Eu tinha pouca coisa para pesar e pagar. Estava com tempo.
À minha frente, na caixa de pagamento do bem apertado estabelecimento de frutas e legumes, no rés-do-chão do meu prédio, estava uma senhora e uma menina, bem pequenina, mal me chegava à cintura.
Não lhes via as faces, estavam viradas para o pequeno balcão de pesagem e pagamento. A menina, à direita da senhora.
A senhora esvaziou a cesta laranja que tinha pousada em cima do balcão. O senhor chinês, do lado de lá, ia pesando os sacos de plástico com as compras.
Cesta esvaziada, a senhora virou-se sobre o seu lado direito, e, pondo-o no chão, diz para a menina:
- Vá, vai arrumar ao pé dos outros.
A menina, sem dizer nada, pegou logo na cesta e, enquanto se dirigia para a entrada do estabelecimento, ainda ouviu a avó dizer-lhe:
- Se precisares de ajuda, chama-me.
- Não é p'eciso, avó.
Por um instante olhei mais demoradamente a avó, que se preparava, com o ar mais tranquilo deste mundo, para pagar, largando de vista a pequenina menina.
Passei então a olhar a menina. Ela caberia perfeitamente dentro da cesta, bastaria que se dobrasse sobre si mesma.
A menina pôs a cesta dentro do molho de cestas, com ligeireza; felizmente, só 4 ou 5 lá estavam, senão, a menina não teria altura suficiente para fazer o gesto necessário para encaixar a sua cesta dentro das outras.
O outro senhor chinês da pequena loja olhava a menina, ao pé dela, falava-lhe, mas deixava-a sozinha na sua tarefa.
É nesta altura que eu fico especialmente deliciado com o que a menina, sem que alguém lho encomendasse, passou a fazer.
Para ela, é lógico, é óbvio, que as cestas para as compras são para estar à entrada do estabelecimento - e entrada é mesmo entrada, logo ali à pontinha! Então, que fez ela: depois de pôr a cesta dentro das outras, não podendo pegar nelas, arrastou-o o molho das cestas, o qual, na avaliação dela, estaria demasiadamente para dentro do estabelecimento, ou seja, fora do lugar. E foi com precioso cuidado que alinhou a base das cestas com o bordo de entrada na loja! Ficou perfeito!
Olhou o senhor chinês, o senhor chinês sorriu para a menina e agradeceu-lhe a inteligente e muito prestável colaboração, absolutamente voluntária.
A menina chegou-se depois à avó, que, de mão direita estendida, recebia o troco.
- Já está, 'vó.
- Boa, eu também estou quase despachada... Já está, vamos.
Arrumou o troco dentro do porta-moedas, guardou o porta-moedas e, encostando a mão mansamente nas costas da neta, disse-lhe, sorrindo: «Vamos». Saíram, tranquilamente.
As crianças não nascem ensinadas. Então, por que razão sabem fazer as coisas assim tão bem feitas?
A razão não é uma só. São duas razões:
a primeira é ter uma avó assim, que intui o que a neta é capaz de fazer sozinha e sabe que de pequenino é que se torce o pepino;
a segunda é ter um senhor chinês que sabe quanto vale a mente de uma criança, que faz porque é capaz, e tem a intuição de que a vida é gregária, eu-sou-a-minha-comunidade.
A avó não agradeceu à neta porque não tem de agradecer, mostrou-se confiante e carinhosa como deveria ser. O senhor chinês agradeceu porque isso lhe competia, já que a menina teve um gesto voluntarioso de colaboração e ajuda.
Parece-me que a comunidade humana da minha rua se cumpriu neste pequeno nada, e uma valorosa cidadã está aqui a formar-se como bem deve ser. Porque a comunidade está envolvida na educação da criança. “É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança.”, não é o que nos dizem ser um provérbio africano?
domingo, fevereiro 16, 2020
sábado, fevereiro 01, 2020
TRIBALISMOS; E OS 7 MIL MILHÕES DE OUTROS
Penso que José Pacheco Pereira tem razão quando procura caracterizar os tempos em que vivemos como os de (nova) ascensão dos tribalismos - do tipo em que expressam mais as suas componentes negativas, destruidoras, do que positivas ou construtivas.
Escreve ele assim, no Público, hoje:
Convido-vos a todos a passarem por eles de vez em quando. Muitos deles têm já boas legendas em português.
Escreve ele assim, no Público, hoje:
«O tribalismo dos dias de hoje é outra coisa, é no seu cerne antidemocrático, destruindo, com o precioso incentivo das redes sociais, um espaço público mediado pela verdade, pelo saber, pelas instituições da democracia, partidos e sindicatos, mas também pela família, pela escola, e mesmo pela igreja. O terreno impante de ressentimentos, violência, anti-intelectual, completamente de costas voltadas para os factos e para a verdade, sedento, não de autoridade, mas de autoritarismo, profundamente solitário diante do Facebook e do Instagram, em que estão viciados, e incapaz de pertenças sociais a não ser a grupos agressivos contra tudo e contra todos. Vêm aí os bárbaros, como no poema de KavaÆs, mas não são os bárbaros que precisamos, aqueles que “talvez fossem uma solução”. Esses nunca chegaram e estes são outra coisa e não nos vão ensinar a ser outra coisa. Vão obrigar-nos a ser nós mesmos, mas pior.»Assim que li o artigo de José Pacheco Pereira fui revisitar os fascinantes vídeos dos "7 Mil Milhões de Outros". Temos cada vez mais medo de olhar os outros nos olhos, de os conhecer e de os reconhecer. Estes vídeos - uns muito pequenos, outros assim-assim, outros grandes, dão para todos os gostos - ajudam-nos na reaprendizagem do contacto com os outros, e na educação da consciência de que somos muito mais iguais a eles do que pensamos.
Convido-vos a todos a passarem por eles de vez em quando. Muitos deles têm já boas legendas em português.
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