«Professor, para algo novo, diferente, inesperado, não seria importante uma resposta nova, diferente, fora da caixa? O que os professores estão a tentar fazer é heróico, esta adaptação gigantesca em tempo real, creio que só falta fugir um pouco ao modelo de aulas presenciais, ao esquema do toma para aí uns trabalhos e umas fichas e até já. Eu que adorei as suas aulas adorava saber que coelhos vai tirar da cartola para estes tempos que aí vêm. Força e grande abraço!»
O António, que foi meu aluno há muito tempo, desafia-me a tirar um coelho da cartola para os tempos que estamos a viver no ensino, e para os que hão-de vir.
Ora bem, para os que hão-de vir é mais fácil, o que é fácil prever é uma aposta maior, mais a sério, nas tecnologias digitais à distância, equilibrando-as com as aulas presenciais. Vai certamente haver muita tentativa e erro, muita polémica, muita tentação burocratizante — eu digo mesmo: até estalinista — dos governos centrais para controlar os procedimentos de professores e alunos. Espero que alguma coisa de boa saia disto, até porque seguramente eu já não estarei no activo da docência quando esse tempo estabilizado, que harmoniza a relação pessoal directa entre professor e alunos; os recursos didácticos tradicionais e os digitais; as aulas presenciais e à distância, finalmente chegar. Até lá, muita água correrá a gente está fartinha de saber onde, muitas polémicas, muitas contradições, muitas tentativas e erros; muitos “sábios” e poucos sábios.
O tempo de tirar coelhos da cartola é o tempo do Presente, o que está a acontecer, o que estamos a viver.
Tanto há para dizer de premissas e contextualizações que, se fosse por esse caminho, não saberia escrever menos do que 10 ou 12 páginas A4, e ninguém, nem o António!, teria pachorra para as ler. Por isso, vou atalhar.
Passou uma semana de aulas à distância, oficialmente assumidas para todas as escolas. A Telescola vai começar na próxima segunda-feira. Os professores estão afogados em tarefas, desde as mais burocráticas às mais pedagógicas. É fácil resvalar (estou a falar do ministério da tutela e das direcções dos agrupamentos de escolas) para a tentação de lhes pedir sol na eira e chuva no nabal: procedimentos burocráticos imensos, muitas fichas e mapas para preencherem; e disponibilidade total para gerirem, em aulas de 30 minutos (isso, 30 minutos!) a condução de trabalho presencial, obrigatório, síncrono e mais outro tanto, por extensão, assíncrono — com a mais competente das pedagogias, com recursos de comunicação à distância insuficientemente preparados, com alunos e professores com pouca “literacia digital”; e tendo sempre em mente essa coisa a um tempo sacrossanta e diabólica que é a avaliação final dos alunos!
Repare-se o que é estar a querer que os professores consigam, em um ou dois meses, que todos (repito, alunos e professores) participem adequadamente em “aulas” de 30 minutos.
Eu tenho uma turma de 30 alunos. Tenho mais sorte que a generalidade dos meus colegas, que têm normalmente bem mais do que uma. Ora bem, 30 minutos a dividir por 30 alunos dá… pois, muito menos que um minuto por aluno, já que o professor também deverá fazer qualquer coisa; há sempre um ou outro que se atrasa um bocadinho, espera-se por ele; e as “salas de aula” digitais não estão preparadas para que os professores façam a gestão adequada dos grupos. E há, como já se estão a espalhar por aí em vídeos ilustrativos, as interferências marotas, perversas, até mesmo muito maldosas.
Este é o caldo em que os professores se esforçam por explorar os conteúdos programáticos tradicionais, que aqui ainda estão de pedra e cal, praticamente intocáveis. Sempre o espectro dos exames no futuro!
Quer dizer que isto está tudo mal? Claro que não! Até penso que não pode ser de maneira muito diferente. Para aprender é preciso tempo. Até os génios das informáticas precisam de tempo para fazerem salas de aula digitais, à distância, que funcionem bem. Não tenho dúvidas nenhumas que eles estão na primeira linha dos que estão a aprender neste tempo de inesperada turbulência no ensino, em praticamente todo o mundo.
Não sei se estou a tirar algum coelho da cartola, mas a aula que eu chamarei matriz para esta altura é a aula-não-aula.
A Psicologia Social já há muito que mostrou que nós não podemos ser, ao mesmo tempo, o sujeito que age, o espectador que se observa a si-mesmo e o estudante que vê o sujeito e a sua acção como objecto de estudo e aprendizagem nos livros e nos computadores.
O tempo que vivemos agora é um tempo histórico, único, como nunca houve antes nem alguma vez vai acontecer outra vez — é que não amor como o primeiro.
As minhas aulas agora são, todas elas, organizadas sob a égide do protagonismo dos alunos no tempo histórico que está a acontecer na vida deles — tanto o que é bom, como o que não é bom.
Eu só posso falar do que sinto se sentir; eu só posso pensar no que faço, ou fiz, se fizer ou se tiver feito; eu só posso guardar memória das minhas acções se as realizar, se não for um simples espectador das coisas que acontecem à minha volta.
Logo que o confinamento começou, eu sugeri que nas famílias se suspendesse o estatuto de pais e de filhos e passasse a vigorar, em período de quarentena, o estatuto partilhado, igualizador, de cidadão, e dei exemplos de como isso se traduziria na vivência do dia-a-dia de todos em condição de confinamento em casa.
Por isso eu advogo que as aulas devem ser, em geral, conduzidas de maneira a que os alunos olhem à sua volta e sejam protagonistas activos de um tempo único na História dos Homens e das Sociedades Humanas, Não lhes roubem essa oportunidade única, não os fechem ainda mais em casa, no reino desvitalizado dos livros e das matérias escolares.
No fundo, foi isto que a Greta Thunberg quis fazer: ser protagonista do seu tempo, não apenas uma espectadora das coisas do Mundo a passarem por ela.
Como imortalizou a pintora Maria Helena Vieira da Silva, em tantas pinceladas do 25 de Abril, “A Poesia está na Rua”; e nós, paradoxalmente, fechados em casa! Mas o tempo é mesmo de Poesia! Não se roube aos miúdos de desfrutarem esse tempo.
No teu tempo de escola, António, ainda muito se visitava o Clube dos Poetas Mortos, em que o professor Keaton desafiava os alunos a acrescentarem o seu verso à grande sinfonia do Mundo. Não é este o tempo de deixarmos as crianças e os jovens viverem o tempo, penetrando nele, e assim ganhando inspiração para o seu verso?
Para lá da dramática pandemia, que está ao alcance dos alunos verem e fazerem acontecer?
É inegável que se abriu, escancarou mesmo, uma janela de oportunidade para o tremendo valor da Solidariedade Humana. É inegável que o Ambiente, perante a intensa redução da actividade humana, reagiu prontamente e baixou imenso os níveis de poluição, limpou os canais de Veneza, fez regressar os animais a lugares donde já tinham desaparecido, parecia que definitivamente.
Perante o terrível espectro das alterações climáticas, o Ambiente respondeu, nesta janela de oportunidade, «Estou pronto!»
Este é o tempo em que as gerações do Futuro têm aqui a sua viagem, o seu Regresso ao Futuro. Sim, mudar é possível! Sim, é possível deter as alterações climáticas! Sim, é possível as pessoas serem mais solidárias! E não é porque isso está nos livros de estudo! É porque está mesmo a acontecer!
Não tirem as crianças e os jovens das janelas! Não os obriguem a estar fechadas no quarto ou na sala com os olhos nos computadores ou nas aulas da Telescola! Deixem-nas viver o tempo do Futuro! Deixem-nas ser protagonistas desse Futuro!
António, não são quimeras, não são sonhos de uma noite de Verão! É a realidade a acontecer à nossa volta!
Querem os jovens a acreditarem no Futuro e a apostar nele? Então deixem-nas ser protagonistas do Livro da Vida que está a acontecer nestes dias, nestas semanas, nestes meses.
O Futuro é possível. O Futuro que desejamos para os nossos filhos e netos está agora a acontecer. Deixem ao jovens saboreá-lo. Conhecendo-o, na primeira pessoa, mais convictamente lutarão por ele. A Utopia é possível, António!
Já escrevi demais, já me fizeste escrever demais. Mas sei que muito mais escreverei acerca destas coisas.
Para já, nas minhas aulas, o repto, o desafio é então esse (só mesmo 2 ou 3 exemplos):
· Tens que estudar os “Riscos” na disciplina de Cidadania e Desenvolvimento? Muito bem. Olha à tua volta: que riscos corremos quando desrespeitamos o equilíbrio ambiental? Estão a ver que pode haver um Ambiente melhor caso não punhamos em risco as pessoas, os animais e a Natureza? Estão a ver os riscos em que pomos o Homem caso desrespeitemos a natureza dos lugares que habitamos e consumamos os recursos naturais desreguladamente? Ou os riscos que criamos para o Homem quando exploramos cegamente a vida dos animais pensando que eles nos pertencem de pleno direito?
· Tens que estudar os Processos Afectivos nas relações individuais e de grupo? Repara como se sentem as pessoas quando os afectos são positivos… Repara como se sentem as pessoas, e o que conseguem quando a solidariedade domina sobre a competição…
· Tens de estudar o conceito de Recaída nos grupos humanos em risco? Repara se recaímos nos comportamentos consumistas e acelerados dominantes no tempo de antes da pandemia e do confinamento? O que voltamos a perder? Será que o que recuperamos vale o que vamos outra vez perder?
António, este texto foi escrito de rajada, sei que aqui e ali vou reformulá-lo, corrigir, modificar, acrescentar, cortar. Mas o essencial da resposta à questão que me puseste está cá:
O coelho da cartola é a aula-não-aula. Ajudar as crianças e os jovens a olhar à sua volta, ver o que está a acontecer; e a olharem para dentro de si, tomando consciência do que estão a sentir. Conversar com eles sobre tudo isso. Sugerir-lhes olhares e objectos de atenção e exploração. Fazer cada um o primeiro protagonista do seu próprio Futuro. Nada como o que está a acontecer pode dar tanta esperança no Futuro e na Vida aos jovens. Nem a mais sofisticada plataforma digital, nem o mais pintado dos professores.
O professor de agora é o genuíno pedagogo: o que conduz discretamente o aluno para a escola, e a escola é o mundo que está a acontecer à volta do aluno. Deixem-no desfrutar do que está a acontecer! Não sei se mais alguma vez na vida terão essa oportunidade. Mas, se olharem bem à sua volta, verão e formarão a mais absoluta das convicções: «Sim, é possível!»
Forte abraço, António! Obrigado pelo desafio que me lançaste. Votos de um Futuro promissor para os teus filhos!
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