Nota prévia: este texto é a continuação directa do que eu escrevi e publiquei ontem (Espelho meu, espelho meu, que racistas pensas que sou eu?), pelo que será, na minha opinião, melhor entendido se for lido depois desse outro.
Mesmo que não conhecesse ainda a afirmação do Professor Adriano Moreira, que diz que um licenciado é alguém que tem licença para estudar sozinho, era já assim que eu tentava fazer.
A 'Roche'
Num deles, talvez no de Psiquiatria (não tenho o livro agora comigo, aqui em casa; está no armazém onde tenho os livros que já não cabem cá), encontrei uma secção que li com especial gosto, interesse e humor. Era a secção que falava da necessidade reconhecida em muitos médicos de fazerem o treino (hoje em dia diríamos: “frequentarem o workshop”), ou a habituação ao vocabulário grosseiro, do calão, das asneiras, quer dizer, de tudo o que estivesse ligado à anatomia sexual, às relações sexuais e às doenças sexuais. No fundo, por razões culturais e de educação, um grande número de médicos (e médicas...) não se sentia à vontade no uso de termos, tais como (e dou apenas 2 ou 3 exemplos, de alguns mais “mansos”) pila, picha, comer uma gaja, etc.
E nem eram apenas os pruridos ligados aos rigores e censuras morais da cultura dominante, eram também questões ligadas à riqueza da expressão vocabular da língua. Por exemplo, um dia, numa consulta numa escola de ensino especial, a mãe de um jovem rapazinho queixava-se que o filho tinha um problema com o São Lázaro... e São Lázaro para aqui, São Lázaro para ali, e eu já a arquitectar, entre outras coisas, uma fantasia delirante do rapaz, reactiva a uma imposta e muito severa educação religiosa... Mas não dava a bota com a perdigota... Até que finalmente percebi que o São Lázaro era a pilinha do menino. A senhora é que estava com vergonha de dizer pilinha - e nem sei se conheceria o educado pénis.
É isso, lembro-me muito bem quanto me diverti a imaginar tais “workshops” de desinibição moral e verbal; e cheguei até a participar em alguns, ad hoc, ou melhor, à balda, que fiz com alguns colegas (sim, de ambos os sexos).
E que tem tudo isto a ver com o racismo e os descritores do racismo?
É que a carga moral, a pressão política e sociológica, sobretudo de certos grupos de pressão, social e política, é tão grande que há palavras e frases que se tornaram malditas, autênticos tabus, mais inomináveis que o Inominável do Senhor dos Anéis. Mais: não só não podem ser ditas como nem sequer podem ser pensadas, em consequência dos processos de auto-culpabilização gerados pela assimilação passiva da quase-católica apostólica romana máxima, ou sentença, de que todos somos pecadores, perdão!, racistas. Pensar essas coisas é provar-se racista - atitude absolutamente condenável! Nem ao espelho assim me atrevo a olhar, quanto mais olhar as outras pessoas.
O que eu quero dizer é que temos de ser capazes de tirar a carga emocional e moralmente repressora excessiva que os ventos dos tempos lobbianos que correm põem em cima de coisas que temos toda a legitimidade para pensar e sentir sem sermos logo invadidos pelos sentimentos de culpabilidade que tanto matraquear sócio-político provocou (e continua a fazê-lo) na generalidade das pessoas.
Expressá-los é, então, afinal, enumerar os tais descritores. Alguns exemplos:
- Já alguma vez pensei que um preto cheira mal e que o seu cheiro me incomoda? Sim, já. E já alguma vez senti e pensei o mesmo em relação a um branco? Sim, quantas vezes!
- Já alguma vez pensei que aquele preto é um calão do caraças que quer ter tudo sem fazer nada? Sim, já. E já alguma vez senti e pensei o mesmo em relação a um branco? Ui, quantas vezes!
- Já alguma vez tive medo de um cigano e tive medo que ele me quisesse aldrabar ou roubar? Sim, já. E já alguma vez senti e pensei o mesmo em relação a um branco, ou em relação a um preto? Sim, também; sobretudo brancos.
- Já alguma vez pensei que aquele aluno, preto, é bestialmente arrogante e mal-educado? Sim, já. E já alguma vez senti e pensei o mesmo em relação a um aluno branco? Ui, quantas vezes!
- Já alguma vez senti vontade de mandar um preto para a sua terra? Não, nunca. E já alguma vez senti isso em relação a um branco? Sim, uma vez desejei, durante dois ou três anos seguidos, que um aluno branco não voltasse a matricular-se na escola no ano a seguir; e ele voltou sempre - que orgulho eu guardei da minha escola!, que sempre se mostrou disponível para o receber e aguentou sempre toda a sua maldade. Muita maldade, sobre as coisas e sobre os outros.
“Desconfio” que muita gente se reconhecerá nos pensamentos, nas vontades e nos sentimentos que expressei a título de exemplos dos “descritores” do racismo. Valem o que valem.
Duas ou três situações mais, apanhadas da minha experiência pessoal e familiar; e sem querer com elas, quais andorinhas, colorir Primaveras.
- um dia, à mesa, em casa dos avós maternos, a minha sobrinha-neta, pequenita, com idade de início de escolaridade básica (nem sei mesmo se ainda no jardim-de-infância), fez questão de corrigir um dos avós que lhe falou de um dos meninos pretos lá da escola. «Ele não é preto, ele é castanho.»
- a minha irmã, numa feira, regateava o preço de qualquer coisa que queria comprar. Fazia-o com tal denodo que a vendedeira lhe disse, divertida: «Ó senhora, olhe que a cigana sou eu...» E aquilo foi mesmo um divertimento!
- esta agora é uma confissão. Já me aconteceu três vezes, com alunos da escola. Um deles ainda é meu aluno. Com os três (dois rapazes e uma rapariga) mantive contacto ao longo de meses - e contacto regular, porque ambos eram alunos de turmas que eu leccionava. Longe de mim a necessidade, ou sequer a consciência perceptiva da cor da pele - deles e dos outros. Até que um dia, colegas se referiram a eles como “pretos” e eles responderam com naturalidade ao chamamento. Em todos os casos reagi com espanto - nunca assim eu os havia identificado: pretos. Há quem diga que só ultrapassamos as barreiras do racismo quando somos capazes de olhar sem ver a cor da pele. Estes casos fizeram sentir-me muito bem comigo mesmo.
Pululam à nossa volta indivíduos e grupos com jeitos de Grandes Irmãos que nos vigiam e querem moldar o nosso pensamento, alguns deles servidos por estruturas formais e politico-partidárias organizadas, e a mãozinha deste ou aquele órgão da comunicação social; e o aconchego de certos interesses económicos. Que nos escrutinem tudo, mas que saibamos preservar a nossa liberdade de pensar. Lembremo-nos de Mandela e do poema, escrito por um jovem, que o inspirou: «Sou o senhor do meu destino / Sou o comandante da minha alma.»
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