sábado, fevereiro 27, 2021

POLÍTICA E EDUCAÇÃO, 9/52 - O PÃO DA MESA E O PÃO DA CULTURA

 POLÍTICA E EDUCAÇÃO, 9/52 - O PÃO DA MESA E O PÃO DA CULTURA


«Casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão»
, desabafa, há muito, a sabedoria popular.

Victor Ângelo, conselheiro em segurança internacional e ex-secretário-geral-adjunto da ONU, deu-nos ontem um artigo no Diário de Notícias que acaba assim:

«Ruídos recentes levaram-me a escrever este texto. Refiro-me à polémica sobre os brasões na Praça do Império frente ao Mosteiro dos Jerónimos, à ideia demolidora que trouxe o Padrão dos Descobrimentos para as redes sociais ou, ainda, ao passamento de um antigo militar que ganhou as suas medalhas no campo da guerra colonial. A paixão extrema das posições assumidas por muitos mostra, uma vez mais, que ainda não conseguimos falar com serenidade do Portugal que virou a página há quase 50 anos. Ora, sem esquecer o acontecido, os muitos problemas que temos pela frente pedem que passemos ao capítulo seguinte. Caso contrário, andaremos em conflito com nós próprios, absortos aos tiros nos pés, para o proveito e gáudio de quem nos quer manter distraídos.»

Quase ao estilo do “Mais Platão, menos Prozac”, Wilhelm Reich, esse autor maldito, recomendava aos líderes das vanguardas populares que especulassem menos acerca do “processo histórico” e dos “processos subjectivos” e se preocupassem em saber — e, consequentemente, em cuidá-los — quais os concretos anseios e necessidades das “massas”.

Pois, 100 anos depois, continuamos de colher de pau na mão a mexer, mexer, mexer e remexer, o mesmo caldo histórico-ideológico, cheios de especulações vanguardistas, “para vosso bem”, para bem de todos.

Tenho insistido por aí que, quais cogumelos, são cada vez mais os que conhecem a árvore, a árvore singular, e, em razão da genuína crença de que a conhecem com cristalina clareza, são tomados de poderosas e inebriantes elações afectivas, se autoconvencem de que conhecem a floresta inteira. Da crença assim tão entusiasticamente sentida resultam comportamentos que fazem lembrar outro provérbio, o que diz que «Cadela apressada pare os filhos cegos».

Os números estão aí bem escancarados à vista de todos, tanto a nível do nosso País como a nível mundial: a diferença entre os poucos muito ricos e os muitos muito pobres tem-se acentuado; e a pandemia tem acelerado o crescimento dessa diferença.

Especificamente a propósito da pandemia, veja-se a ultrajante diferença na distribuição das vacinas contra o vírus da covid-19: uma imensa vergonha civilizacional.

Para o cidadão comum, o pão nosso de cada dia continua a ditar a sua consciência de classe, o vigor do seu entusiasmo ou protesto cívico.

No que diz respeito às questões directas e indirectas do texto de Victor Ângelo, temos por exemplo o caso de Mamadou Ba (figura circunstancialmente incontornável na generalidade dos meios de comunicação social) que há tempos afirmou, numa entrevista televisiva e radiofónica, que foi quando a bolsa de estudo, que lhe ia permitindo viver e estudar em Portugal acabou e que teve de ir trabalhar, que teve consciência dos problemas; digo eu, dos problemas dos que não têm bolsas, não têm trabalho, ou têm-no mas são muito mal pagos.

As crises são oportunidades, dizem os moderníssimos mentores sociais e empresariais — até são oportunidades para convencer “as massas populares” que têm de suportar as dificuldades laborais, os baixos salários e, não obstante, vencerem psicologicamente os seus sentimentos de frustração e de revolta, numa espécie de «Sou feliz. Sinto-me realizado, venci a minha revolta. Sou escravo, sou um escravo moderno, sou um escravo feliz, sou um escravo realizado.»

Os temas explícitos ou implícitos no texto de Victor Ângelo remetem-nos (é um verbo que os pensadores dos processos históricos gostam muito de usas, o verbo remeter) para os Descobrimentos, o Ultramar, a Colonização, a Descolonização, o Império, a Glória e a Tragédia Camoniana, o Destino Vieirino e Pessoano; o Racismo e o Antirracismo.

Tudo é o que é e é também o seu contrário, digo eu constantemente aos meus alunos de Psicologia.

O Racismo e o Antirracismo são o que são e são também o seu contrário. A História dos Povos está cheia de exemplos de racismos e lutas antirracistas, não apenas por causa da cor da pele, e também entre peles de igual cor.

Vivemos tempos em que o Antirracismo é, mais uma vez, luta legítima; mas é também oportunidade de promoção pessoal, social e económica, bem alinhada com os tradicionais mecanismos de destaque e promoção que a Comunicação Social e as Redes Sociais hoje em dia aceleram especialmente. Continuamos a ter necessidade de, seja no campo do Antirracismo, seja noutros campos, levar em boa atenção o bíblico aviso de sabermos separar o trigo do joio.

Bem, se continuo a escrever, acabo por me tornar no contrário do que quis ser, acabo por me tornar o tal autoproclamado líder vanguardista visionário que entende o processo histórico da coisa e, "para vosso bem", decide o destino das massas populares.

«Casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão».

Senhores líderes das massas populares, tratem mas é de pôr o pão na mesa dos operários e camponeses que hão-de um dia arrebatar o poder à burguesia, como cantava a 'velha' canção festivaleira que veio com o 25 de Abril… Olhem, como um dia nos deixou o poeta António Aleixo, que nunca andou pelos televiseiros festivais: «Vós que lá do vosso império / prometeis um mundo novo, / calai-vos, que pode o povo / qu'rer um mundo novo a sério.»

E, senhores poderosos, não se esqueçam de abrir as livrarias!, a Natália Correia bem reclamou num intenso desabafo pessoal: «Sou uma impudência a mesa posta / de um verso onde o possa escrever / ó subalimentados do sonho! / a poesia é para comer.»

Livro também são pão — há por aí muita gente de dietas muitos esquisitas e muito pobres do pão e da cultura dos livros; mas pensando que sabem tudo.

Caro Victor Ângelo, gostei muito de ler o seu texto! Gostava agora de que considerasse este meu como consonante e não em oposição ao seu.

sábado, fevereiro 20, 2021

POLÍTICA E EDUCAÇÃO 8/52 - PIOR QUE A IGNORÂNCIA É A PRESUNÇÃO DO CONHECIMENTO

POLÍTICA E EDUCAÇÃO 8/52 - PIOR QUE A IGNORÂNCIA É A PRESUNÇÃO DO CONHECIMENTO

Com frequência idêntica, tenho participado neste mês de Fevereiro, em dois conjuntos de reuniões regulares, à distância, através da Internet.

No primeiro, que junta educadoras de infância e professores do ensino básico ao secundário, abordamos as temáticas do Género, da Igualdade e da Cidadania. As reuniões acontecem no âmbito das acções de formação profissional a que as educadoras e os professores estão obrigados a fazerem regularmente. O universo de participantes é o formado pelos profissionais da educação e do ensino sob a tutela do 
Ministério da Educação.

No segundo, que junta profissionais “psi” e afins, distribuídos por todo o mundo, conversa-se à volta dos temas da Saúde Mental e da Educação para a Saúde. São encontros de participação livre, com gentes de todo o Mundo. Já consegui identificar colegas de Espanha, França, Itália, Dinamarca, Polónia, Suíça, Argélia, Cabo Verde, Brasil, Martinica, México; e, naturalmente, Portugal.

Neste segundo grupo abundam os cabelos brancos e as cabeças já sem cabelos. São pessoas com muita experiência profissional, em instituições públicas, em acções de rua, em consulta privada. Percebe-se que são pessoas com muita experiência, que lêem muito, que estudam muito; e que estão naturalmente motivados para observarem as realidades concretas, distintas das suas próprias realidades — estão naturalmente motivados para conhecerem mais e melhor, e para aprenderem; até para escaparem ao sempre iminente risco de se conformarem ao que já sabem e mais cedo ou mais tarde faz as pessoas tomarem a nuvem por Juno. Nestas reuniões, a dinâmica é mesmo a da conversa, a da partilha, a da reflexão entre todos. Escuta-se e fala-se. Há uma sede serena de procura da informação.


No primeiro grupo, entretanto, a sensação por que sou tomado é outra. Dispondo o grupo de um recurso digital de comunicação à distância poderoso (de provas dadas ao longo de muitos anos de experiência e aperfeiçoamentos sucessivos), em que se torna possível a dinâmica síncrona e assíncrona da comunicação entre formadora e formandos; e a constituição de bancos partilhados de dados, informações e documentos, a comunicação está reduzida ao mínimo possível, exclusivamente síncrona, com comunicação quase exclusivamente unidireccional, a fazer lembrar intenções de endoutrinamento.

É precisamente este grupo que me impõe à consciência a imagem da ignorância e da presunção sábia. A presunção de que conhecendo uma árvore, a árvore singular, se conhece a floresta toda. É o primado do pensamento sincrético, insuficientemente informado, por isso, produtor de comportamentos desajustados, ambíguos, errados. Ora, na esfera da Educação, do ensino pré-escolar ao ensino universitário, em que as crianças, os alunos, os estudantes vão progredindo, crédulos e cheios de boa-fé na capacitação e na competência de quem os educa ou ensina, isto é perigoso… muito perigoso!

Num notável artigo publicado n’ “O Referencial” (edição de Out-Dez 2020, n.º 139) o Procurador-geral Adjunto Jubilado Pena dos Reis escreve que “o que ameaça o êxito do pensamento científico na sociedade é a extraordinária persistência e generalização do pensamento mágico”, identificando neste 3 níveis. O segundo nível, diz ele, “é aquele que cria modelos susceptíveis de poderem ser confirmados ou infirmados pela observação, mas que desvaloriza o papel desta (da observação) no processo de consolidação do que se pode afirmar como verdade."

Por seu lado, o Professor José Mattoso, na entrevista que o semanário Expresso publicou ontem, quando lhe perguntam «Há uma boa e uma má maneira de fazer a História?» ele responde: «Sem dúvida. Uma maneira má é esquecer a relação entre os factos e as suas causas ou consequências. Os factos não acontecem por acaso. Temos sempre de os medir, situar, contextualizar, atribuir a um sujeito. Só assim podemos fazer deles uma narrativa. Só assim podemos fazer boa História. Além disso, temos de respeitar os factos sem pretender julgá-los. Também não podemos pôr os factos (ou seja, a sua narrativa) ao serviço de uma causa, por melhor que ela seja.»

Podemos praticamente transpor na íntegra estas palavras da História para a Educação e o Ensino.

Sim, o pensamento sincrético, mal informado, que confunde a nuvem com Juno e faz da singular árvore a floresta inteira, é um perigo real que espreita hoje em dia, a todo o momento, a Educação e o Ensino.

Na mesma entrevista ao Expresso, perguntam ao Professor José Mattoso: «A Idade Média é a Idade das Trevas?» Ele responde: «O conceito de Idade das Trevas aplicado à Idade Média resulta de um equívoco ou de ignorância pura e simples. É verdade que a cultura medieval muitas vezes confundia magia e superstição com religião autêntica, e que via milagres e intervenções divinas um pouco por toda a parte. Mas não podemos generalizar a toda a sociedade o que consideramos crendice. Também não podemos esquecer o incalculável valor da arte medieval expressa nas grandes catedrais, nem a genialidade do pensamento teológico demonstrada por um autor como São Tomás de Aquino. Não são produtos das trevas. A expressão Idade das Trevas apareceu primeiro no Renascimento, quando a cultura europeia redescobriu a estética greco-romana e, depois, no século XVIII, quando os intelectuais franceses atribuíram à filosofia iluminista o papel de fonte de toda a política civilizada. O pressuposto depreciativo da expressão só revela a ignorância de quem a usa.»

A mim próprio faço a pergunta: «A Idade dos Dias de Hoje é a Idade das Trevas?», e não me sinto nada bem com a resposta que me vem à cabeça.