, não só os sintomas se agravaram ao longo da tarde como ficou
num estado febril.
Intersecção da Lemosho Route com a Machame Route. |
13h13. O céu
continua limpo e a temperatura está nos 16º C. Retomámos o caminho para Lava
Tower. O grupo iria separar-se. As meninas, com o guia Augusto, seguiriam directamente para
o acampamento de Barranco Camp; e os rapazes, com o guia António, seguiriam para escalar a
“Lava Tour”, a 4600 m de altitude. A escalada era difícil, mas presenteou os
corajosos “alpinistas” com uma vista soberba sobre o Barranco Valey. Chegaram
ao topo da Lava Tower às 14h10.
Desceram daquela
bem vertical irrupção rochosa e voltaram a pegar nas mochilas que tinham largado
praticamente na base da Torre, para o assalto final ao topo da mesma, à força
de pernas e mãos.
Outra vez na
base, aproveitando um tempo de descanso, o Fernando foi fotografar os primeiros, ainda bem
fraquitos, pedaços de neve velha. O Man’el e o Luís entretiveram-se a “espremer” o António com a tradução para swahili de palavras e
expressões verbais para a canção que temos todos andar a congeminar.
Lava Tower. Lá em cima chegamos aos 4600 m. Desde a base, são à volta de 100 m que se erguem abruptamente |
As mochilas ficaram lá atrás. Agora, sobe-se "à felino", "a quatro patas". |
Com o esforço do António, a nossa canção vai tomando forma em swahili. |
Barranco Camp, como o vamos ver na manhã do dia 26. Ao fundo, o Monte Meru (cerca de 4600 m). De permeio, um mar de nuvens que apetece pisar para lhes sentir a suavidade. |
A Isabel está aparentemente bem e com mais coragem. A
Cristina, pelo contrário, está adoentada e, para cúmulo,
partiu um dente a comer pipocas (a exigir indemnização ou reposição do trabalho
clínico fracassado ainda em Lisboa). Após a lavagem habitual das mãos, jantou-se
sopa, guisado de legumes, panquecas, ananás e chá, no final.
Constituir este pequeno episódio
como tema de jornada justifica-se fundamentalmente como alerta para outros que
tenham oportunidade de uma aventura igual à nossa. Já se perceberá porquê.
Como já dissemos no apontamento que
deixámos sobre a nossa alimentação durante a ascensão ao Kilimanjaro, as refeições eram
condicionadas pelas necessidades específicas da actividade; pelas condições de
transporte e conservação adequada de produtos perecíveis; e pela conveniente
“ocidentalização”, de maneira a que fosse fácil a nossa adaptação à alimentação
que nos era oferecida.
Ora, hoje, depois do jantar, saímos
da tenda e, quando alguns de nós davam um pequeno passeio, demos de caras com
toda a equipa de apoio tomando o seu jantar. Reparámos que o que comiam era
muito diferente daquilo que punham na nossa mesa. Estavam a comer minúsculos
peixes secos, que faziam lembrar os nossos “jaquinzinhos”, que misturavam com o
tradicional puré branco antes de levarem à boca. Tivemos curiosidade de provar
e não nos fizemos rogados quando os nossos guias nos puseram a jeito de
experimentar. Sabia bem! E lamentámos que não tivéssemos contacto com mais
pitéuzinhos deste género…
Portanto, depois desta pequena
ocorrência, deixamos aqui a sugestão de, se possível, se tal não mexer com a
organização do projecto de subida ao Kilimanjaro, não deixem de coscuvilhar de
que é feita a alimentação da equipa de apoio, talvez seja possível provar
alguma coisa tradicional e saborosa.
Por conselho do
guia Augusto, a Cristina foi para a caminha com 2 Ben-urons e ficámos a
aguardamos as suas rápidas melhoras.
A deita foi às
20h30, em ambiência de nevoeiro.
sexta-feira, agosto 24, 2012
Kilimanjaro 2007 - 24 de Agosto de 2007, sexta-feira (6.º dia)
24 de Agosto de 2007, sexta-feira (6.º dia)
Programa proposto:
Day 6. A gentle
walk across the plateau leads to Shira two
camp on moorland meadows by a stream (3850m, 1.5 hours). A variety of walks are
available on the plateau making this an excellent acclimatization day.
Dados da expedição para este dia:
·
Ponto de partida:
Shira Camp 1 (3500 m)
·
Ponto de chegada:
Shira Camp 2 (3850 m)
·
Progressão em
altitude: 350 m
·
Distância
percorrida: 5 km
·
Tempo de
caminhada previsto: 5 horas (real: 05h04)
Condições do dia:
·
Nascer do sol: 06h53
·
Temperatura: na
tenda, 0º C; no exterior: -1º C
·
Condições de
tempo: céu completamente limpo; sem vento
Como de costume, a alvorada
“oficial” foi às 07h00. E o chá para desfazer o jejum matinal, às 07h30. O
pequeno-almoço, às 08h00. A saída para a jornada de hoje estava prevista para
as 08h30. Os horários continuam a ser cumpridos quase cronometricamente.
Tema de jornada n.º 1 – O Emanuel, o assistente do grupo
É hora
de apresentar o Emanuel. Quem é o Emanuel?
O Emanuel e o Man'el |
O
Emanuel é o membro da
equipa que nos garante o serviço das refeições no acampamento (o pequeno-almoço
e o jantar); e nos faz a entrega da refeição volante do almoço. É, digamos, o
nosso assistente. Todas as manhãs o Emanuel se certifica que nos levantamos à
hora prevista[1], traz-nos as bacias de
água quente para as
breves lavagens da manhã; e a seguir nos serve o chá. Pouco depois chama-nos
para a tenda do pequeno-almoço, onde acabámos por fixar os lugares[2].
A tenda das refeições e os lugares "marcados" |
2 dias mais tarde... Eh! Eh! Eh! |
O
Emanuel ainda nos ajuda
no ritual de preparação e distribuição da água a beber durante
o dia:
A preparação da água para a jornada do dia: a água é fervida no dia anterior, e filtrada; depois são adicionadas pastilhas desinfectantes. Só passadas 2 horas é que a água deverá ser consumida.
|
Em rigor, a jornada de hoje
iniciou-se às 09h10. Logo hoje, que falámos da precisão cronométrica! Akuna
Matata!...
A temperatura já
tinha subido para os 14º C. O céu mantinha-se limpo, mas agora soprava um vento
ligeiro, agradável. Percorremos um chão de rocha, muito poeirento.
Aproveitando uma pequena pausa para
descanso, um de nós abordou o assunto das neves do Kilimanjaro com o guia António. Perguntámos-lhe se ele sabia
o que se dizia do aquecimento global e das neves do Kilimanjaro. O António pôs
um ar sério, bem distinto do ar simpático e brincalhão com que ele
constantemente procura manter-nos alegres e bem-dispostos. Percebemos que o
assunto não lhe era desconhecido e que não era a primeira vez que o abordava.
Tomou uma posição intimista, quase secretiva e disse-nos: Já vimos o Kilimanjaro sem neve nenhuma, talvez há 14 anos. E a neve
voltou depois. Já voltou muita. Vai e vem. Mas ele falava com uma expressão
de rosto que não confirmava o que as suas palavras pareciam dizer: que as neves
seriam eternas, num movimento cíclico de vai-vem. Não, a expressão do seu
rosto, e a tonicidade dos seus gestos não transmitiam tranquilidade, nem
confiança; nem receio, também. Mostravam a seriedade de uma questão que estava
ligada a uma forma de ganha-pão, por exemplo, para garantir o prosseguimento
dos estudos da filha; e mostravam também a convicção na crença que a seguir
exprimiu com clareza: Para mim, o Kilimanjaro,
as neves do Kilimanjaro estão na mão de Deus, e só dele. Só ele sabe o futuro
das neves do Kilimanjaro. Estas afirmações denunciam que ele (eles) já se
apercebeu da irregularidade presente das neves que tantos turistas com dinheiro
atrai; denunciam também que é preciso acreditar… ter fé… e, no que dele e dos
seus colegas guias e carregadores depender, defender e preservar aquela imensa
galinha de ovos d’ouro.
Era para nós evidente que o António tinha vontade de continuar a conversa. O
assunto é importante. Não está nas mãos dele, nem dos seus colegas; ou dos
governantes do País. Está nas mãos de Deus. E, se calhar, Deus não tem sido
claro nas suas intenções acerca do Kili. Já pareceu ser uma; e também
a sua contrária.
11h16. Estamos juntos a um pedaço de
Natureza agradável, que convida ao descanso. Sob a orientação dos guias,
largámos as mochilas por uns momentos e baixámos um pouco até uma pequena queda
de água, uma preciosidade da região onde nos
encontrávamos. A temperatura agora é de 18º C. O altímetro diz-nos que subimos à
volta de 120 m nas 2 horas já andadas.
Por volta das 12h20 fizemos paragem
para almoço. Nesta hora subimos tanto quanto nas 2 horas anteriores, mais
precisamente, juntámos 136m à altitude já conquistada. 17º C. O almoço de hoje era
composto por sandes mista (tomate, ovo e pimento), coxinha de galinha frita,
cenoura crua, ovo cozido, banana, laranja e bolinho. Um banquete!...
14h14. Chegamos a Shira Camp 2, com uma temperatura de 16º C. Agora o
céu está nublado, com algumas abertas.
O percurso deste dia foi calmo e,
como deixámos já entender, de declives geralmente suaves. Cruzámo-nos com
poucos caminheiros. A vegetação é cada vez mais rasteira, à base de arbustos e
entrecortada por alguns riachos, que começavam a surgir por entre as rochas.
Viram-se as primeiras lobélias [ver ilustração …], plantas tipo cacto com um
porte médio e cilíndrico, que marcaram a partir de aqui a vegetação da montanha
com menos humidade e mais pedregosa. Ao longo do percurso de hoje aproveitámos
para conversar um pouco mais com os guias. Estamos a tentar compor uma canção
em Swahili, utilizando uma música popular alusiva ao Kilimanjaro e eles vão-nos ajudando a traduzir algumas
palavras.
Assim que chegámos à zona do
acampamento, largámos as mochilas, servimo-nos das bacias de água quente e do sabonete para as ablações
habituais desta hora, e fomos lanchar na tenda. Depois, como de costume,
hasteámos a bandeira portuguesa.
Hoje, a bandeira assim posta à vista
de todos atraiu um grupo de espanhóis que tinham ali antes de nós, estavam num
acampamento próximo, fazendo uma outra rota.
Por volta das 18h00, os
guias conduziram-nos para um passeio de aclimatação, que durou pouco mais de
hora e meia e nos fez subir – e depois baixar – cerca de 150 m. A Cristina e a Isabel, que à chegada ao campo
pareciam incapazes de dar mais um passo que fosse, à vista de “nuestros
Hermanos” ganharam novo fôlego e acabaram por se decidir fazer o passeio de
aclimatação com os restantes membros do grupo e – sobretudo! – com os parceiros
espanhóis.
O passeio foi muito
divertido e proporcionou às meninas uma acentuada melhoria do seu estado físico
e psicológico… E viva Espanha!...
18h05. Hora de
jantar. Sopa de abóbora, com a tradicional farinha de milho que o nosso
cozinheiro (e, ao que parece, todos os cozinheiros) gosta de pôr em tudo; arroz
com cenoura crua, guisado de carne e legumes e salada de couve-flor e feijão
verde. A sobremesa foi laranja e mais chá de gengibre. A Cristina preferiu chá de tília, para acalmar, pois
começa a sentir os efeitos da altitude, nomeadamente no sono.
O gengibre,
embora digestivo, é excitante. Após o jantar estivemos a iniciar a composição
da nossa canção final mas, antes, o Kili presenteou-nos com uma visão da sua face clara
à luz da Lua. O céu estava todo estrelado. O que nos reservará o dia de amanhã?
Há a salientar que, no final do jantar, a Isabel (surpresa!...) não perguntou ao guia Augusto como era possível desistir.
[1]
Bem, na verdade o Emanuel deveria acordar-nos às 7 horas da manhã, como
faz com todos os grupos de montanhistas. Pois… só que, como os guias nos dirão
mais tarde, numa fase de confiança pessoal mais garantida, nós formávamos um
grupo muito activo, autónomo e colaborante, e antecipávamo-nos sempre, e quando ele chegava às nossas
tendas, já nós estávamos a pé… e prontos para o chá do desjejum, ao contrário
da maioria dos grupos; por exemplo, de um recente grupo de alemães, que lhes
deu muito trabalho, logo a começar na hora de tirar o rabinho da cama!... Estes
alemães estilhaçaram-lhes os horários das sucessivas jornadas! É claro que se não
fossemos todos fáceis de levantar da cama, o Man’el se encarregaria de se antecipar ao Emanuel. E,
diga-se de passagem, a nós sabia-nos muito bem essa segurança no despertador
Man’el. Mesmo que a gente falhasse, ele, de certeza, lá estaria. Ele é mais
seguro que o melhor dos Rolex, Ómegas, ou quejandos!
[2] Na
hora de arrumar os apontamentos e as fotografias para este documento final,
constatámos que, afinal, pouco ou nada sabíamos do Emanuel.
Com ele estivemos, com ele ganhámos alguma familiaridade, mas deixámos a
Tanzânia sem saber
um pouco mais sobre ele, a sua vida, as suas aspirações e ambições ou a sua
família. Por qualquer razão, não se proporcionou que conversássemos e nos
conhecêssemos melhor. Agora, a distância, temos pena. Na verdade, a progressão
na escalada em si; o verdadeiramente pouco tempo de contacto com o rapaz, por
causa da necessidade de cumprir os horários – no fundo, os nossos horários são
de férias, mas os do nosso grupo de apoio são de trabalho, mesmo que a
disponibilidade pessoal que todos revelam connosco seja notável); e a
necessidade de se estar bastante atento aos pormenores da subida (as roupas, a
água, a condição física) absorvem-nos completamente a
atenção.
quinta-feira, agosto 23, 2012
Kilimanjaro 2007 - 23 de Agosto de 2007, quinta-feira (5.º dia)
23 de Agosto de 2007, quinta-feira (5.º dia)
Programa proposto:
Day 5: The trail gradually steepness and enters the
giant heather moor land zone then crosses the Shira ridge at about
3600m to drop gently down to Shira 1 camp located by the stream on the Shira
plateau (3500m, 5hours).
Dados da expedição para este dia:
·
Ponto de partida:
Mti Mkubwa Campsite (2750m)
·
Ponto de chegada:
Shira Camp 1 (3500m)
·
Progressão em
altitude: 750m
·
Distância
percorrida:
·
Tempo de caminhada
previsto: 5 horas (real: +/- 7 horas)
Condições do dia:
·
Nascer do sol: 06h53
·
Temperatura: na
tenda, não medida; no exterior: entre 6 e 7º C
·
Condições de
tempo: céu completamente limpo; sem vento
Alvorada às
06h00. Chá na tenda às 07h00. Pequeno-almoço 07h30. Saída às 08h00.
Hoje acordámos
às 6h00 com um “galo” a cantar... Era o Man’el, claro!... Quem mais poderia
querer que toda a gente saísse bem cedinho da cama e não descansava enquanto
não conseguisse o seu desiderato?...
Arrumámos as mochilas e tomámos um bom pequeno-almoço
com fruta, torradas, chá, café, cacau, leite, ovos e papa maizena.
A caminhada
iniciou-se às 08h33. Desde que nos levantámos até começar a agora a temperatura
subiu cerca de 5 graus, dos 7º para os 12º.
Caminhámos numa
zona de floresta semi-tropical com árvores enormes, a que se seguiu uma zona de
arbustos e mata menos densa. A paisagem era exuberante.
Às 09h55 fizemos
a primeira paragem para descanso, com 18º C. O céu estava completamente limpo.
Começamos a
ensaiar as primeiras canções na língua nativa. Os guias ajudavam.
Muzungo…
Ánápanda…
Mulima…
Kilimanjaro…
10h14. Pelas
coordenadas locais, atingíamos, pela primeira vez, o meio da escalada. A
vegetação torna-se decididamente arbustiva.
10h53. Atingimos
os 3000 m. O céu está agora nublado, mas a temperatura continua a subir: 22º C.
11h43. Paramos
para almoçar ligeiramente abaixo dos 3000m. 26º C, céu pouco nublado e
absolutamente sem vento.
12h15. Retomamos
a marcha.
15h15. Chegamos
a Shira Camp 1. Tempo total da caminhada de hoje quase nas 7 horas. Foi um
percurso difícil, com subidas muito longas e íngremes. Estávamos agora a 3500 m
de altitude, mas antes atingíramos os 3600 m
17h05.
Avistámos, pela primeira vez, as neves do Kilimanjaro, desde que iniciámos a
subida. Um recorte imponente na paisagem.
O Campo Shira 1
fica num plateau/planalto imenso que permite que a nossa vista alcance bem
longe.
Depois da
excitação do primeiro contacto directo com o Kili, fomos finalmente lanchar. Chá
e pipocas, como sempre, a marcar o fim do esforço da jornada. O jantar veio um
pouco mais tarde. Sopa - óptima! - de legumes e massa com ratatouille e frango. Para a sobremesa havia abacate, mel e crepes.
No fim, tomámos um chá de gengibre, disseram-nos os guias que era para ficarmos
fisicamente mais vigorosos e de espírito mais forte.
Durante este percurso
temo-nos cruzado com vários grupos de diferentes nacionalidades que, como nós,
estão a fazer a subida do Kilimanjaro. Hoje cruzámo-nos com um
grupo provavelmente pouco frequente (seria mesmo pouco frequente?...) Havia um
contraste nítido entre a nossa estrutura relativamente pequena, um grupo de 5 pessoas, e uma outra, de um
grupo de 3 americanos… com 27 carregadores! Ou seja, uma proporção de 9
carregadores por escalador. Nós mantínhamos a proporção habitual: 2 carregadores
por cada elemento do grupo. Será que até levariam camas com eles?...
Amanhã, como será?... Teremos um dia fácil
ou difícil? Mais uma vez a Isabel perguntou ao guia Augusto como seria o percurso daqui para a frente e se
haveria possibilidade de desistir. O guia, bondosamente (e verdadeiramente,
como pudemos comprovar depois) respondeu que o percurso do dia que se seguiria
seria mais fácil do que o que o antecedia, ou seja, o dia de hoje.
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