Querida Dina,
Um dia, recebi no consultório um rapazinho do 4.º ano de escolaridade, que estava com problemas de aprendizagem: dava muitos erros, a professora queixava-se que ele era um rapaz fechado, que não facilitava nada a comunicação, não colaborava para resolver os problemas de aprendizagem.
Eu gostei do rapaz logo ao primeiro contacto: tinha um ar triste, mas também preocupado; o olhar era afirmativo, mas mostrava curiosidade em relação a mim, quer dizer, estava aberto, disponível para conversar comigo.
Apresentei-me, fiz-lhe perguntas, vi-lhe os cadernos; ele colaborou sempre muito diligentemente. Foi uma grande surpresa para ele quando eu lhe dei os parabéns pelos erros que fazia. Disse-lhe que eram sinal de uma inteligência muito grande, que tinha a preocupação de entender a lógica das coisas. Soube depois que ele foi resolvendo muito satisfatoriamente os seus problemas na escola. E voltámos a encontrar-nos. Não sou mais descritivo porque não quero afastar-me do objetivo principal deste apontamento.
Um dos erros que ele fazia era escrever "casá" onde deveria escrever "casa".
Ora isto tem a ver com uma das preocupações que nortearam este acordo ortográfico: dar primazia à dimensão fonética da palavra escrita, em deterimento da dimensão etimológica.
Repare, Dina:
- a primeira coisa que lhe ensinaram na escola foi que a letra "a" se lia "á"
- e ensinaram-lhe que os acentos servem para modificar os sons das letras.
- assim, no entendimento dele, em que a sua inteligência lhe exigia que percebesse a lógica das coisas, aquilo a que nós chamamos o "á fechado", que é a maneira de ler a letra "a" final da palavra "casa", para modificar o som natural da letra "a" (que se lê "á"), ele teria de usar o acento para fechar o tal "a" final da palavra "casa".
- quer dizer, na lógica do que se ensina às crianças logo à entrada para a escola, do ponto de vista do desenvolvimento psicológico, do ponto de vista da inteligência, a forma mais correta de escrever a palavra "casa" é mesmo a maneira como ele escrevia! "Casá". Nós é que temos sempre andado ao arrepio de muita lógica simples do desenvolvimento da inteligência verbal e da lógica das letras e das palavras no nosso cérebro.
- ele não queria desistir dos seus erros porque ele sabia que a sua lógica estava correta! Desistir dos seus erros era desistir da inteligência que ele estava seguro possuir; mas não tinha poder para enfrentar a tradição, a escola, a sua professora... Por isso se calava.
- ora, o que eu fiz, foi confirmar-lhe a correção do seu raciocínio lógico ("Finalmente!..." terá ele pensado. "Finalmente alguém me entendeu!...")
- assim que viu confirmada a sua inteligência, ele ficou mais disponível para aceitar as relações e os caminhos complexos que vão da palavra falada à palavra escrita, e vice-versa.
Tive muita pena deste rapazinho, fiquei com muita admiração pela tenacidade da sua personalidade e pela defesa que fazia da sua inteligência; e adorei conhecê-lo, senti muito orgulho em poder ser confidente de uma pessoa assim.
Este atual Acordo Ortográfico ainda não resolve esta questão da letra que se ensina que é o "á", mas que assim que se usa numa palavra básica, muito familiar, se lê "â (fechado)" e que o que se lê "â" não precisa, afinal, de acentos (os tais que existem para modificar o som natural das palavras).
Contudo, pelo facto de ser um acordo que procura aproximar a palavra escrita à sua fonética simples, respeitando melhor a lógica da construção percetiva da palavra; exatamente por isto, estou de acordo que alguma coisa se faça.
Mas temos de estar de mente aberta e flexível para as afinações necessárias. No fundo, o que queriam que o meu rapazinho fizesse, mas sem darem atenção ao desenvolvimento espontâneo, legítimo e inteligente da sua inteligência.
Pode crer, Dina, eu gostaria muito de saber qual será a sua reação natural a esta "coisa" do Egipto e dos egípcios. No fundo, o facto de a palavra escrita e da palavra dita comportarem várias dimensões (fonética, etimologia, contextos sociais locais, etc.) obriga a compromissos, a cedências.
O meu rapaz, quando lhe confirmaram a sua inteligência, quando lha respeitaram (e por isso o respeitaram a ele), aceitou ceder.
E nós, que estamos nós dispostos a ceder a propósito de uma língua que, por nossa própria "culpa", se tornou a língua natal de imensos milhões de pessoas que vivem, pensam e falam, bem para além do nosso jardim à beira mar plantado?
E os autores do Acordo, que estão eles dispostos a pensarem sobre os limites satisfatórios de (mais esta) tentativa de aproximação de falantes e escritores da mesma língua, tão falada em todas as partes do Mundo?