quinta-feira, maio 23, 2019

CRESCER E APARECER. A LEMBRAR O ADOLESCENTE PEREGRINO DE GUERRA JUNQUEIRO

ESPLENDOR E SOMBRA SOBRE A EUROPA, 9/12

CRESCER E APARECER. A LEMBRAR O ADOLESCENTE PEREGRINO DE GUERRA JUNQUEIRO

Depois de começar o capítulo "Universitas Vitae" a dizer que
«Chegado o último ano do velho século [está a falar do séc. XIX], chegou também o momento, há tanto tempo esperado, em que pudemos fechar atrás de nós a porta do odiado liceu»(1),
Stefan Zweig, umas páginas mais à frente, escreve:
«numa época em que tudo se absorve, onde é fácil estabelecer amizades e em que as diferenças sociais ou políticas ainda não estão anquilosadas, um jovem aprende realmente melhor o que é essencial no contacto com os que com ele se esforçam por avançar, do que com os superiores.»(2)
O trágico autor, aos poucos, toma consciência das turbulências interiores que o atraem e lhe pedem toda a dedicação pessoal que consiga:
«[…] No meu íntimo, era agora claro qual o caminho a seguir nos anos que aí vinham; ver muito, aprender muito, e só depois começar de verdade! 
[…] Talvez seja necessário fazer aqui um pequeno esclarecimento. A nossa época vive demasiado depressa um número excessivo de acontecimentos para conseguir manter deles uma memória fiel e não sei se o nome Emile Verhaeren ainda significa alguma coisa nos dias que correm. Verhaeren tinha sido o primeiro de todos os poetas franceses a tentar dar à Europa o que Walt Whitman deu à América: uma profissão de fé no seu tempo, uma profissão de fé no futuro. Começara a amar o mundo e queria conquistá-lo para a poesia. Enquanto que, para os outros, a máquina era o mal, as cidades eram o feio, o presente era a antipoesia, ele entusiasmava-se com cada nova descoberta, com cada feito da técnica e entusiasmava-se com o seu próprio entusiasmo, entusiasmava-se com plena consciência, para melhor sentir essa paixão. Os poemas iniciais deram origem a grandes hinos caudalosos. “Admirez-vous les uns les utres» era a sua sigla para os povos da Europa. Todo o optimismo da nossa geração, um optimismo que há muito se tornou incompreensível para a época de terrível regressão que hoje estamos a viver, encontrou nele a primeira expressão poética, e alguns dos seus melhores poemas ainda serão por muito tempo o testemunho da Europa e da humanidade com que então sonhávamos. »(3)
Que concluirão jovens adultos, quais adolescentes peregrinos, mendigos, arrimados ao cajado, agora, pouco mais de 100 anos depois, com as realidades dramáticas e esperançosas que o século que passou lhes mostra? Sim, o desafio é grande - e não pede senão dedicação.
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(1) “O Mundo de Ontem, recordações de um europeu”, de Stefan Zweig (1942), publicado pela Assírio & Alvim, reimpressão de 2017, p. 118. 
(2) “O Mundo de Ontem, recordações de um europeu”, de Stefan Zweig (1942), publicado pela Assírio & Alvim, reimpressão de 2017, p. 145. 
(3) “O Mundo de Ontem, recordações de um europeu”, de Stefan Zweig (1942), publicado pela Assírio & Alvim, reimpressão de 2017, pp. 149-50. 

terça-feira, maio 21, 2019

EUROPEUS E REFUGIADOS; E REFUGIADOS EUROPEUS DENTRO DA PRÓPRIA EUROPA

ESPLENDOR E SOMBRA SOBRE A EUROPA, 8/12

EUROPEUS E REFUGIADOS; E REFUGIADOS EUROPEUS DENTRO DA PRÓPRIA EUROPA

No último capítulo do seu livro de memórias (dramaticamente chegadas ao momento do suicídio,
levado a cabo com a esposa), significativamente titulado "A Agonia da Paz", Stefan Zweig fala do tempo em que, já a fugir do ambiente que germinava a 2.ª Grande Guerra, se encontrava em Inglaterra.
«A queda da Áustria levou a uma alteração na minha vida privada, que comecei por considerar como absolutamente insignificantee meramente formal: fez.me perder o passaporte austríaco e tive de solicitar às autoridades inglesas a sua substituição por um papel branco, um passaporte de apátrida.»(1)

A estranheza, o absurdo em que se sentia, fá-lo escrever assim um pouco mais à frente:
«De um dia para o outro, voltei a descer mais um degrau. Ontem ainda hóspede estrangeiro e, por assim dizer, um gentleman que aqui vivia dos seus rendimentos internacionais e pagava os seus impostos, e agora um emigrante, um refugee. Tinha resvalado para uma categoria inferior, embora não desonrosa.»(2)
É, pois, já quase num aviso histriónico às novas gerações, Stefan Zweig se esforça para deixar claro na cabeça de todos:
«[…] Antes de 1914, a Terra era de todos. Cada um ia para onde queria e ficava o tempo que quisesse. Não havia autorizações, permissões, e divirto-me sempre ao ver o espanto dos mais jovens quando lhes conto que antes de 1914, andei pela Índia e pela América sem passaporte e sem nunca ter visto sequer um passaporte. Uma pessoa entrava num meio de transporte e apeava-se sem perguntar nada e sem que nada lhe fosse perguntado; das centenas de papéis que hoje são exigidos, não era preciso preencher um único. Não havia nem permits, nem vistos, nem maçadas; as mesmas fronteiras que, devido à desconfiança patológica de todos contra todos estão hoje transformadas numa barreira de arame farpado, com funcionários alfandegários, polícia, postos da guarda, não eram mais do que linhas simbólicas que se atravessavam com a mesma descontração com que se passa o meridiano de Greenwich. Só depois da guerra é que o mundo se viu abalado pelo nacional-socialismo, e o primeiro fenómeno visível desta epidemia espiritual do nosso século foi a xenofobia: o ódio ao outro ou, pelo menos, o medo do outro. Em todo o lado as pessoas protegiam-se do estrangeiro, em todo o lado ele se via excluído. Todas as humilhações outrora criadas exclusivamente para os criminosos eram agora infligidas ao viajante antes da viagem e durante a viagem. Uma pessoa tinha de se deixar fotografar do lado direito e do lado esquerdo, de perfil e de frente, com o cabelo tão curto que deixasse a orelha à vista; tinha de tirar as impressões digitais, primeiro só do polegar, depois de todos os dez dedos e, além disso, de apresentar certificados, certificados de saúde, de vacina, de boa conduta, boas referências, tinha de poder apresentar convites e endereços de parentes, tinha de oferecer garantias morais e financeiras, de preencher e assinar impressos em triplicado, em quadruplicado, e se faltasse um único elemento nesta pilha de folhas, estava tudo perdido.
Todas estas coisas podem parecer ninharias. E à primeira vista, pode até parecer niquento da minha parte mencioná-las. Mas foi com estas “ninharias” absurdas que a nossa geração desperdiçou absurdamente um tempo precioso e irrecuperável.»(3)
Teremos nós noção do essencial valor desta liberdade pessoal perdida? De quanto vale o que temos, e do que estamos em risco de perder? Seria, ainda há poucos meses, imaginável para nós pensarmos que voltaríamos -  como já está outra vez a acontecer aos portugueses! - a necessitar de um visto para entrar no Reino Unido?
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(1) “O Mundo de Ontem, recordações de um europeu”, de Stefan Zweig (1942), publicado pela Assírio & Alvim, reimpressão de 2017, p. 375. 
(2) “O Mundo de Ontem, recordações de um europeu”, de Stefan Zweig (1942), publicado pela Assírio & Alvim, reimpressão de 2017, p. 476. 
(3) “O Mundo de Ontem, recordações de um europeu”, de Stefan Zweig (1942), publicado pela Assírio & Alvim, reimpressão de 2017, pp. 377-8. 

domingo, maio 19, 2019

A IMPORTÂNCIA DOS VALORES NOS COMPORTAMENTOS DA CIDADANIA SOLIDÁRIA

ESPLENDOR E SOMBRA SOBRE A EUROPA, 7/12

A IMPORTÂNCIA DOS VALORES NOS COMPORTAMENTOS DA CIDADANIA SOLIDÁRIA

Crianças alemãs usando notas de marco para construir uma torre em 1923.
Ainda incrédulos com a tragédia da 1.ª Grande Guerra, os austríacos tentavam vencer o absurdo que muitos nunca tinham pensado que alguma vez pudesse acontecer. A brutal crise económica e financeira consecutiva à guerra, «em que, na Áustria, um ovo era tão caro como tinha sido um carro de luxo, e que esse ovo seria pago, mais tarde, na Alemanha, ao preço de quatro mil milhões de marcos - quase tanto como o valor de todas as casas da zona de Berlim anteriores à guerra»(1), pressionava todos os dias.
«Mas, surpreendentemente, o que acontecia era exactamente o contrário. A vontade de continuar a viver mostrou ser mais forte do que a instabilidade da moeda.»(2)
Afinal, os cidadãos austríacos, em razão do profundo desenvolvimento sócio-cultural acumulado gerações após gerações resistiam:
[…] Devido precisamente ao inesperado da situação — a desvalorização diária do dinheiro, outrora o valor mais estável —, as pessoas davam maior apreço aos autênticos valores da vida — ao trabalho, ao amor, à amizade, à arte e à natureza — e todo o povo vivia, no meio da catástrofe, de forma mais intensa e mais empolgante do que antes; rapazes e raparigas calcorreavam as montanhas e regressavam a casa tisnados pelo sol, os salões de baile ofereciam música até às tantas, por toda a parte surgiam novas fábricas e novas casas comerciais; eu próprio penso nunca ter vivido nem trabalhado mais intensamente do que naqueles anos. O que fora importante para nós antes da guerra, tornara-se mais importante ainda; nunca na Áustria amámos mais a arte do que naqueles anos de caos, porque a traição do dinheiro fazia-nos sentir que só a eternidade em nós era verdadeiramente imutável.»(3)
Sabemos agora que, mais uma vez, os valores - nobres, solidários - soçobraram perante  os seus contrários: os da competição, da rivalidade e dos nacionalismos egoístas - que desembocaram na ainda mais trágica 2.ª Grande Guerra.
Será que estamos, outra vez, a deixar que a esforçada tessitura congregadora, colaborativa e solidária do sonho dos fundadores do ideal da Europa Unida vai deixar-se vencer pelos que defendem as venenosas e ilusórias promessas populistas e divisionistas?
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(1) “O Mundo de Ontem, recordações de um europeu”, de Stefan Zweig (1942), publicado pela Assírio & Alvim, reimpressão de 2017, p. 344. 
(2) “O Mundo de Ontem, recordações de um europeu”, de Stefan Zweig (1942), publicado pela Assírio & Alvim, reimpressão de 2017, p. 345. 
(3) “O Mundo de Ontem, recordações de um europeu”, de Stefan Zweig (1942), publicado pela Assírio & Alvim, reimpressão de 2017, p. 345. 

domingo, maio 12, 2019

LIBERDADE OU DISSOLUÇÃO DOS COMPORTAMENTOS E DOS COSTUMES?

ESPLENDOR E SOMBRA SOBRE A EUROPA, 6/12

LIBERDADE OU DISSOLUÇÃO DOS COMPORTAMENTOS E DOS COSTUMES?

Depois de acabada a 2.ª Grande Guerra, imediatamente depois, Stefan Zweig volta para a Áustria. Escreveu ele: «De um ponto de vista lógico, tratou-se da maior insensatez que eu podia ter cometido após a derrota das armas alemãs e austríacas».
Que ambiente de vida social se foi, nessa altura, aos poucos, instalando na sociedade austríaca?
Ao lermos o seguinte trecho, que semelhanças encontramos com os tempos de hoje? Há exactamente 100 anos de diferença entre o tempo histórico de Stefan Zweig e o nosso:

[…] A grande, a sagrada promessa feita a milhões de pessoas, de que aquela guerra
Wandervogel Movement / Photo c. 1914
seria a última, essa promessa, à qual os soldados, já meio desiludidos, meio desesperados e extenuados, ainda tinham ido buscar a sua derradeira energia, foi cinicamente sacrificada aos interesses dos fabricantes de armamento e à paixão do jogo alimentado pelos políticos que souberam pôr triunfalmente a salvo, contra a exigência sábia e humana de Wilson, a sua desastrosa tática de acordos secretos e de conversações à porta fechada. Desde que tivesse os olhos bem abertos, todo o mundo via que tinha sido enganado. Enganadas as mães que sacrificaram os seus filhos, enganados os soldados que regressaram como pedintes, enganados todos os que tinham subscrito patrioticamente empréstimos de guerra, enganado quem confiara nas promessas do Estado, enganados nós que sonháramos com um mundo melhor e mais ordenado, e agora víamos que tinha recomeçado a jogatina do costume, na qual a nossa existência, a nossa felicidade, o nosso tempo, os nossos haveres eram lançados no pano verde, precisamente pelos mesmos ou por novos aventureiros. É então de admirar que uma geração inteira de jovens olhasse com rancor e desprezo para os seus pais, que começaram por deixar escapar a vitória e depois a paz? Que fizeram tudo mal, que nada previram e cujos cálculos saíram todos errados? Não era compreensível que toda e qualquer forma de respeito desaparecesse da nova geração? Uma juventude inteiramente nova já não acreditava nos pais, nos políticos, nos professores; qualquer determinação, qualquer proclamação de Estado era lida com olhar desconfiado. De uma penada, a geração do pós-guerra emancipou-se brutalmente de tudo quanto até aí fora válido e voltou as costas a todas as tradições, decidida a tomar em mãos o seu destino, longe do passado que ficara para trás e lançando-se para o futuro. Um mundo inteiramente novo, uma ordem inteiramente diferente deveria nascer com ela em todos os âmbitos de vida; e como é natural, o começo foi marcado por exageros descontrolados. Quem não fosse, ou tudo aquilo que não fosse da sua faixa etária era posto de lado. Em vez de viajarem com os pais, como dantes, os miúdos de onze, doze anos, rumavam pelo país fora até à Itália ou ao Mar do Norte, organizados em grupos designados de
Wandervögel(1) e perfeitamente esclarecidos sobre questões sexuais. Nas escolas organizaram-se conselhos de alunos de acordo com o modelo russo, que vigiavam os professores e o «plano de estudos», subvertendo-o, pois as crianças só deviam e só queriam aprender o que lhes agradasse. A revolta ocorria pelo simples prazer da revolta, contra as formas estabelecidas, até mesmo contra a vontade da natureza, contra a eterna polaridade dos sexos. As raparigas usavam o cabelo tão curto, à la garçonne, que não era possível distingui-las dos rapazes; por seu lado, os homens rapavam a barba para parecerem mais femininos; a homossexualidade e o lesbianismo tornaram-se numa grande moda, não por uma questão de inclinação natural, mas como protesto contra as formas tradicionais, legais, normais do amor. Todos os modos de expressão da existência se esforçavam por pôr em destaque o seu carácter radical e revolucionário, e claro que a arte não constituía excepção.»(2)
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(1) A tradução directa leva-nos a "aves migratórias". Arrisco "vagabundeadores".
(2) “O Mundo de Ontem, recordações de um europeu”, de Stefan Zweig (1942), publicado pela Assírio & Alvim, reimpressão de 2017, pp. 349-50.