sábado, dezembro 30, 2017

Os cachalotes e o narval - duas realidades: a concreta e a virtual

Estava a ver este belo vídeo - que dispensava perfeitamente o extra da
encantatória melodia do piano - e veio-me à cabeça o título, alinhado com cada mais coisas também assim, "História do Mundo sem as Partes Chatas"; isto é, cada vez mais se produzem coisas "sem as partes chatas" - e assim se cria a ilusão:cada vez mais o Mundo existe com tudo pronto, simples, directo, imediato, sem as partes chatas, ali bem à nossa espera. É tudo fácil, basta um toque num botão (virtual, evidentemente; o toque é no écrã), numa imagem - a viagem, real ou virtual, está marcada.


Quem, como eu, já foi muitas vezes ao mar, ao lardo do Faial e do Pico, à procura dos grandes cachalotes (e vou como turista!, a desfrutar, não fazendo disso a minha actividade profissional rotineira...), sabe que, na verdade, nada existe na Realidade Concreta sem as partes chatas. Mas vende-se cada vez mais essa ilusão, educam-se cada vez mais as novas gerações dessa maneira - depois, os mais velhos queixam-se que os mais novos são impacientes, intolerantes, permanentemente insatisfeitos, não suportam as mínimas frustrações, etc., etc., etc.
Repito: este vídeo é muito bonito. Agora, de quantos retalhos é feito? Com adequada atenção à sequência de imagens, podemos constatar que o vídeo que o sofisticado e moderníssimo drone produz é uma composição de muitos retalhos - quer dizer, para embelezar virtualmente a natural e concreta beleza, eliminaram-se as partes chatas.
É essa a decepção que tantas vejo nas minhas saídas para o mar: onde estão os grandes animais que quase vêm ali à proa do barco a jeito de a gente lhes fazer festas junto aos olhos e no lombo? Onde estão aqueles pinchos, tipo, "Vá, prepara a máquina fotográfica, aqui vou eu! Um... dois... três! Dispara!"? «Eh, pá, eu não sabia que tinha de andar mais de uma hora no barco, a grande velocidade, praticamente sem ver nada...» «Olá... isto, afinal, balança, já estou a sentir-me enjoado, isto é mesmo desagradável, pronto, vou vomitar, só espero que depois fique bem.» E quantas vezes se volta para terra, 3 ou 4 horas depois e parece que aquele imenso mar mingua de animais como nunca se imaginaria.
Sim, cada vez mais penso que estes cada vez mais presentes vídeos de divulgação (onde nos levarão ainda os drones e outros que tais?... que até já dispensam os grandes canais televisivos especializados? Qualquer um de nós pode ser autor de belezas assim...) são uma faca de dois gumes, e cada vez mais os vejo pelo gume em que me corto, não pelo gume que corto o que quero.
#Açores, #cachalote, #realidade, #realidade virtual

sexta-feira, junho 30, 2017

Cultura. Avisos. Rossio, e a Rua da Betesga.

O monumental livro de Dietrich Schwanitz, "Cultura, tudo o que é preciso saber" é uma tentativa - mais uma! - de condensação da História do Mundo (pelo menos do mundo ocidental), de acordo com a tradicional imagem de enfiar o Rossio na Rua da Betesga.
A edição que eu estou a ler é a 16.ª, revista e adaptada para Portugal pela D. Quixote, em Janeiro deste ano. Embora o autor tenha morrido em 2004, a informação na borda da capa é omissa nessa informação - não deixo de me perguntar porquê...
Parece-me um livro arejado, escrito por quem tem muita informação; e é como se estivesse à mesa do café, bebericando uma muito agradável cerveja, e fosse falando sobre os acontecimentos do Mundo e a História dos Europeus. Tenho clara certeza de que o meu interesse na obra foi decisivamente determinado pelo facto de ser um estudioso alemão; se fosse inglês, francês, espanhol ou português, seguramente o deixaria para ser comprado na Feira do Livro do ano que vem. moveu-me a curiosidade de ter a perspectiva "do outro lado", a dos que estão fora das "narrativas" dos vencedores das Grandes Guerras. Vou agora a meio do livro. Vale bem a pena. É de 1999, pois é, mas só agora me apareceu à frente.
Se duvidava sobre escrever e publicar sobre uma das perplexidades que para já nele encontrei, a leitura de um apontamento que o senhor Capitão de Abril, o coronel Sousa e Castro, acrescentou hoje ao seu mural no Facebook, levou-me as dúvidas que tinha: é que é mesmo necessário pensarmos a sério nestas coisas da Paz e da Guerra, como, há cerca de 50 anos, nos Estados Unidos da América, o célebre professor de História de um grupo de alunos tomou consciência, quando interrogava os seus alunos sobre se um fenómeno social e político como Hitler e o Nazismo seriam possíveis novamente, e um dos seus alunos lhe respondeu que não - "é que os jovens, dizia muito empavoadamente o rapaz, hoje em dia estão muito bem informados". Preocupado, esse professor "montou-lhes uma cilada", pedagogicamente muito bem feita, e no tempo de uma semana de trabalho, literalmente falando, desenganou o convencido aluno e os seus colegas - o que deu origem às sucessivas edições de "A Terceira Onda" e "A Onda" (readaptação para os tempos actuais numa escola alemã) - filme notável!, que todos os anos mostro aos meus alunos de Psicologia.
Ora o convencimento do rapaz, de há 50 anos atrás, é o mesmo dos rapazes de agora!...
Já agora, a quem não conhece este documentário, recomendo-o vivamente: A Terceira Onda.
Então, o que diz o alemão Schwanitz, lá do alto da sua poderosa, e muito bem sustentada, reflexão cultural? Diz duas ou três coisas que nos devem obrigar a pensar:
«Hoje é inimaginável a onda de alegria que a eclosão da [Primeira Grande] guerra causou, sobretudo na Alemanha. O conflito foi vivido como a fusão do indivíduo com o colectivo numa festa que aliviava as limitações de uma vida cristalizada na rotina de uma sociedade industrial.» (p. 210)
Alegria?!... Pela guerra?!...
Mais à frente, o interessante autor escreve:
«As gerações nascidas depois da guerra perguntam: Qual foi a causa de tamanha loucura? A identidade romântica dos alemães, conjugada com a sua submissão cega à autoridade do Estado. Esta mistura especializou-os em duas modalidades não olímpicas: a obediência incondicional e a submissão da ralidade pela fantasia. Hitler oferecia-lhes as duas: milícias e fantasias nacionalistas. Ditoso o povo que dá o seu amor a mulheres e homens que sabem pensar pela sua cabeça e não admitem ser tratados por menores nem aceitam qualquer ordem que não possam aceitar como certa.» (p. 224)
Finalmente, do ponto de vista que quero aqui explorar:
Os alemães tinham-se identificado com Hitler até ao fim e seguiram-no até à ruína. Nunca um governante fora tão popular entre os alemães como ele. Primeiro, tornara-se a personificação da sua patologia, depois, induzira-os a celebrar com ele uma festa de bruxas sem precedentes: estas coisas unem. Ainda hoje a Alemanha se encontra possuída por ele, quando jura de dois em dois minutos que já o superou. (p. 232-3)
 Onde quero eu chegar? Que, invocando Rodrigo Sousa e Castro, Capitão de Abril, devemos ter umas Forças Armadas que nos protejam dos alemães, sempre sequiosos de guerras e da conquista do Mundo? Não senhor. "Apenas" (ironizo, como se de uma coisa de somenos importância de tratasse...) que a Guerra e a Paz, as Armas e os Exércitos, têm de ser lúcida e seriamente pensados - sempre! -, até porque as granadas e balas por aí agora espalhadas - roubadas às forças armadas a sério! - não têm como destino as bombas de carnaval e os fogos de artifício das passagens de ano. E parece-me esse o sentido do alerta do senhor coronel Sousa e Castro: que se pense a sério, nas instâncias responsáveis, sobre as Forças Armadas, e as maneiras de manter a Paz e evitar a Guerra. Com o fogo não se brinca!

domingo, junho 25, 2017

O padre António Vieira, os escravos e os índios do Brasil

Não tenho estabilizado, nem pacificado, o entendimento sobre o que o padre António Vieira fez e disse sobre a escravatura, os negros (africanos traficados para o Brasil) e os índios (nativos da América do Sul).
Não conheço ainda o suficiente da obra e dos escrito do padre António Vieira, o que me leva a ter a ideia (espero que errada) de que os nativos índios eram os filhos queridos, e os traficados negros eram os filhos, enfim, "bastardos" (no sentido tradicional de serem desvalorizados, quiçá, desprezados).
Foi pura coincidência, ontem, ler, no "Cultura", de Dietrich Schwanitz,
[...] Isto conduz à segunda catástrofe: raptam-se em África negros que suportam o clima e o trabalho nas plantações e vendem-se como escravos. Na Lisboa manuelina, com cerca de cem mil habitantes, dez mil são escravos [...] (D. Quixote, 16.ª edição, p. 133)
e a notícia da inauguração da estátua do padre António Vieira, em Lisboa, no Largo Trindade Coelho.
Eu sei qual é a pedra no sapato que ainda tenho por causa do padre António Vieira: é que ele aceita e/ou defende o conceito de "guerra justa", que, no entender dele, legitima a escravatura - e é sobre isto que eu tenho ainda de ler ainda um pouco mais na tremenda e absolutamente fascinante obra do nosso imperador. Sim, absolutamente, ele é o imperador de que Fernando Pessoa fala.
A favor de Vieira estão as seguintes palavras do seu sermão, classificado como sendo o XXVII dos Sermões do Rosário:
Todas estas razões de Séneca se reduzem a uma, que é serem também homens os que são escravos. Se a fortuna os fez escravos, a natureza fê-los homens: e por que há de poder mais a desigualdade da fortuna para o desprezo, que a igualdade da natureza para a estimação? Quando os desprezo a eles, mais me desprezo a mim, porque neles desprezo o que é por desgraça, e em mim o que sou por natureza. A esta razão forçosa em toda a parte se acrescenta outra no Brasil, que convence a injustiça e exagera a ingratidão. Quem vos sustenta no Brasil, senão os vossos escravos? Pois, se eles são os que vos dão de comer, por que lhes haveis de negar a mesa, que mais é sua que vossa? Contudo, a majestade ou desumanidade da opinião contrária é a que prevalece, e não só não são admitidos os escravos à mesa, mas nem ainda às migalhas dela, sendo melhor a fortuna dos cães que a sua, posto que sejam tratados com o mesmo nome. Que importa, porém, que os senhores os não admitam à sua mesa, se Deus os convida e regala com a sua? 
Ora bem, ganharão aqui os escravos negros africanos a reboque dos escravos índios americanos... mas a questão do conceito de "guerra justa" é mesmo, por enquanto, uma valente pedra no meu sapato. Talvez seja a minha visão - estreita - de português, europeu e cidadão do mundo tardio mais de 300 anos em relação ao tempo da assombrosa figura da Cultura Portuguesa e Mundial.
Além disso, o padre António Vieira terá parceiros de peso - na verdade, nem a cidade ideal da fascinante Utopia de Thomas Moore dispensa a escravatura... de guerra ou castigo justo...
É, para mim, é assunto ainda em aberto.

domingo, abril 30, 2017

OS PROFESSORES SÃO OS BOMBOS DA FESTA

Bombos da festa, ou maus da fita?
  • A festa é a Educação do Futuro, ou do Século XXI, ou outra qualquer, Rumo a Qualquer Coisa...
  • Nunca houve tanta gente preocupada e gente ocupada (os "especialistas") a produzir textos, materiais gráficos, vídeos - todos postos gratuitamente nas nossas mãos, de todas as formas e feitios! - e disponibilizar essa parafernália toda aos professores. A UNESCO é uma dessas honradas, competentes e bem-intencionadas instituições; mais: oficial e mundial!
  • Um exemplo de sugerida Pedagogia para a Aprendizagem (infelizmente e dramaticamente - estou a falar a sério!) muito necessária, a bem do Ambiente, e a bem do Futuro:

Estão vendo?, é fácil!, está tudo aqui, nem há que pensar mais, é só fazer... Nem o inglês é limitação, o que não falta por aí é uma bem numerosa colecção de tradutores automáticos. Ah, pois! Há também os colegas, os professores de Inglês, eles, quem sabe?, poderão dar uma ajudinha.
Bem a sério: qual é o pecado original desta sugestão gráfica? Vá, vamos pensar um bocadinho...
  • Uma pista para quem aceitar seguir a minha sugestão: é esta notícia que Ken Robinson "tuïtou" há 2 dias, "Primary school head and deputy quit over 'bland and joyless' curriculum" (em inglês, outra vez?...). (1)
    No fundo, o que dizem estes professores directores da sua escola: que estão fartos de directivas oficiais, de disposições legislativas, de planificação e normalização; de currículos essenciais, que façam a gestão economicista dos recursos escolares (humanos incluídos) - e, lá vem o poderoso aceno-papão!, preparem as crianças e os jovens para o Futuro!
  • Que fez, então, o casal de professores? Escreveram aos pais dizendo-lhes: "Assim não dá. Assim não é educar os vossos filhos..."
  • É mesmo, é simplesmente isto que se insiste em pedir aos professores - a bem da sacrossanta economia de mercado, da necessidade de produzir força de trabalho bem distribuída de acordo com antevisões e projecções bem excelianas - que façam tudo sem terem liberdade para nada.
  • Sejam criativos!, Honrem a nobre missão social de que estão investidos!, Levem às crianças que as sociedades vos confiam à Expansão Pessoal da Criatividade, da Alegria, da Realização Pessoal, da Solidariedade!, da Amizade!, do Amor pelo Ambiente! E, pois claro, que sejam Empresários de Sucesso!
Sim... é só mesmo isto que se pede hoje aos professores... Só isto.


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(1) A tradução automática do Twitter escreve-nos assim: "Cabeça de escola primária e vice para no currículo 'sem graça, sem alegria'

sexta-feira, março 24, 2017

TRATADO DE ROMA, IDEAL EUROPEU, PAPA FRANCISCO

TRATADO DE ROMA, IDEAL EUROPEU, PAPA FRANCISCO

Notável discurso, a lembrar os pensamentos, os valores, as vontades e as acções, tão preciosos!, que tantos de nós têm esquecido, começando por tantos líderes e dirigentes, nacionais e europeus, da própria União!
Cita o Papa: «A Comunidade Económica Europeia – declarou o Primeiro-ministro do Luxemburgo Bech - só viverá e terá êxito se, durante a sua existência, se mantiver fiel ao espírito da solidariedade europeia que a criou e se a vontade comum da Europa em gestação for mais forte que as vontades nacionais.» Discurso pronunciado por ocasião da assinatura dos Tratados de Roma (25 de Março de 1957)

(o discurso integral ainda não está disponível em português, mas a síntese da Pastoral da Cultura está muito bem)

domingo, março 12, 2017

SALA DE AULA, INDISCIPLINA E MÁ-CRIAÇÃO - SIM, OUTRA VEZ

Estou, outra vez, a participar numa acção de formação de professores, daquelas que os professores têm de fazer por imposição da tutela ministerial, senão!... Assim ao jeito do paternal anúncio da clássica rábula de Raul Solnado, «Meu filho, queres queiras, quer não queiras, hás-de ser bombeiro voluntário.»
Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão, "O Mistério da Estrada de Sintra,
Carta ao editor, 14 de Dezembro de 1881
Esta formação é 'on line'. Graças a deus!, seja ele qual seja, já que a disponibilidade de tempo para estas coisas não é, na verdade, grande; nem tão pouco, tantas vezes!, a desejável.
Vou fazendo o que posso, contornando, "indisciplinadamente", a formal obrigação de ler as coisas que os formadores - nossos colegas professores - querem, muito boamente, que a gente leia. Raros - muito raros mesmo! - são os colegas que começam por indagar junto dos colegas o que pensam sobre os assuntos; o que sabem ou não, e que experiência têm deles; e que leituras são as suas.
Os formulários de apresentação de candidaturas para acções de formação para professores exigem que os auto-propostos formadores apresentem uma lista de obras de referência; e quanto mais extensas  melhor! Ah! E com muitos autores estrangeiros!
Para mim, estas acções são, actualmente, muito interessantes oportunidades de trocar ideias, experiências e sugestões com colegas - e deveriam ser libertadas, o mais possível, das formalidades da participação, e da presença constante, velada, do "Big Brother" que está "watching you", escalpelizando se estamos a cumprir - disciplinadamente - com as regras e os rigores procedimentais.
Não se pense que só cá, em Portugal, as coisas acontecem assim! Terminei recentemente uma (quer dizer, outra!) formação 'on line', numa universidade brasileira e passou-se também o mesmo, em que formadores (seria interessante apreciar a competência técnica, científica e humana que tinham para liderar - ministrar? - a formação que comandaram), objectivamente diziam aos formandos qualquer coisa do tipo: «Ou fazes assim desta maneira como a gente quer, ou...». Pois bem, neste caso da universidade brasileira, eu fui indisciplinado (mas não mal-educado), disse-lhes que não faria daquela maneira, e não fiz mesmo! Agora, que foi interessante falar com outros colegas, conhecer as suas opiniões, ouvir as suas experiências, claro que foi! E acho isso cada vez mais interessante, num mundo - o da escola e do ensino - cada vez mais "poluído" por livros cheios de "saberes" formatados (os livros e os saberes) por normas (da APA ou outras), e que produzem "citações" em artigos científicos e outros livros, escalpelizados à décima ou centésima de contagens de "número de citações" (tão procuradas pelos abutres - há tantos entre nós! - deste mundo da investigação "científica" e "pedagógica"), contagens essas feitas por sofisticadíssimo "software"; software "especializado", evidentemente.
É por isso que agradeço à colega Sílvia a oportunidade que me deu (repito, precisamente numa destas tais acções de formação de professores, sobre a gestão da indisciplina em sala de aula) de pensar sobre o que a seguir escrevo; e que é, afinal, bem mais pequenino que todo o arrazoado do desabafo que acabo de fazer - e espero ter sido só "indisciplinado", "irreverente", ou mesmo "pavão", mas sem ter sido "mal-educado".

Olá, Sílvia!
Agradeço-lhe o seu apontamento porque me ajuda a clarificar um pensamento sobre o tema da indisciplina, que anda muitas vezes de mãos dadas com a má educação (não será melhor dizer má-criação?).
Na sala de aula as relações entre os professores e os alunos podem ser analisadas do ponto de vista das relações pessoais que se estabelecem (em que se deseja, basicamente, cordialidade e respeito) e do ponto de vista das tarefas (em que se deseja que os alunos aprendam os conteúdos leccionados pelos professores).
Assim, direi que aquilo a que chamamos "má educação" tem mais a ver com as relações humanas (perturba a cordialidade afectiva e desafia o respeito pessoal) e a indisciplina tem mais a ver com as tarefas (perturba o desenrolar das sequências de trabalho e de transmissão de conhecimentos).
Será esta distinção importante? Bem, se não for esta, será outra... Por exemplo, quando a meio de uma aula, vindo não sabem os professores são apanhados pelo desabafo, que se sobrepõe à sua voz, que dispara «Estou farto desta aula!...» (ou outra coisa qualquer), penso que a primeira coisa a fazer é tentar esclarecer na sua cabeça se se trata de um problema de má educação ou de indisciplina. É que tratar um problema de indisciplina como se fosse um problema de má educação, ou ao contrário, pode ser o primeiro passo para uma cadeia de reacções indesejáveis, não apenas na aula em que ocorre, mas nas outras que depois se seguirão, com prejuízo nas relações humanas e nos processos de aprendizagens.
Faz sentido para si, Sílvia, o que estou a dizer?

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12MAR17, às 14h00. Acabei de acrescentar assim no fórum de discussão a que pertence o apontamento que transcrevi imediatamente antes, discutindo uma opinião que diz que «As causas da indisciplina, no meu entender, prendem-se essencialmente com a situação familiar instável.»:
Tenho uma opinião bastante diferente da sua sobre as causas da indisciplina e sobre o "contributo" ou "culpa" dos pais na indisciplina dos filhos. É claro que nada me diz que a minha opinião esteja mais correcta do que a sua, nada me dá legitimidade para o dizer.
Entretanto a sua reflexão faz-me sentir a necessidade de juntar à discussão deste fórum duas ou três coisas:
1.ª) Indisciplina é uma coisa, má-criação é outra, instabilidade é outra. No nosso fórum, parece-me interessante distinguir os três conceitos; neste caso, do ponto de vista, não da delimitação/enumeração dos comportamentos que caracterizam cada um deles, mas das dinâmicas relacionais que põem em jogo.
Direi que a indisciplina é reactiva (disruptiva, e não necessariamente opositiva) à situação (ou ao contexto) das relações pessoais e sociais imediatas: o aluno (ou os alunos) reagem(m) ao que está a acontecer no momento, em relação a um espaço (em sentido estrito, a sala de aula) e a uma tarefa (a lição apresentada pelo professor).
Direi que a má-criação é conflitual (defensiva-agressiva, não necessariamente indisciplinada), em que estão implícitos valores e laços (por exemplo, o aluno que "não respeita" a autoridade do professor; ou o professor que "ofende" o nome da mãe com alguma coisa que diz); é situacional, e duradoura, certamente mostrando valores e aprendizagens sociais, tanto dos alunos como dos professores - sim, nós, os professores, também não somos produtos de uma única cultura; e quantas vezes falamos da boa e da má educação dos nossos próprios colegas). Quer dizer, quando se instala, em sala de aula, a altercação entre o aluno e professor, os substractos da formação ética, moral, social, relacional de ambos vêm ao de cima, um e outros auto-atribuindo-se direitos (mais do que deveres) que duma e doutra parte se consideram desrespeitados.
Direi que a instabilidade é condicionante (afectiva, cognitiva e relacional) que perturba a avaliação das situações e pode dificultar a regulação pelo próprio sujeito (aluno ou professor) das emoções, sentimentos e percepções das situações em jogo na sala de aula - e que leva tantas vezes os alunos a sentirem que são injustamente acusados pelos professores ("O 'setôr' só me viu a mim...", "eu só me virei para trás porque o meu colega me chamou, nem sequer fui eu..."). Portanto, a instabilidade modula a avaliação da situação. Atenção! Tanto no aluno, como no professor! As investigações que hoje em dia se fazem sobre a condição emocional dos professores!, e não é só por aquilo que os alunos fazem nas aulas!, é sobressaturado pela carga de trabalho e as exigências que a tutela faz sobre os professores!
2.ª) É fácil resvalar para a ideia (cómoda) de que o aluno é o protagonista-culpado (autor do comportamento disruptivo); o professor é o protagonista-vítima (personifica a autoridade, ou educação, ou tarefa posta em causa); e o pai é o protagonista-causa (está constantemente em falha, acusado, pela escola, de não cumpri o seu papel educativo).
3.ª) Será mesmo possível falar de gestão da indisciplina em sala de aula sem falar de outras coisas que, noutras alturas e noutros espaços tanto os professores discutem, como é o caso da extensão dos programas, o número de disciplinas em cada ano, as cargas lectivas de professores e alunos; as condições de sala de aula, os recursos disponíveis, etc., etc., etc.?
P. S. - Continuo indisciplinado, quer dizer, continuo sem ler os documentos que nos foram propostos - ainda é mais importante para mim tentar perceber, no precioso espelho que são os escritos dos meus colegas de formação, e nas suas opiniões, o que eu realmente penso sobre estes assuntos. Talvez amanhã ou depois eu leia os documentos.
A provocação para os colegas: se eu fosse aluno de algum(a) dos colegas, o que fariam comigo? Diriam que eu era indisciplinado, malcriado, ou que os meus pais não me davam educação?

quinta-feira, fevereiro 23, 2017

Do corpo à mente, da emoção ao pensamento

 Do corpo à mente, da emoção ao pensamento

Em jeito de "axiomas":
  1. Num texto que escrevi há tempos sobre as ideias de António Damásio, e que o notável neurocientista disse estar em conformidade com o seu pensamento, eu dizia que a emoção é a primeira forma de pensamento.
  2. Arbitrariamente, olhamos e começamos a falar do desenvolvimento do ser humano a partir do nascimento.
  3. Sabemos, cada vez mais claramente, que o bebé humano nasce com uma espantosa capacidade de entender e aprendizagem, e de estabelecer laços.
  4. As emoções acontecem no corpo e são reacções a estímulos que surgem de fora do indivíduo e também de dentro dele.
  5. O cérebro é constantemente informado por tudo o que acontece no corpo e de tudo guarda registo em estruturas neurológicas pré-estabelecidas.
  6. Parece que uma das mais radicais diferenças entre o ser humano e os outros animais é a sua capacidade de simbolização - que, no meu entender, se sustenta nessa capacidade que o cérebro tem de recolher informação sobre tudo o que se passa no corpo e dos registos que disso faz.
  7. Será facilmente consensual considerar que, quando nasce, o ser humano está sob o império da pressão das necessidades básicas ligadas à fome, ao sono, à temperatura corporal e à eliminação fisiológica.
  8. A sobrecarga (de produtos a eliminar - a urina e as fezes) e a carência (de alimentos, de sono, de calor) fisiológica provoca tensão neurofisiológica, que desperta um sinal de alerta sobre a forma de uma emoção - é como se o bebé "toma consciência" de que qualquer coisa não esta bem consigo.
  9. Dependente dos cuidados da mãe (ou de quem a substitua), absolutamente dependente, o bebé humano vem instintivamente programado para estabelecer laços - por necessidade, e (pelo menos secundariamente) por desejo; mais, parece que traz consigo competências instintivas fazer despertar nos outros o desejo de se ligarem a ele.
Tomando como aceites estes "axiomas", podemos olhar as primeiras etapas do desenvolvimento infantil, especialmente aquelas que ligam a acção ao pensamento, e o papel determinante da simbolização, da linguagem e das palavras nessa ligação, segundo a perspectiva daquele que, na opinião de muitos (entre os quais me incluo), é o autor português que melhor terá observado e falado sobre a dinâmica humana fundamental que nos leva da experiência corporal à fascinante experiência mental, que tem no pensamento a sua expressão mais extensa e mais comunicável:
  1. Ao nascer, a criança reage como se fosse apenas um ser vegetativo, limitado aos processos de
    assimilação e desassimilação. A sua consciência elementar só conhece dois estados: o de neutralidade e o de incomunidade, quando sente a depleção das vísceras (Wallon), isto é, quando sente sede ou fome. (1)
  2. Pouco a pouco a mãe introduz, através das várias formas de comunicação - contacto cutâneo, movimentos que executa, alimentos que administra, palavras e carícias -, mais do que o bebé necessita para a sua satisfação fisiológica, algo que dá prazer. (1)
  3. Na verdade, não é sequer concebível que as relações da mãe com a criança se baseiem apenas em cuidados de ordem exclusivamente vegetativa. O que a mãe introduz a mais na sua relação com a criança, o que ela procura impor-lhe, tem um carácter emocional-afectivo a que pode chamar-se linguagem (comunicação ou linguagem extraverbal). (1)
  4. A criança aprende o que há de mais fundamentalmente humano - o falar - no contacto com a mãe e de uma forma nada comparável com o que se chama correntemente ensino. A criança fala porque a mãe impregna de afecto e de palavras o ambiente em que vive e porque lhe permite toda a espécie de experiências verbais, desde o grito e do balbucio ao emprego das palavras e frases. A mãe procura ligar os sons que (por imitação ou por acaso) a criança emite aos objectos e às pessoas que a cercam; utiliza todas as formas de sedução para impor à criança o uso de uma linguagem verbal que está na base do desenvolvimento mental do homem. (2)
  5. É na primeira e na segunda infância que o pequeno ser humano se faz homem, que aprende a jogar com os objectos, sentimentos e símbolos; quando essa experiência fundamental não é possível nessas idades, a inteligência não se desenvolve. (3)
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(1) João dos Santos e outros, “Educação Estética e Ensino Escolar, Lisboa, Publicações Europa-América”, 1966, p. 23.
(2) João dos Santos e outros, “Educação Estética e Ensino Escolar, Lisboa, Publicações Europa-América”, 1966, p. 46.
(3) João dos Santos e outros, “Educação Estética e Ensino Escolar, Lisboa, Publicações Europa-América”, 1966, p. 47.

terça-feira, fevereiro 14, 2017

Pensar a paixão, o amar e o namorar com a ajuda de Eça de Queiroz

Um acaso engraçado juntou o Dia dos Namorados ao meu mestre João dos Santos e ao patrono da
"Breakfast", 2015, pertence à série O Primo Basílio, feita a partir do romance de Eça de Queirós
 com o mesmo nomeCORTESIA: GALERIA MARLBOROUGH FINE ARTS, LONDRES
minha escola, Eça de Queiroz.
Na semana passada, uma reflexão de Sérgio Niza pôs-me à procura de um texto de João dos Santos. Já o li - mas que texto! Um dia dele falarei.
A procura, muito difícil, fez-me saber de outro; e nova procura. Chegou-me hoje pelo correio! No Dia dos Namorados. No velho caderno de "O Tempo e o Modo" encontrei três excertos de "O Primo Basílio"!
O caderno de "O Tempo e o Modo" é sobre... precisamente, o casamento! Por isso a minha ênfase ao Dia dos Namorados.
A subir a escada rolante do Metro dos Olivais, a seguir ao almoço - e depois de ter passado a manhã no Tivoli com alunos a assistir ao espectáculo "Europa: que paixão!" (onde, diga-se de passagem, com muito pouco jeito se tentou fazer a analogia do título da peça musical à celebração dos namorados), um antigo e muito querido aluno abanou-me num susto pelas costas. Trocámos um abraço e algumas palavras a saber como vai a vida de um e do outro.
Já a despedida: "Para onde vai, professor, vai para a escola?", "Sim, vou.", "Vai dar aulas?", "Não. Olha, vou escrever uma coisa sobre o Dia dos Namorados.", "Olha o Dia dos Namorados! Oh... pois sim, eu é que estou sempre sozinho...", "Sozinho, é até ao dia chegar, não te preocupes - e já quase a gritar, depois do abraço de despedida -, tantas vezes as coisas vêm quando a gente menos espera." Só não quis foi dizer-lhe "Não te preocupes, não tenhas pressa." É um conselho muito ambivalente, que cada vez mais pais usam com filhos... na casa dos trinta anos!
Voltando ao caderno de "O Tempo e o Modo", se João dos Santos nele escreveu respondendo ao convite-desafio de três perguntas que lhe foram dirigidas na qualidade de psicanalista, Eça, por seu lado, viu-se arbitrariamente escolhido por alguém - que teria dito ele sobre o assunto do casamento se sobre isso fosse directamente solicitado para o fazer?
Ora bem, na minha opinião, no conjunto geral do caderno, publicado em Março de 1968, os excertos - três, todos retirados de "O Primo Basílio - são interessantes, harmonizam-se bastante bem com tudo o mais escrito neste livro extra-colecção de "O Tempo e o Modo".
Vejam lá se o que Eça escreve conserva ou não - tanto no conteúdo como na forma - pleno sentido para os dias de hoje:
É que o amor é essencialmente perecível, e na hora que nasce começa a morrer. Só os começos são bons. Há então um delírio, um entusiasmo, um bocadinho do céu. Mas depois!... Seria pois necessário estar sempre a começar para poder sentir?... Era o que fazia Leopoldina. E aparecia-lhe então nitidamente a explicação daquela existência de Leopoldina, inconstante, tomando um amante, conservando-o uma semana, abandonando-o como um limão espremido, e renovando assim constantemente a flor da sensação! (in "O Tempo e o Modo", Extra-colecção, 2.º Caderno, «O Casamento», Março de 1968, p. 183)
Curiosamente, o texto - notável! - de João dos Santos ajuda-nos a entender a vivência destes sentimentos breves, efémeros; paroxísticos, quase - que a intensa e viperina publicidade das sociedades consumistas modernas exploram à saciedade - mas o texto de João dos Santos ficará para outra redacção, que em breve aqui sinalizarei.




domingo, janeiro 15, 2017

Um contemplativo não é um místico

A afirmação não é minha, é de Antonio Muñoz Molina, escritor espanhol.
Explica logo a seguir a sua ideia, sendo muito claro no que diz.
«Un contemplativo no es un místico. Es alguien que se queda extasiado de pura atención ante una maravilla cualquiera del mundo exterior: un río, la gente que pasa tras las ventana de un café, un cuadro, un árbol, una pieza de música, la belleza de alguien, el extrarradio de una ciudad desplegándose en la ventanilla de un tren, la tipografía de un cartel, el reflejo de la calle en un escaparate, un libro.»
«Um contemplativo não é um místico. É alguém que cai extasiado de pura atenção em face de uma maravilha qualquer do mundo exterior: um rio, as pessoas que passam do lado de lá da vidraça de um café, um quadro, uma árvore, uma peça de música, a beleza de alguém, a paisagem que envolve a cidade que vemos passar por nós através da janela de um comboio, os escritos de um cartaz, o reflexo da rua numa montra, um livro.»
Reconheço-me no que diz, penso que sou um contemplativo de todos os dias da semana; mas já seria bom que a generalidade das pessoas o tentassem ser, no mínimo, ao domingo - por isso seria importante, por exemplo, voltar ao tempo de todo o comércio estar encerrado ao domingo (e contra mim falo, que tantas vezes faço compras nesse dia tão curioso, ao mesmo tempo, primeiro e último: é o primeiro a seguir ao tal sétimo dia em que Deus descansou da Sua obra de criação do Mundo; e é o segundo e último do fim-de-semana que a organização comercial do mesmo Mundo acabou impondo - um dia terei de procurar por aí a origem do composto nome, "fim-de-semana"...).
Quanto ao que diz sobre Eça de Queiroz, vale bem a pena tudo o que diz; e não deixo de realçar algo sobre o que tantas vezes acontece nas nossas vidas, e de que podemos ou não tirar partido: a circunstância de um acaso, do encontro fortuito com uma pessoa ou um livro; ou outra coisa qualquer.
Yo pasaba horas leyendo La ciudad y las sierras, estremecido por esa maestría a la vez jubilosa y ácida de Eça de Queiroz, un novelista que tiene la alegría del joven Dickens de los Pickwick Papers, la desmesura cómica de Cervantes, la agudeza quirúrgica en la observación social de Flaubert y Zola; y además una desvergüenza erótica y una irreverencia religiosa que no tiene equivalencia en el siglo XIX, y que viene más bien de los enciclopedistas y los libertinos del XVIII, de Diderot y Choderlos de Laclos, con un amor idéntico por los placeres terrenales y por la libertad de espíritu.
Texto integral: http://cultura.elpais.com/cultura/2017/01/12/babelia/1484247035_988185.html?id_externo_rsoc=FB_CC 

Um abraço bem cordial ao António Eça de Queiroz, que me pôs na pista deste tão agradável e interessante artigo.