sábado, janeiro 23, 2021

POLÍTICA E EDUCAÇÃO, 3/52 - QUANTO VALEM AS OPINIÕES?

 POLÍTICA E EDUCAÇÃO, 3/52

QUANTO VALEM AS OPINIÕES?

1. O direito de opinião é consagrado na generalidade dos textos constitucionais dos países democráticos; e também das organizações políticas supra-nacionais. As limitações a este direito são habitualmente sinal de limitação das liberdades pessoais, regra geral, impostas à força por lideranças contrárias ao espírito e às práticas democráticas.

2. As redes sociais na Internet vieram permitir que, para além das opiniões proferidas pelos governantes, os jornalistas e todos aqueles que em geral têm acesso aos órgãos de comunicação social, as opiniões de muitos cidadãos passassem a aparecer no espaço público, genérico e anónimo, para além de serem emitidas no círculo restrito da família, dos amigos, da empresa; e da escola.

3. Para além das questões que se costumam colocar acerca da ética, ou da responsabilidade, ou da honestidade, na expressão duma opinião, será interessante olhá-la do ponto de vista do fenómeno psicológico que é, nas suas dimensões cognitiva, comunicacional e inter-pessoal.

4. Passaram mais de 40 anos da aula de Psicologia Social Clínica em que, nas instalações provisórias da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação de Lisboa, na Rua Pinheiro Chagas, o Professor Pina Prata nos deu uma aula de que nunca mais me esqueci. O assunto central da aula foi o Processo Decisional.

5. Numa teorização que lhe era muito própria, ele apresentava-nos a Opinião como a segunda fase de um processo pessoal, consciente, no final do qual o sujeito (cada um de nós) toma uma Decisão, escolhe uma opção, profere uma sentença.

6. O Processo Decisional tem, esquematicamente 3 fases, sendo a Opinião (dimensão afectiva) a 2.ª fase e a Decisão (dimensão operativa) a 3.ª. Qual é a primeira? A 1.ª é a Informação (dimensão cognitiva).

7. É da nossa natureza humana formarmos opiniões, opiniões acerca de tudo com que contactamos. As opiniões podem ser sustentadas pelas crenças e pelas certezas; as opiniões podem ser bem informadas, intensamente intuídas, altamente ou levemente especulativas.

8. Na notável obra “O Livro da Consciência”, António Damásio, profundamente ciente da necessidade de distinguir o que se sabe com segurança do que se sabe mal e do que não se sabe praticamente nada, ao longo dos capítulos usa formulações que espelham os graus de certeza e de incerteza de que falo. Identifiquei-lhe uma vintena (falhei seguramente outras): “Tenho a certeza…”, “Sugiro…”, “Proponho…”, “Imagino…”, “Em minha opinião…”, “Com toda a probabilidade…”, “Acredito…”, “Suspeito…”, “À maneira de hipótese de trabalho…”, “Postulo…”, “Irei especular…”, “Julgo que…”, “Provavelmente…”, “Presumo…”, “É possível que…”, “Especular sobre…”, “Não se sabe ao certo…”, “Segundo me parece…”.

9. No mesmo livro, num pequeno capítulo com o nome “A sensação de vontade consciente”, António Damásio escreve assim: «Com que frequência somos guiados por um inconsciente cognitivo bem ensaiado, treinado sob a supervisão da reflexão consciente para cumprir os ideais, anseios e planos concebidos conscientemente? Com que frequência somos guiados por predisposições, apetites e desejos biologicamente antigos, enraizados bem fundo e inconscientes? Imagino que a maioria de nós, pecadores fracos mas bem-intencionados, se regule por ambos os registos, ora mais por um, ora mais por outro, dependendo da situação e da hora do dia. Seja qual for o registo em que funcionemos, mais virtuoso ou menos virtuoso, a actuação no «momento» é inevitavelmente acompanhada pela impressão, umas vezes falsa, outras vezes não, de que actuamos aí e naquele momento, com pleno controlo consciente».

10. Ora bem, as predisposições, os apetites e os desejos de que fala António Damásio, em hora de muitas verdades, não são informações. Por exemplo, quando temos de tomar decisões sobre os perigos de uma pandemia. Estamos predispostos a reagir aos ataques dos vírus, apetece-nos fazer coisas de que gostamos, desejamos estar livres dos perigos. Só que nada disto nos informa acerca dos perigos dum vírus causador de uma pandemia, e nada disto nos protege da virulência do vírus.

11. A cada indivíduo, numa pandemia, cabe informar-se, formar uma opinião e tomar uma decisão; a cada governo cabe exactamente o mesmo, só que a um nível de regulação do comportamento dos grupos humanos, das sociedades.

12. Perguntas diferentes confrontam-nos com quantidades diferentes de informação. Três exemplos: “Como é a vida depois da morte?”, "Como é que se fazem pastéis de Belém?" e “Qual é o grau de perigosidade do vírus da covid-19?” Não obstante as diferenças, não será que devemos sempre procurar toda a informação possível, reduzir o grau de incerteza e estar menos dependentes das nossas crenças e das nossas intuições – que, em geral, estão mais vezes erradas do que certas? No caso concreto do pastel de Belém, o que temos é precisamente a centenária sonegação absoluta da informação: a receita culinária. Nos outros 2 casos, a Vida está aí inteiramente aberta a que nós obtenhamos toda a informação.

13. As decisões que tomamos, com base nas informações que temos e nas crenças a que nos agarramos, nas situações importantes da vida, são marcadas pelo desejo de prudência ou pelo apetite (ou motivação) do risco. Quando é cada um a decidir acerca da sua própria vida, e na medida em que a decisão não afecte negativamente a vida de outros, é uma coisa; quando temos de tomar decisões que tenham consequência directa na vida dos outros é outra coisa — mas o dilema é o mesmo em ambas as situações: optamos pela prudência ou pelo risco?

14. Na minha opinião, cabe à Educação a essencial tarefa social de ajudar os mais novos a irem experimentando em si mesmos o vai-vém entre a prudência e o risco, e o alerta para a necessidade de sustentarem as suas opiniões com a melhor informação possível. Até para que um dia não venham a fazer parte de governos que não saibam precisamente isso: calcular adequadamente o balanço entre a prudência e o risco nas decisões que se reflectem na vida dos cidadãos que governam.

15. Há uma máxima (de tanto partilhada, tornou-se anónima — cá está: perdeu-se a informação de quem foi o seu autor —, ou foi apropriada por este ou aquele outro autor) que diz assim: “O barco está mais seguro no porto. Mas não foi para isso que os barcos foram construídos”. Esta máxima, de tão óbvia que é, torna-nos tentadores do risco. Só que também nos tornámos sábios a prever os mares encapelados e as tempestades, e a medir as nossas forças ao lado das forças dos mares e das tempestades — nestes casos manda a sabedoria e a prudência que nos recolhamos a um porto seguro.


domingo, janeiro 10, 2021

Qual é coisa, qual é ela, que nasce com a Pessoa, a Educação consolida, a Escola abala, a Economia esquece e a Política esmaga?

 POLÍTICA E EDUCAÇÃO, 2/52

Qual é coisa, qual é ela, que nasce com a Pessoa, a Educação consolida, a Escola abala, a Economia esquece e a Política esmaga?
1) E a resposta é… a Tolerância.
2) Como sempre, um título não diz tudo; e quanto maior, pior. Por isso, há que esclarecê-lo, há que, neste caso, modulá-lo, matizá-lo.

3) Para começar esse cuidado de matização, a definição, circunstancial, de Tolerância: numa conversa com o filósofo Paul Ricoeur, Jean-Pierre Changeux, biólogo e professor de Neurobiologia, enumera-a ao lado da Boa Vontade e da Paciência, depois de a referir a propósito de tentar Compreender — no caso concreto da sua fala, a propósito das religiões.
4) Não vamos complicar a definição de Tolerância, apenas proporei considerar que a Tolerância tem a ver com identificar diferenças, aceitar as diferenças, agir respeitando as diferenças e não tentar, mesmo que cordialmente, convencer os outros que as nossas crenças, as nossas perspectivas, os nossos valores, são melhores, mais justos e mais correctos.
5) No mesmo diálogo, Paul Ricoeur diz assim a propósito do uso da palavra Tolerância: “A tolerância passa, de facto, por diversos limiares: no primeiro limiar, consiste em suportar o que não é possível evitar. Mas, é preciso passar desta tolerância forçada a uma tolerância aceite e escolhida. É do interior da relação com o fundamental que há convicções diferentes da minha. A partir daí, a tolerância já não é imposta por terceiros que me dizem: guarde os seus limites, não vá mais longe; terceiros que, de fora, me impõem um constrangimento. É de dentro que reconheço que há outros diferentes de mim, pensando de maneira diferente da minha. Se assim é, o problema da tolerância ultrapassa a relação da ciência e da religião, abrange todas as convicções. Não é só a ciência que detém a chave do problema da violência entre os homens.”
6) A Tolerância nasce com cada ser humano. Sim, cada vez mais as espantosas experiências “ovo-de-colombo”, que os incríveis estudiosos do comportamento humano conseguem conceber, mostram que é assim; e mostram também outros afectos, outras necessidades e motivações — e confirmam que cada criança que nasce não é um anjo celestial que se junta a outros.
7) A Educação não terá o radical poder que António Aleixo sintetiza dos versos que dizem «Sou apenas o produto / Do meio onde fui criado»; mas tem mesmo muito poder! Tem o poder de consolidar o que de melhor o ser humano traz consigo à nascença, e o poder de amaciar, dominar, o que traz de pior. E Educação é, antes de mais, influência parental e familiar — naturalmente aceite pela criança.
8) A Escola abala. Sim, a Escola passou a aparecer na vida da criança como a primeira — e muito valorizada! — instituição social que influencia o desenvolvimento da criança, sendo até a Família a primeira instituição social a reconhecer, aos olhos da criança, a importância da Escola e do que nela fazem com as crianças e os jovens seus filhos (seus, da Família). Acontece que a Escola actual é marcada, cada vez mais, por objectivos de capacitação livresca, conhecimento fragmentado e competição entre alunos — nunca houve tantos ‘rankings’ como agora, nem prémios de excelência por se ser melhor que os outros; e a Escola põe os alunos a disputarem entre si décimas e centésimas nas suas avaliações escolares finais. A Escola, nos dias de hoje, não é socialmente agregadora, é selectiva e desadequadamente competitiva.
9) A Economia esquece. Para a Economia actual, dominada pela expansão ilimitada, sustentada no crescimento constante e no consumismo permanente, de usa-e-deita-fora, a Tolerância é uma perda de tempo — e Tempo é Dinheiro! Há muito que é assim, e não se vê maneira de deixar de ser.
10) A Política esmaga. Depois da invasão do coração da instituição parlamentar dos Estados Unidos da América do Norte, o Capitólio, é preciso dizer mais alguma coisa? Na Europa, o radical movimento a favor da Tolerância aconteceu no início da década de 50 do século XX, quando os pais fundadores da actual União Europeia ousaram quebrar a lógica tradicional dos vencedores e dos vencidos e inventaram o projecto da Europa Unida — que é feito, nos dias de hoje, desse ideal de Paz, Tolerância e União?
11) Num artigo de opinião, na edição do Público de ontem, o sociólogo António Barreto escreve assim, a propósito da invasão do Capitólio: “Como foi possível? E como se pode evitar que seja novamente possível? Esse é o verdadeiro problema. Gente como esta, programas como este e políticas como esta só são possíveis, em democracia, porque os democratas deixam, porque a democracia tem tantos ou mais defeitos, porque os democratas e as esquerdas se transformam em figuras detestáveis de arrogância e suficiência. Porque os democratas decretam e protegem os seus privilégios e nunca se esquecem de defender os seus.”
12) As interrogações postas por António Barreto obrigam-nos a trazer à reflexão o célebre Paradoxo da Tolerância de Karl Popper; e obrigam-nos a pensar a sério que queremos fazer com a Educação e a regulação da Justiça Social e Política.
13) Por cá, no jardim à beira mar plantado, que tema central tem sido debatido até à exaustão, mas que sem que ninguém consiga dar a volta convincentemente? Precisamente a tolerância com André Ventura e o o partido que lidera, o Chega: aceita-se ou não um dirigente político, ou um partido político assim, num ministério governamental, ou mesmo com primeiro-ministro? É isso mesmo: não se chega a conclusão nenhuma; e porquê? Porque não há uma cultura social e político-social da Tolerância e dos valores afins: a Paciência e a Boa Vontade de que fala Paul Ricoeur; e também a Verdade, a Honestidade, a Coerência e o Respeito Humano.
14) Sim, no meu entender, temos vindo a acentuar nas sociedades — até nas que são geralmente apontadas como os grandes bastiões da Democracia — as reacções e os comportamentos de intolerância, numa triste regressão civilizacional que, na esfera da Religião, podemos equipara ao regresso ao olho-por-olho-dente-por-dente do Velho Testamento bíblico, que, precisamente, o Novo Testamento procurou amaciar e eliminar, substituindo-o pelo Perdão e pela Tolerância.
15) Não termos nós acabado de assistir a uma vitória da Tolerância? Estou a falar dos debates televisivos das eleições presidenciais portuguesas. Quais fora os debates em que se tiveram, como o próprio disse, conversas «porreiras», até com o intolerante/“intolerante” André Ventura? Foram todos os debates com o candidato Tino de Rans. Por todos os outros — e pela Comunicação Social, em geral — considerado uma carta fora do baralho, foi o único que que conseguiu expor, sem interrupções, e sem contraditórios deliberadamente a serem ouvidos por eleitores a arregimentar, as suas ideias, os seus pensamentos, as suas parábolas, a sua cultura simples. Será que a Simplicidade é um valor irmão da Tolerância? Acho que o Tino de Rans mostrou-nos que sim, que é.
16) Tino de Rans teve o condão de pôr todos os outros candidatos a ouvi-lo, todos eles sem duas pedras na mão. Ele é que os motivou com as suas 4 pedras, a fazer lembrar a pedra do viajante que inventou a Sopa de Pedra. E como conseguiu ele isso? Os outros, como sempre o consideraram como não sendo perigoso, dispuseram-se a ouvi-lo — e seguramente todos eles aprenderam com ele! Além disso, mesmo quando contraditou os seus oponentes — e poucas vezes o fez — fê lo sempre com Simplicidade e Tolerância.
17) Ao não o considerarem, com genuína boa-fé, adversário perigoso, os outros candidatos presidenciais, curiosamente, chegaram-se ao sentimento natural, genuíno que nos bebés alimenta os comportamentos de tolerância; e esta, hein?
18) A Política Intolerante é a negação da própria Política. Será possível conceber a Política, em sentido estrito, sem Tolerância? Se não pensarmos assim, que temos nós, afinal, aprendido com a Grécia Antiga que tanto louvamos nas suas realizações e nos seus escritos?