terça-feira, agosto 13, 2013

A generosidade das pessoas pobres

The poor people are often the most generous.
                Foi uma versão desta fotografia publicada pelo Rui Ferreira no seu mural do Facebook, no sábado, dia 7 de agosto, que fez riscar o fósforo para mais um pequeno lume de escrita.
                Há uma história que trago por passar ao papel desde a aventura Comenius em Rzeszów, na Polónia, no princípio de junho de 2011. Como me pareceu logo que seria uma história simples de contar, e de que seria fácil lembrar-me, fui adiando…
                A fotografia que prendeu a atenção do Rui e que ele quis mostrar a todos exibe o rosto de uma velhinha sorridente que desperta ternura e boa disposição. É em mãos assim que a gente gosta de encontrar a tentação das maçãs, em vez de as recebermos da bruxa má da Bela Adormecida. Simpática em si mesma, por toda a composição, a fotografia no mural do Rui acrescenta, à esquerda da querida velhinha, a afirmação, em inglês, “As pessoas pobres são, muitas vezes, as mais generosas.” Penso que não é só porque sejam pobres, é também porque têm um modo muito particular de estar na vida, que em ambientes de vida simples e essencialmente gregária é, felizmente, comum. Temos tendência a pensar que essa é a ambiência dos campos, onde os modelos de desenvolvimento humano marcado pela ávida acumulação material ainda não tomou domínio. Sendo possivelmente verdadeira esta ideia, a Internet, hoje em dia, também repete outras imagens sobre a generosidade da pobreza, como esta, a do rapaz e do cão.
                Para mim, a imagem desta velhinha tem um extra de carinho e ternura; e de saudade: a senhora parece-se muito, na expressão do rosto, na cor e nas formas das roupas e do lenço na cabeça… Na varanda!... Sim, na posição do corpo à varanda, a senhora, dizia eu, parece-se muito com a minha avó materna, a avó Rosa.
                A história que a fotografia do Rui me trouxe de volta passou-se, como já disse, na Polónia, em Rzeszów, quando ali estava com colegas e alunos numa aventura do projeto escolar Comenius.
                Num momento livre de programa oficial, andava eu com alguns alunos na praça central da cidade, deambulando, sem propósito claro a conduzir-nos; passeávamos, pura e simplesmente, por isso, ora aqui ora ali, um de nós se afastava um pouco e logo depois se juntava ao resto do grupo.
                Numa das vezes de ser eu a estar um pouco afastado, quando olhei à procuro do grupo, ele estava ali bem perto, e reparei que alguns dos miúdos se encolhiam encostados uns aos outros. Todos olhavam na mesma direção: ali bem à frente deles estava um sujeito de ar vagabundo e era seguramente o seu aspeto que intimidava os jovens portugueses. Aproximei-me devagar, esforçadamente desejando não acelerar o passo, mostrando toda a tranquilidade do mundo. O senhor tentava que os jovens portugueses lhe respondessem, alguns deles faziam aqueles esgares que todos nós fazemos quando algum cheiro nauseabundo nos sensibiliza a pituitária.
                Meti-me na conversa e percebi que o senhor tentava falar com a rapaziada em português. Não foi difícil tornar-me o principal interlocutor do senhor. Percebi que ele tinha tentado o sonho de uma vida melhor em Portugal mas as coisas não tinham corrido bem. Falou de várias localidades portuguesas; não foi Lisboa a principal povoação a acolhê-lo, isso sim, uma povoação do interior do País. Teve de desistir e voltar para a terra natal tão ou ainda mais pobre do que quando de lá (cá) saíra. 

Foi uma garrafa destas que o senhor me deu.
                Gostou de estar a conversar connosco e de me ter como ouvinte ativo que lhe sorriu, o cumprimentou e não teve relutância em o tocar com afeto. O senhor tinha na mão um usado saco de plástico. Quando nos preparávamos para despedir, olhou difusamente, e remexeu-se nervosamente, como a gente olha e se agita quando percorremos com a mente o que temos nos bolsos das calças ou noutra coisa qualquer que tenhamos connosco, à procura às vezes nem sabe bem a gente de quê. Meteu a mão direita ao saco e de lá tirou uma cerveja. O saco ficou vazio. Estendeu a garrafa na minha direção e disse mais ou menos assim: “Tome, é para si, é tudo o que tenho, fico muito contente que o senhor a beba, eu depois arranjo outra para mim.” Mostrei-me satisfeito e agradeci-lhe carinhosamente a cerveja, prometendo-lhe bebê-la quando estivesse com amigos e pudesse falar de quem me tinha dado a cerveja; e que, depois, guardaria comigo, em minha casa, a garrafa, para sempre me poder lembrar da conversa agradável que com ele tive na sua terra. O senhor afastou-se de nós. Ia certamente contente; a rapaziada toda agora também estava de rosto alegre por ter participado naquela pequena experiência social que - imagine-se! – levou todos, por uns instantes, pelo protagonismo de um pobre homem, à terra natal de todos. Que situação!... Parecia que as coisas estavam ao contrário: quem tinha aspeto de pedinte era quem dava uma esmola a quem mostrava ser turista em condições de a dar!
                Decidi que não beberia a cerveja sem antes escrever a história. Aqui está.
                Rui, meu querido amigo, quando voltar, daqui a dias, para Lisboa (estou na Horta) vou, seguramente com alguma ansiedade, olhar o prazo de validade da cerveja. Espero que ainda esteja em condições de ser bebida; esteja ou não, será aberta ao pé de amigos, aos quais falarei da história. E porque não saborear a cerveja contigo e mais malta da nossa, Rui? Estás nessa?...


1 comentário:

  1. No Facebook, este texto já induziu este pequeno diálogo entre mim e o Rui Ferreira:
    Rui Ferreira: "obrigado pela historia professor são estas pequenas coisas que dão sentido as palavras generosidade e gratidão..."

    Rui Ferreira: "terei muito gosto em nos reunirmos com mais amigos e desfrutarmos desse momento temos de encontrar uma data para isso grande abraço professor"

    Fernando Pinto: "Sabes, Rui Ferreira, para mim, o grande desafio é pensar como, no meu dia a dia de professor e educador posso ajudar a fazer crescer nos estudantes com quem contacto o sabor da generosidade e da gratidão; o sabor da solidariedade e o da cooperação. O meu mestre João dos Santos constantemente nos dizia, nas aulas e nas conversas fora delas, coisas como estas: [Lidar com crianças] "é um ofício que só se faz com prazer... tem de se educar com autenticidade e afectividade... um educador deve observar mas também deixar-se observar... Educar é oferecer-se como modelo”.
    Mas não está é fácil, Rui! As grandes forças de influência social são cada vez mais em sentido contrário, cultivando o individualismo e o egoísmo.
    Grande abraço!"

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