Estou, outra vez, a participar numa acção de formação de professores, daquelas que os professores têm de fazer por imposição da tutela ministerial, senão!... Assim ao jeito do paternal anúncio da clássica rábula de Raul Solnado, «Meu filho, queres queiras, quer não queiras, hás-de ser bombeiro voluntário.»
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Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão, "O Mistério da Estrada de Sintra,
Carta ao editor, 14 de Dezembro de 1881 |
Esta formação é 'on line'. Graças a deus!, seja ele qual seja, já que a disponibilidade de tempo para estas coisas não é, na verdade, grande; nem tão pouco, tantas vezes!, a desejável.
Vou fazendo o que posso, contornando, "indisciplinadamente", a formal obrigação de ler as coisas que os formadores - nossos colegas professores - querem, muito boamente, que a gente leia. Raros - muito raros mesmo! - são os colegas que começam por indagar junto dos colegas o que pensam sobre os assuntos; o que sabem ou não, e que experiência têm deles; e que leituras são as suas.
Os formulários de apresentação de candidaturas para acções de formação para professores exigem que os auto-propostos formadores apresentem uma lista de obras de referência; e quanto mais extensas melhor! Ah! E com muitos autores estrangeiros!
Para mim, estas acções são, actualmente, muito interessantes oportunidades de trocar ideias, experiências e sugestões com colegas - e deveriam ser libertadas, o mais possível, das formalidades da participação, e da presença constante, velada, do "Big Brother" que está "watching you", escalpelizando se estamos a cumprir - disciplinadamente - com as regras e os rigores procedimentais.
Não se pense que só cá, em Portugal, as coisas acontecem assim! Terminei recentemente uma (quer dizer, outra!) formação 'on line', numa universidade brasileira e passou-se também o mesmo, em que formadores (seria interessante apreciar a competência técnica, científica e humana que tinham para liderar - ministrar? - a formação que comandaram), objectivamente diziam aos formandos qualquer coisa do tipo: «Ou fazes assim desta maneira como a gente quer, ou...». Pois bem, neste caso da universidade brasileira, eu fui indisciplinado (mas não mal-educado), disse-lhes que não faria daquela maneira, e não fiz mesmo! Agora, que foi interessante falar com outros colegas, conhecer as suas opiniões, ouvir as suas experiências, claro que foi! E acho isso cada vez mais interessante, num mundo - o da escola e do ensino - cada vez mais "poluído" por livros cheios de "saberes" formatados (os livros e os saberes) por normas (da APA ou outras), e que produzem "citações" em artigos científicos e outros livros, escalpelizados à décima ou centésima de contagens de "número de citações" (tão procuradas pelos abutres - há tantos entre nós! - deste mundo da investigação "científica" e "pedagógica"), contagens essas feitas por sofisticadíssimo "software"; software "especializado", evidentemente.
É por isso que agradeço à colega Sílvia a oportunidade que me deu (repito, precisamente numa destas tais acções de formação de professores, sobre a gestão da indisciplina em sala de aula) de pensar sobre o que a seguir escrevo; e que é, afinal, bem mais pequenino que todo o arrazoado do desabafo que acabo de fazer - e espero ter sido só "indisciplinado", "irreverente", ou mesmo "pavão", mas sem ter sido "mal-educado".
Olá, Sílvia!
Agradeço-lhe o seu apontamento porque me ajuda a clarificar um pensamento sobre o tema da indisciplina, que anda muitas vezes de mãos dadas com a má educação (não será melhor dizer má-criação?).
Na sala de aula as relações entre os professores e os alunos podem ser analisadas do ponto de vista das relações pessoais que se estabelecem (em que se deseja, basicamente, cordialidade e respeito) e do ponto de vista das tarefas (em que se deseja que os alunos aprendam os conteúdos leccionados pelos professores).
Assim, direi que aquilo a que chamamos "má educação" tem mais a ver com as relações humanas (perturba a cordialidade afectiva e desafia o respeito pessoal) e a indisciplina tem mais a ver com as tarefas (perturba o desenrolar das sequências de trabalho e de transmissão de conhecimentos).
Será esta distinção importante? Bem, se não for esta, será outra... Por exemplo, quando a meio de uma aula, vindo não sabem os professores são apanhados pelo desabafo, que se sobrepõe à sua voz, que dispara «Estou farto desta aula!...» (ou outra coisa qualquer), penso que a primeira coisa a fazer é tentar esclarecer na sua cabeça se se trata de um problema de má educação ou de indisciplina. É que tratar um problema de indisciplina como se fosse um problema de má educação, ou ao contrário, pode ser o primeiro passo para uma cadeia de reacções indesejáveis, não apenas na aula em que ocorre, mas nas outras que depois se seguirão, com prejuízo nas relações humanas e nos processos de aprendizagens.
Faz sentido para si, Sílvia, o que estou a dizer?
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12MAR17, às 14h00. Acabei de acrescentar assim no fórum de discussão a que pertence o apontamento que transcrevi imediatamente antes, discutindo uma opinião que diz que «As causas da indisciplina, no meu entender, prendem-se essencialmente com a situação familiar instável.»:
Tenho uma opinião bastante diferente da sua sobre as causas da indisciplina e sobre o "contributo" ou "culpa" dos pais na indisciplina dos filhos. É claro que nada me diz que a minha opinião esteja mais correcta do que a sua, nada me dá legitimidade para o dizer.
Entretanto a sua reflexão faz-me sentir a necessidade de juntar à discussão deste fórum duas ou três coisas:
1.ª) Indisciplina é uma coisa, má-criação é outra, instabilidade é outra. No nosso fórum, parece-me interessante distinguir os três conceitos; neste caso, do ponto de vista, não da delimitação/enumeração dos comportamentos que caracterizam cada um deles, mas das dinâmicas relacionais que põem em jogo.
Direi que a indisciplina é reactiva (disruptiva, e não necessariamente opositiva) à situação (ou ao contexto) das relações pessoais e sociais imediatas: o aluno (ou os alunos) reagem(m) ao que está a acontecer no momento, em relação a um espaço (em sentido estrito, a sala de aula) e a uma tarefa (a lição apresentada pelo professor).
Direi que a má-criação é conflitual (defensiva-agressiva, não necessariamente indisciplinada), em que estão implícitos valores e laços (por exemplo, o aluno que "não respeita" a autoridade do professor; ou o professor que "ofende" o nome da mãe com alguma coisa que diz); é situacional, e duradoura, certamente mostrando valores e aprendizagens sociais, tanto dos alunos como dos professores - sim, nós, os professores, também não somos produtos de uma única cultura; e quantas vezes falamos da boa e da má educação dos nossos próprios colegas). Quer dizer, quando se instala, em sala de aula, a altercação entre o aluno e professor, os substractos da formação ética, moral, social, relacional de ambos vêm ao de cima, um e outros auto-atribuindo-se direitos (mais do que deveres) que duma e doutra parte se consideram desrespeitados.
Direi que a instabilidade é condicionante (afectiva, cognitiva e relacional) que perturba a avaliação das situações e pode dificultar a regulação pelo próprio sujeito (aluno ou professor) das emoções, sentimentos e percepções das situações em jogo na sala de aula - e que leva tantas vezes os alunos a sentirem que são injustamente acusados pelos professores ("O 'setôr' só me viu a mim...", "eu só me virei para trás porque o meu colega me chamou, nem sequer fui eu..."). Portanto, a instabilidade modula a avaliação da situação. Atenção! Tanto no aluno, como no professor! As investigações que hoje em dia se fazem sobre a condição emocional dos professores!, e não é só por aquilo que os alunos fazem nas aulas!, é sobressaturado pela carga de trabalho e as exigências que a tutela faz sobre os professores!
2.ª) É fácil resvalar para a ideia (cómoda) de que o aluno é o protagonista-culpado (autor do comportamento disruptivo); o professor é o protagonista-vítima (personifica a autoridade, ou educação, ou tarefa posta em causa); e o pai é o protagonista-causa (está constantemente em falha, acusado, pela escola, de não cumpri o seu papel educativo).
3.ª) Será mesmo possível falar de gestão da indisciplina em sala de aula sem falar de outras coisas que, noutras alturas e noutros espaços tanto os professores discutem, como é o caso da extensão dos programas, o número de disciplinas em cada ano, as cargas lectivas de professores e alunos; as condições de sala de aula, os recursos disponíveis, etc., etc., etc.?
P. S. - Continuo indisciplinado, quer dizer, continuo sem ler os documentos que nos foram propostos - ainda é mais importante para mim tentar perceber, no precioso espelho que são os escritos dos meus colegas de formação, e nas suas opiniões, o que eu realmente penso sobre estes assuntos. Talvez amanhã ou depois eu leia os documentos.
A provocação para os colegas: se eu fosse aluno de algum(a) dos colegas, o que fariam comigo? Diriam que eu era indisciplinado, malcriado, ou que os meus pais não me davam educação?