domingo, maio 31, 2020

PARTILHAR É CONDIÇÃO NATURAL DO SER HUMANO

1) No âmbito da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento, explorei com uma turma do 8.º ano de escolaridade, um inquérito de David Sloan Wilson, professor de Biologia e Antropologia, inquérito esse que acabou por se tornar um clássico no trabalho de alunos de Psicologia e de Biologia, a propósito do tema da Evolução do Ser humano.

2) No inquérito, muito simples, é pedido aos estudantes que indiquem as características que associam ao bem, e as características que associam ao mal.

3) Acabei por também fazer o inquérito a alunos do ensino secundário, recolhendo 30 respostas válidas do básico e 32 do secundário.

4) No geral, as respostas dos meus alunos alinham genericamente com as respostas que conheço do inquérito original, com ligeiríssimas variações. A primeira característica má é mesmo completamente sobreponível nos 3 casos: egoísmo.

5) No meu inquérito, acrescentei duas perguntas: que os alunos indicassem exemplos de pessoas boas e más que encontrassem na comunicação social. Só uma escolha passou os 50% dos 62 alunos; e foi nas pessoas más: foi Donald Trump.

6) Coerente, na prática, com a sua bem explicitada concepção de governação de um dos países mais poderosos do Mundo, Donald Trump tem retirado os E.U.A. de todos os acordos de cooperação ou regulação internacional que pode, o Presidente norte-americano não pára. Precisamente nesta altura, chega-me a casa este 'cartoon' tão elucidativo.

7) As circunstâncias em que o Mundo vive no tempo presente, amplificadas pelo massivo, acelerado  e muito agressivo comportamento da Comunicação Social, em geral, com fluxos e refluxos de informação e desinformação, são de molde a alimentar a dúvida, a insegurança e a incerteza dos cidadãos: vamos continuar com a nossa casa (leia-se: o nosso país) de portas abertas, deixando entrar e podendo sair; ou vamos, ao invés, fechar-nos em casa e aconselhar a que os outros façam o mesmo?

8) Penso que a questão não deve ser colocada na dicotomia "pessoas boas 'versus' pessoas más"; mas antes entre as características boas e as características más das pessoas. Um exemplo actual, flagrante, é a trágica e brutal morte da Beatriz às mãos do Rúben. Até à tremendamente infeliz situação, o rapaz era praticamente um modelo de jovem cidadão, ele encaixava perfeitamente na lista das características das pessoas boas, os seus comportamentos pessoais e sociais testemunhavam-nas todas. Até que...

9) Sou muito céptico na filosófica questão da luta entre o bem e mal. Veja-se o caso de Hitler, como ele dá testemunho da tão intrínseca fragilidade do seu humano: super-simplificando as coisas, podemos dizer que ele "tentou" ser bom, quando se candidatou à Escola de Belas-Artes de Viena. Não o tendo conseguido, o mal escancarou-se dentro dele, e toda a sua ascensão social e política mostra como um simples vírus, de uma única pessoa, pode disseminar-se, acordar parceiros adormecidos ou em estado latente noutras pessoas e dominar completamente um poderoso país, e quase o Mundo todo.

10) Estarão os grupos humanos condenados à vitória do mal sobre o bem? Não, creio convictamente que não estão. Com a mesma convicção, afirmo que resignarmo-nos a essa sorte, deitar a toalha ao chão, é negarmos a nossa própria natureza. E é essa consciência e essa pedagogia junto, não apenas dos mais novos, mas de todos os cidadãos do Mundo, que é a razão de ser deste apontamento.

11) Não vou invocar Konrad Lorenz, já o fiz bastas vezes. Vou onvocar António Damásio e David Sloam Wilson. Damásio leu Wilson, não sei de Wilson leu Damásio. No que aqui trago, Damásio fala de altruísmo e Wilson fala de partilha.

12) Diz António Damásio:
«A cooperação desenvolveu-se como irmã gémea da competição, o que ajudou a seleccionar os organismos que exibam as estratégias mais produtivas. Consequentemente, quando hoje nos comportamos de forma cooperativa, com uma certa dose de sacrifício pessoal, e quando designamos de altruísta esse comportamento, isso não quer dizer que os seres humanos tenham usado o seu bom coração para inventar a estratégia cooperativa. [...] A questão do altruísmo é um excelente ponto de partida para a distinção entre as primeiras "culturas" e a sua variedade madura. O altruísmo tem a sua origem na cooperação cega, mas pode ser analisado e ensinado no sei das famílias e nas escolas como estratégia humana deliberada. [...] Nada garante que resulte sempre, mas existe como recurso humano consciente, presente através da educação.» (1)
13) E diz ainda o seguinte:
«A homeostasia básica tende a cumprir o seu dever relativamente a cada organismo cultural separável e nada mais. Deixados por sua conta, sem o efeito equilibrante de esforços civilizacionais determinados, visando algum grua de integração, e sem o benefício de circunstâncias favoráveis, os organismos culturais não tendem a coalescer.» [aglutinar, ligar, unir] (2)  

13) Por seu lado, David Sloam Wilson afirma:
«Esta e outras experiências revelam que a mentalidade humana se baseia fundamentalmente na partilha. [Não serão o altruísmo e a partilha o oposto do egoísmo?] Se não partilhámos intenção e atenção, nem sequer podemos fazer uma coisa tão simples como apontar para um objecto de interesse mútuo e muito menos partilhar os nossos comportamentos e representações simbólicas. Felizmente, a partilha faz parte do nosso meio social externo há tempo suficiente para se ter incorporado geneticamente nas nossas mentes, tão profunda e subconscientemente que não a reconhecemos como partilha até a estudarmos por métodos científicos.» (3)
14) As constatações científicas  de Wilson devem ser muito do agrado dos defensores da completa separação ente o Homem e os outros animais: é que os nossos parentes evolutivos mais próximos não apresentam esta capacidade de partilhar; mas o bebé humano, espontaneamente, apresenta!

15) O que será uma contrariedade para os criacionistas é terem de admitir, simultaneamente, que a competição, essa sim, é parte intrínseca do património comportamental tanto de símios como do Homem. Em conclusão, o que nos eleva é o altruísmo, é a partilha.

16) Penso que acabamos por nos confrontar com as duas grandes tarefas dos grupos humanos: a transmissão cultural (a Educação), e a regulação da vida cívica (a Política).

17) E voltamos à ideia dos jovens sobre as pessoas más, voltamos a Donald Trump. O que tenho achado especialmente interessante e promissor é ver que, apesar da quase violenta assertividade dos presidentes Trump e Bolsonaro (a 2.ª escolha, também destacada dos meus alunos), os sistemas de distribuição democrática de poder, regulando, aplacando a intensidade do egoísmo, e do despotismo, funcionam: ao nível dos governos regionais, de estados, ou distritos, os todo-poderosos presidentes têm de aceitar e resignar-se ao limite do seu próprio poder presidencial.  Logo, a Política é mesmo importante! A regulação formal da vida cívica, não pondo, como simbolicamente se diz, todos os ovos no mesmo cesto, é amiga da, está em sintonia com ela, condição básica, genética, do ser humano: a partilha, o altruísmo.
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(1) António Damásio, "A Estranha Ordem das Coisas", 2017, Lisboa, Círculo de Leitores - Temas e Debates, p. 322.
(2) António Damásio, "A Estranha Ordem das Coisas", 2017, Lisboa, Círculo de Leitores - Temas e Debates, p. 299
(3) David Sloan Wilson, "A Evolução para Todos", Lisboa, Gradiva, 2007, p. 244.

sábado, abril 18, 2020

Regresso ao Futuro

«Professor, para algo novo, diferente, inesperado, não seria importante uma resposta nova, diferente, fora da caixa? O que os professores estão a tentar fazer é heróico, esta adaptação gigantesca em tempo real, creio que só falta fugir um pouco ao modelo de aulas presenciais, ao esquema do toma para aí uns trabalhos e umas fichas e até já. Eu que adorei as suas aulas adorava saber que coelhos vai tirar da cartola para estes tempos que aí vêm. Força e grande abraço!»
O António, que foi meu aluno há muito tempo, desafia-me a tirar um coelho da cartola para os tempos que estamos a viver no ensino, e para os que hão-de vir.
Ora bem, para os que hão-de vir é mais fácil, o que é fácil prever é uma aposta maior, mais a sério, nas tecnologias digitais à distância, equilibrando-as com as aulas presenciais. Vai certamente haver muita tentativa e erro, muita polémica, muita tentação burocratizante — eu digo mesmo: até estalinista — dos governos centrais para controlar os procedimentos de professores e alunos. Espero que alguma coisa de boa saia disto, até porque seguramente eu já não estarei no activo da docência quando esse tempo estabilizado, que harmoniza a relação pessoal directa entre professor e alunos; os recursos didácticos tradicionais e os digitais; as aulas presenciais e à distância, finalmente chegar. Até lá, muita água correrá a gente está fartinha de saber onde, muitas polémicas, muitas contradições, muitas tentativas e erros; muitos “sábios” e poucos sábios.
O tempo de tirar coelhos da cartola é o tempo do Presente, o que está a acontecer, o que estamos a viver.
Tanto há para dizer de premissas e contextualizações que, se fosse por esse caminho, não saberia escrever menos do que 10 ou 12 páginas A4, e ninguém, nem o António!, teria pachorra para as ler. Por isso, vou atalhar.
Passou uma semana de aulas à distância, oficialmente assumidas para todas as escolas. A Telescola vai começar na próxima segunda-feira. Os professores estão afogados em tarefas, desde as mais burocráticas às mais pedagógicas. É fácil resvalar (estou a falar do ministério da tutela e das direcções dos agrupamentos de escolas) para a tentação de lhes pedir sol na eira e chuva no nabal: procedimentos burocráticos imensos, muitas fichas e mapas para preencherem; e disponibilidade total para gerirem, em aulas de 30 minutos (isso, 30 minutos!) a condução de trabalho presencial, obrigatório, síncrono e mais outro tanto, por extensão, assíncrono — com a mais competente das pedagogias, com recursos de comunicação à distância insuficientemente preparados, com alunos e professores com pouca “literacia digital”; e tendo sempre em mente essa coisa a um tempo sacrossanta e diabólica que é a avaliação final dos alunos!
Repare-se o que é estar a querer que os professores consigam, em um ou dois meses, que todos (repito, alunos e professores) participem adequadamente em “aulas” de 30 minutos.
Eu tenho uma turma de 30 alunos. Tenho mais sorte que a generalidade dos meus colegas, que têm normalmente bem mais do que uma. Ora bem, 30 minutos a dividir por 30 alunos dá… pois, muito menos que um minuto por aluno, já que o professor também deverá fazer qualquer coisa; há sempre um ou outro que se atrasa um bocadinho, espera-se por ele; e as “salas de aula” digitais não estão preparadas para que os professores façam a gestão adequada dos grupos. E há, como já se estão a espalhar por aí em vídeos ilustrativos, as interferências marotas, perversas, até mesmo muito maldosas.
Este é o caldo em que os professores se esforçam por explorar os conteúdos programáticos tradicionais, que aqui ainda estão de pedra e cal, praticamente intocáveis. Sempre o espectro dos exames no futuro!
Quer dizer que isto está tudo mal? Claro que não! Até penso que não pode ser de maneira muito diferente. Para aprender é preciso tempo. Até os génios das informáticas precisam de tempo para fazerem salas de aula digitais, à distância, que funcionem bem. Não tenho dúvidas nenhumas que eles estão na primeira linha dos que estão a aprender neste tempo de inesperada turbulência no ensino, em praticamente todo o mundo.
Não sei se estou a tirar algum coelho da cartola, mas a aula que eu chamarei matriz para esta altura é a aula-não-aula.
A Psicologia Social já há muito que mostrou que nós não podemos ser, ao mesmo tempo, o sujeito que age, o espectador que se observa a si-mesmo e o estudante que vê o sujeito e a sua acção como objecto de estudo e aprendizagem nos livros e nos computadores.
O tempo que vivemos agora é um tempo histórico, único, como nunca houve antes nem alguma vez vai acontecer outra vez — é que não amor como o primeiro.
As minhas aulas agora são, todas elas, organizadas sob a égide do protagonismo dos alunos no tempo histórico que está a acontecer na vida deles — tanto o que é bom, como o que não é bom.
Eu só posso falar do que sinto se sentir; eu só posso pensar no que faço, ou fiz, se fizer ou se tiver feito; eu só posso guardar memória das minhas acções se as realizar, se não for um simples espectador das coisas que acontecem à minha volta.
Logo que o confinamento começou, eu sugeri que nas famílias se suspendesse o estatuto de pais e de filhos e passasse a vigorar, em período de quarentena, o estatuto partilhado, igualizador, de cidadão, e dei exemplos de como isso se traduziria na vivência do dia-a-dia de todos em condição de confinamento em casa.
Por isso eu advogo que as aulas devem ser, em geral, conduzidas de maneira a que os alunos olhem à sua volta e sejam protagonistas activos de um tempo único na História dos Homens e das Sociedades Humanas, Não lhes roubem essa oportunidade única, não os fechem ainda mais em casa, no reino desvitalizado dos livros e das matérias escolares.
No fundo, foi isto que a Greta Thunberg quis fazer: ser protagonista do seu tempo, não apenas uma espectadora das coisas do Mundo a passarem por ela.
Como imortalizou a pintora Maria Helena Vieira da Silva, em tantas pinceladas do 25 de Abril, “A Poesia está na Rua”; e nós, paradoxalmente, fechados em casa! Mas o tempo é mesmo de Poesia! Não se roube aos miúdos de desfrutarem esse tempo.
No teu tempo de escola, António, ainda muito se visitava o Clube dos Poetas Mortos, em que o professor Keaton desafiava os alunos a acrescentarem o seu verso à grande sinfonia do Mundo. Não é este o tempo de deixarmos as crianças e os jovens viverem o tempo, penetrando nele, e assim ganhando inspiração para o seu verso?
Para lá da dramática pandemia, que está ao alcance dos alunos verem e fazerem acontecer?
É inegável que se abriu, escancarou mesmo, uma janela de oportunidade para o tremendo valor da Solidariedade Humana. É inegável que o Ambiente, perante a intensa redução da actividade humana, reagiu prontamente e baixou imenso os níveis de poluição, limpou os canais de Veneza, fez regressar os animais a lugares donde já tinham desaparecido, parecia que definitivamente.
Perante o terrível espectro das alterações climáticas, o Ambiente respondeu, nesta janela de oportunidade, «Estou pronto!»
Este é o tempo em que as gerações do Futuro têm aqui a sua viagem, o seu Regresso ao Futuro. Sim, mudar é possível! Sim, é possível deter as alterações climáticas! Sim, é possível as pessoas serem mais solidárias! E não é porque isso está nos livros de estudo! É porque está mesmo a acontecer!
Não tirem as crianças e os jovens das janelas! Não os obriguem a estar fechadas no quarto ou na sala com os olhos nos computadores ou nas aulas da Telescola! Deixem-nas viver o tempo do Futuro! Deixem-nas ser protagonistas desse Futuro!
António, não são quimeras, não são sonhos de uma noite de Verão! É a realidade a acontecer à nossa volta!
Querem os jovens a acreditarem no Futuro e a apostar nele? Então deixem-nas ser protagonistas do Livro da Vida que está a acontecer nestes dias, nestas semanas, nestes meses.
O Futuro é possível. O Futuro que desejamos para os nossos filhos e netos está agora a acontecer. Deixem ao jovens saboreá-lo. Conhecendo-o, na primeira pessoa, mais convictamente lutarão por ele. A Utopia é possível, António!
Já escrevi demais, já me fizeste escrever demais. Mas sei que muito mais escreverei acerca destas coisas.
Para já, nas minhas aulas, o repto, o desafio é então esse (só mesmo 2 ou 3 exemplos):
· Tens que estudar os “Riscos” na disciplina de Cidadania e Desenvolvimento? Muito bem. Olha à tua volta: que riscos corremos quando desrespeitamos o equilíbrio ambiental? Estão a ver que pode haver um Ambiente melhor caso não punhamos em risco as pessoas, os animais e a Natureza? Estão a ver os riscos em que pomos o Homem caso desrespeitemos a natureza dos lugares que habitamos e consumamos os recursos naturais desreguladamente? Ou os riscos que criamos para o Homem quando exploramos cegamente a vida dos animais pensando que eles nos pertencem de pleno direito?
· Tens que estudar os Processos Afectivos nas relações individuais e de grupo? Repara como se sentem as pessoas quando os afectos são positivos… Repara como se sentem as pessoas, e o que conseguem quando a solidariedade domina sobre a competição…
· Tens de estudar o conceito de Recaída nos grupos humanos em risco? Repara se recaímos nos comportamentos consumistas e acelerados dominantes no tempo de antes da pandemia e do confinamento? O que voltamos a perder? Será que o que recuperamos vale o que vamos outra vez perder?
António, este texto foi escrito de rajada, sei que aqui e ali vou reformulá-lo, corrigir, modificar, acrescentar, cortar. Mas o essencial da resposta à questão que me puseste está cá:
O coelho da cartola é a aula-não-aula. Ajudar as crianças e os jovens a olhar à sua volta, ver o que está a acontecer; e a olharem para dentro de si, tomando consciência do que estão a sentir. Conversar com eles sobre tudo isso. Sugerir-lhes olhares e objectos de atenção e exploração. Fazer cada um o primeiro protagonista do seu próprio Futuro. Nada como o que está a acontecer pode dar tanta esperança no Futuro e na Vida aos jovens. Nem a mais sofisticada plataforma digital, nem o mais pintado dos professores.
O professor de agora é o genuíno pedagogo: o que conduz discretamente o aluno para a escola, e a escola é o mundo que está a acontecer à volta do aluno. Deixem-no desfrutar do que está a acontecer! Não sei se mais alguma vez na vida terão essa oportunidade. Mas, se olharem bem à sua volta, verão e formarão a mais absoluta das convicções: «Sim, é possível!»
Forte abraço, António! Obrigado pelo desafio que me lançaste. Votos de um Futuro promissor para os teus filhos!

segunda-feira, março 23, 2020

COVID-19: A GESTÃO DA ANSIEDADE, 1

COVID-19: A GESTÃO DA ANSIEDADE, 1

Não olhes já para a meta. Não a vais ver, e ficarás aflito - podes sentir-te incapaz e indefeso.
Olha só para os passos que podes dar hoje. Um dia terás a meta à vista.
É uma corrida individual, mas não é solitária, estamos todos nela.
Boa prova!

domingo, fevereiro 16, 2020

Ninguém nasce ensinado, então por que razão as crianças fazem tudo bem?

Eu tinha pouca coisa para pesar e pagar. Estava com tempo.
À minha frente, na caixa de pagamento do bem apertado estabelecimento de frutas e legumes, no rés-do-chão do meu prédio, estava uma senhora e uma menina, bem pequenina, mal me chegava à cintura.
Não lhes via as faces, estavam viradas para o pequeno balcão de pesagem e pagamento. A menina, à direita da senhora.
A senhora esvaziou a cesta laranja que tinha pousada em cima do balcão. O senhor chinês, do lado de lá, ia pesando os sacos de plástico com as compras.
Cesta esvaziada, a senhora virou-se sobre o seu lado direito, e, pondo-o no chão, diz para a menina:
- Vá, vai arrumar ao pé dos outros.
A menina, sem dizer nada, pegou logo na cesta e, enquanto se dirigia para a entrada do estabelecimento, ainda ouviu a avó dizer-lhe:
- Se precisares de ajuda, chama-me.
- Não é p'eciso, avó.
Por um instante olhei mais demoradamente a avó, que se preparava, com o ar mais tranquilo deste mundo, para pagar, largando de vista a pequenina menina.
Passei então a olhar a menina. Ela caberia perfeitamente dentro da cesta, bastaria que se dobrasse sobre si mesma.
A menina pôs a cesta dentro do molho de cestas, com ligeireza; felizmente, só 4 ou 5 lá estavam, senão, a menina não teria altura suficiente para fazer o gesto necessário para encaixar a sua cesta dentro das outras.
O outro senhor chinês da pequena loja olhava a menina, ao pé dela, falava-lhe, mas deixava-a sozinha na sua tarefa.
É nesta altura que eu fico especialmente deliciado com o que a menina, sem que alguém lho encomendasse, passou a fazer.
Para ela, é lógico, é óbvio, que as cestas para as compras são para estar à entrada do estabelecimento - e entrada é mesmo entrada, logo ali à pontinha! Então, que fez ela: depois de pôr a cesta dentro das outras, não podendo pegar nelas, arrastou-o o molho das cestas, o qual, na avaliação dela, estaria demasiadamente para dentro do estabelecimento, ou seja, fora do lugar. E foi com precioso cuidado que alinhou a base das cestas com o bordo de entrada na loja! Ficou perfeito!
Olhou o senhor chinês, o senhor chinês sorriu para a menina e agradeceu-lhe a inteligente e muito prestável colaboração, absolutamente voluntária.
A menina chegou-se depois à avó, que, de mão direita estendida, recebia o troco.
- Já está, 'vó.
- Boa, eu também estou quase despachada... Já está, vamos.
Arrumou o troco dentro do porta-moedas, guardou o porta-moedas e, encostando a mão mansamente nas costas da neta, disse-lhe, sorrindo: «Vamos». Saíram, tranquilamente.
As crianças não nascem ensinadas. Então, por que razão sabem fazer as coisas assim tão bem feitas?
A razão não é uma só. São duas razões:
a primeira é ter uma avó assim, que intui o que a neta é capaz de fazer sozinha e sabe que de pequenino é que se torce o pepino;
a segunda é ter um senhor chinês que sabe quanto vale a mente de uma criança, que faz porque é capaz, e tem a intuição de que a vida é gregária, eu-sou-a-minha-comunidade.
A avó não agradeceu à neta porque não tem de agradecer, mostrou-se confiante e carinhosa como deveria ser. O senhor chinês agradeceu porque isso lhe competia, já que a menina teve um gesto voluntarioso de colaboração e ajuda.
Parece-me que a comunidade humana da minha rua se cumpriu neste pequeno nada, e uma valorosa cidadã está aqui a formar-se como bem deve ser. Porque a comunidade está envolvida na educação da criança. “É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança.”, não é o que nos dizem ser um provérbio africano?

sábado, fevereiro 01, 2020

TRIBALISMOS; E OS 7 MIL MILHÕES DE OUTROS

Penso que José Pacheco Pereira tem razão quando procura caracterizar os tempos em que vivemos como os de (nova) ascensão dos tribalismos - do tipo em que expressam mais as suas componentes negativas, destruidoras, do que positivas ou construtivas.
Escreve ele assim, no Público, hoje:
«O tribalismo dos dias de hoje é outra coisa, é no seu cerne antidemocrático, destruindo, com o precioso incentivo das redes sociais, um espaço público mediado pela verdade, pelo saber, pelas instituições da democracia, partidos e sindicatos, mas também pela família, pela escola, e mesmo pela igreja. O terreno impante de ressentimentos, violência, anti-intelectual, completamente de costas voltadas para os factos e para a verdade, sedento, não de autoridade, mas de autoritarismo, profundamente solitário diante do Facebook e do Instagram, em que estão viciados, e incapaz de pertenças sociais a não ser a grupos agressivos contra tudo e contra todos. Vêm aí os bárbaros, como no poema de KavaÆs, mas não são os bárbaros que precisamos, aqueles que “talvez fossem uma solução”. Esses nunca chegaram e estes são outra coisa e não nos vão ensinar a ser outra coisa. Vão obrigar-nos a ser nós mesmos, mas pior.»
Assim que li o artigo de José Pacheco Pereira fui revisitar os fascinantes vídeos dos "7 Mil Milhões de Outros". Temos cada vez mais medo de olhar os outros nos olhos, de os conhecer e de os reconhecer. Estes vídeos - uns muito pequenos, outros assim-assim, outros grandes, dão para todos os gostos - ajudam-nos na reaprendizagem do contacto com os outros, e na educação da consciência de que somos muito mais iguais a eles do que pensamos.
Convido-vos a todos a passarem por eles de vez em quando. Muitos deles têm já boas legendas em português.

sábado, janeiro 04, 2020

SEREMOS BOLA DE NEVE EM PLANO CADA VEZ MAIS INCLINADO?

SEREMOS BOLA DE NEVE EM PLANO CADA VEZ MAIS INCLINADO?

Michael Sandel, há meses, na conferência da FFMS, disse que o problema actual foi que
transformámos a economia de mercado, boa, em sociedade de mercado, má.
Comentarei eu: quem sabe, em resultado do império das concepções utilitaristas do 'velho' Jeremy Bentham.
Numa das anedotas que recolhi neste Natal apanhei o que me parece ser um bom exemplo disso:
"Negócio falhado"
Um grande capitalista americano tem uma audiência com o papa e propõe pagar-lhe um milhão de dólares se, daí em diante, se disser no pai-nosso: «Dai-nos hoje a nossa coca-cola...»
Apesar de insistir, é posto imediatamente na rua. Começa a afastar-se, resmungando:
«O pão nosso de cada dia... o pão nosso de cada dia... Sempre gostava de saber quanto lhe pagaram os padeiros!..»